19 de agosto de 2015

O árabe do futuro. Riad Sattouf (Teorema)

O projecto autobiográfico de Riad Sattouf tem sido construído de um modo pouco consistente, no sentido em não ter arvorado nenhuma linha programática que se fosse construindo de forma nítida. Contudo, isso apenas reflecte também a forma viva como a vida é levada. Não há regra nenhuma para se construir a autobiografia, podendo ser perseguida de forma poética e fragmentária à Marco Mendes e Baudoin, desdobrando-se as várias facetas à la Francisco Sousa Lobo, procurando caminhos auto-ficcionais à la Justin Green, ou então indo ao sabor dos dias. Sattouf tem alguns interesses secundários que têm informado este seu projecto, nomeadamente as comunidades árabes e franco-árabes na França contemporânea (ele próprio é filho de mãe francesa e de pai sírio) e ainda a experiência da adolescência com todas as suas tensões com o mundo. O corolário destes dois interesses, fora do projecto autobiográfico, já havia sido aqui abordado, com La vie secréte des jeunes/Les beaux gosses. (Mais)

Após Ma circoncision, Sattouf regressa à sua vida na “esfera” do “mundo árabe”, ou “Médio-Oriente”, desta feita à mais tenra idade. Este primeiro volume (o segundo, entretanto, foi lançado há pouco em França, de um total de três projectados) foca a mudança da família em 1979 para Tripoli, na Líbia de Khadafi, quando Riad tinha cerca de um ano de idade, depois o regresso a França, numa passagem pela austera Bretanha à beira-mar da avó materna, e depois a ida para a Síria do Presidente Hafez al-Assad, onde viveria grande parte da infância e a primeira adolescência (é lá que o “apanharemos” em Ma circoncision).

Não é de surpreender que mencionemos aqueles dois países do Levante associando-os aos nomes dos seus governantes na época, e não o fazermos em relação a França. É claro que podemos ser acusados de eurocentrismo, desequilíbrio político ou mesmo pura ignorância ou imbecilidade, e não nos escudaremos de nenhum desses erros, mas estamos em crer que a subsunção dos destinos de um país sob os efeitos do poder absolutamente centralizado daqueles líderes político-militares teve bem maior efeito nesses países do que na França democrática das décadas de 1970 e 1980. Basta pensar nas fragmentações, desintegrações e desacordos políticos – para empregar algumas das palavras-chave utilizadas por Nuno Rogeiro no seu recente O mistério das bandeiras negras - , entre milícias, forças distintas, interesses locais mas também internacionais, de que ambos os países, e os da região, têm sido alvo após o afastamento desses e outros líderes.

Além disso, o propósito de O árabe do futuro tem menos a ver com a concentração na vida desta criança em particular, ou até do autor, por via de uma fama que informaria o “interesse”, do que na transformação da vida do protagonista numa espécie de filtro que nos permite a ver – ao “nós” ocidental, não finjamos que essa dicotomia não existe ou não tem aqui uma função fulcral – uma realidade outra as mais das vezes afastada – a do “profundo” e “real” mundo árabe. De resto, um propósito idêntico àquele que alçou a um sucesso comercial e de crítica uma obra como Persepolis, em detrimento de outras obras irmanáveis e de maior musculatura estética.

O próprio título da obra deve-se ao desejo do pai em que Riad seja educado como um árabe, de visão alargada em termos de educação, preparado para uma revolução cultural capaz de modernizar o Islão. Por um lado, isto revela as considerações do pai de Riad, bastas vezes exposta, de que considera os árabes pouco educados em relação às liberdades do Ocidente, e, por outro, a de desejar inscrever ainda assim o seu filho numa linha tradicional que ele próprio havia colocado de lado: a religião, a língua, a partilha de responsabilidades em casa, etc. Isto é, até à medida em que o pai de Riad é um muçulmano não-praticante, até mesmo nas regras dietéticas, a sua nova passagem pela Libia e pela Síria, o seu confronto com novos ideais de um Islão moderno (todas as ideias informadas pelas relações complexas com as ideologias ocidentais capitalista e/ou comunista, o acesso a mercados financeiros internacionais, a novos regrários societais, à emergência de novo modos de comunicação e convivência), e sobretudo o seu novo papel de pai, leva-o a reconsiderar a educação dos miúdos. Pejada de contradições, limitações, informada aqui e ali por ignorâncias e convencionalismos, e encontrando na mulher francesa uma pequena e infrutífera “barreira” – voltaremos a este ponto -, as atitudes desbragadas do pai são objecto de um tratamento da parte do autor que se poderá considerar, se se desejar humana (a contradição é condição), mas sobretudo caricatural.

Se a arte de Sattouf sempre foi francamente estilizada, parece ter aumentado o grau dessa valência neste livro. Na verdade, as figuras plásticas e flexíveis de O árabe do futuro recordam o trabalho prístino de um Matt Groening (um dos primos de Riad é a cara chapada de Mr. Burns), por exemplo. Todavia, não pode ser posta de lado a possibilidade de existirem traços de influência provindo dos seus amigos e colegas de L’Association, sobretudo David B. e, através deste, de Marjane Satrapi, acrescendo a esta última, como vimos, o impacto que o seu Persepolis teve. É impossível não encontrar em O árabe do futuro traços, heranças ou pelo menos um espaço aberto pela obra da autora iraniana que a do autor sírio-francês persegue.

Não existindo mutações plásticas nas suas figuras, ainda assim o autor emprega um grande leque de estratégias simbólicas típicas da banda desenhada clássica de humor, infanto-juvenil ou cartoonesca: multiplicação dos membros para dar conta de acções rápidas, movimentos irrealistas como quedas e saltos, enfeites dos balões para denotar tons específicos, e toda a espécie de emanata. A composição é regular e semi-regular, interessada que está em construir um relato relativamente seco, linear e “objectivo”, corroborado pela linguagem das legendas, que se apresenta como “somente os factos”, e alinhando-os uns atrás dos outros. Se a cor é empregue de uma forma especial, e assinala aqui e ali uma representação de significados específicos (as cores de uma bandeira, um pesadelo terrível, o sublinhado de um som, o acentuar de um objecto), elas são escolhidas para assinalar um espaço determinado (azul para a França, amarelo para a Líbia, rosa para a Síria) e pouco mais.

Porém, a dimensão caricatural de O árabe do futuro atravessa escolhos extremamente problemáticos, críticos e difíceis de destrinçar de forma cabal. A questão que se coloca é a seguinte: como conseguir atravessar esta paisagem social e humanamente desolada, sem sentir um arrepio de uma construção cumprida através de estereótipos negativos? Mesmo que se queira compreender este primeiro volume como um retrato de um “pesadelo” atravessado, não existem quaisquer características redentoras, quase sem excepção, das várias personagens que habitam a paisagem dos países visitados.

Os sírios e líbios, e assim por metonímia os “árabes”, surgem-nos como pessoas corruptas, irascíveis, racistas, invejosas, desinteligentes, imundas, senão mesmo imbecis e infra-humanas. Este seria um livro que mereceria uma atenção, como o tentou Ana Bravo em relação à obra de Hergé, em relação à economia de representações na narrativa. Se existe um tratamento gráfico que convida à leitura de todas as personagens como caricaturas de categorias – como é o caso de The Simpsons, ou de modos distinto, em Tintim -, há umas que são mais caricaturais que outras: mesmo que as crianças da escola francesa sejam também “estranhas” (tratar-se-á de uma escola com crianças com dificuldades de aprendizagem ou mesmo com algum grau de debilidade mental?) – mas sempre em relação à criança-modelo, Riad – não são as crianças líbias e sírias, e os vizinhos iemenita e indiana, tratados como criaturas medonhas e quase desprovidas de características simpáticas, humanas?

Mesmo quando existem alguns primos que são ligeiramente mais simpáticos, subsumem-se a cifras totalmente embevecidas com a “superioridade” dos brinquedos de Riad, e se têm brinquedos, são os péssimos que obtêm no seu país, e se ensinam algo, são apenas os insultos possíveis no árabe local. Se bem que o autor não pretenda mostrar-se a si mesmo como superior intrinsecamente, o facto de ele ter belos caracóis compridos e louros na sua infância incutir-lhe-á um ar angelical, citado, notado e elogiado por todas as personagens em seu redor, e sendo sinal de uma diferença “positiva” face aos demais, com a excepção dos outros miúdos, que transformam essa “diferença” em motivo de ódio e escárnio. Logo, voltando a transformar esse sinal num aspecto positivo, uma espécie de sinal de martírio. De facto, os auto-encómios em torno da sua esperteza, celeridade de aprendizagem, talento inato para o desenho, se por um lado aumentam o grau de “positividade”, são também garante da “inveja-tornada-em-ódio” pelos demais, mecanismo de resto básico à natureza humana em bastas sociedades.

Não estaremos a negar essa “realidade”, e muito menos a querer sonegar a possibilidade da experiência e testemunho genuínos da parte do autor. Pura e simplesmente salientamos ser algo surpreendente que um livro criado em retrospectiva, e que mantém essa relação com o tempo protelado intacta ao longo a narrativa, quer pela organização actancial, temporal e as divisões estruturais do relato, não procure matizar essa experiência de uma maneira qualquer. Repare-se como em Ma circoncision o autor utilizava uma mesma abordagem “crua”, “bruta”, mas criando ao mesmo tempo um filtro temporal que nos permitia a compreender que o seu propósito era devolver a sua experiência sofrida. Neste novo título, apenas uma contextualização do autor como um “integrado” nessa mesma cultura (ainda que de modo superficial?, nominal?) poderia evitar uma leitura quase propagandística, anti-árabe.

O facto do seu olhar não ser “de fora” – como na literatura gráfica de viagens, casos de Guy Deslile, por exemplo, ou como nos casos do jornalismo em banda desenhada –, mesmo que seja apenas parcialmente “de dentro”, pois informado pelo tempo posterior de ocidentalização, e diálogo com a cultura ocidental, mormente o espaço de expressão da banda desenhada em que se integra, será suficiente para escudar este projecto da bílis que o parece atravessar? Não estamos perante o contraste entre um regime opressivo e a imposição de uma sociedade de ignorância, por um lado, e a resistência da vontade e benignidade humana, por outra, mas na mais profunda imbricação da estupidez humana, nos mais pequenos actos, no próprio tecido da sociedade em que emerge. “Vejam, os árabes são assim”, é a lição final.

E poderiam surgir momentos de “correcção” ou desvio mais claros. Como por exemplo, alertando precisamente para a limitação dessa focalização infantil, de quando em vez “visível” sempre que o pequeno Riad se põe a imaginar algo que escuta, traduzindo visualmente e num absurdo uma expressão ou uma experiência de outrem (a casa da bisavó à beira-mar, Georges Brassens compartilhando o seu rosto com o de Deus – curiosamente um mecanismo gráfico que é totalmente devedor a Satrapi). Ou procurando com a distância e o balanço crítico que a maturidade permite uma nota de tempero desse passado. A desculpa de que o livro é lavrado através da “inocência infantil”, a “candura” ou a “coragem” do seu autor, parecem-nos formas fáceis de evitar enfrentar os seus mecanismos de representação. Ou enveredar pela defesa de se tratar de humor – ou caricatura – é querer transformar essa palavra num mote mágico que nos previne de pensar e ler analiticamente.

O tratamento da personagem maternal também está pejado de problemas, e em parte é um dos outros aspectos que mina a dimensão humanizante algo menoscabada no livro. Em termos de economia narrativa, a mãe aparece sempre como uma personagem de agência secundária em relação às decisões do pai. Há muito mais cenas de diálogo (ou monólogo) com o pai do que com a mãe, apesar de claramente Riad passar mais tempo com ela. O problema, todavia, não tem a ver somente com essa distribuição “matemática”, já que seria uma opção como outra qualquer, buscando efeitos de ritmo e naturezas particulares e, afinal, pelo programa “político” desta narrativa ser ditado pelo pai: é ele quem toma as decisões profissionais, que implicam mudarem de país, é ele quem os conduz, é ele o ganha-pão, etc. Tem antes a ver com o agenciamento da personagem, que é baixo. Não escavamos muito a relação e amor daquele casal, eles são somente funções em torno do protagonista, se bem que o pai, como acabámos de dizer, tenha uma proeminência maior. Se existe também um maior acesso aos diálogos com certas personagens devido ao conhecimento, nesta idade, pela parte de Riad, do francês em detrimento ao árabe, não deixam todas as personagens “não-francesas” de surgir sob o filtro dessa “infra-comunicação”, aumentando o grau de representação aventado acima. Então, qual a razão de não testemunharmos precisamente uma maior comunicação natural com a mãe?

Veremos se o segundo volume corrige essa ideia, ou se se manterá num mesmo rumo problemático. Seja como for, é uma excelente notícia para a oferta portuguesa de banda desenhada o surgimento de um novo agente com a Teorema fazendo uma aposta pouco óbvia, e por isso, tão salutar e inteligente.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

4 comentários:

  1. Obrigado por esta crítica, Pedro! Salvo raras excepções, nascidas da influência benéfica de Saul Steinberg (mas também ele tem um lado negativo: David Mazzucchelli), e refiro-me muito concretamente a Chago Armada, a caricatura é a doença que impede a arte da banda desenhada de crescer. Segundo o que leio no teu texto (não tenho a mínima intenção de ler este livro e muito menos de ler os que se lhe seguem) trata-se aqui de um perfeito acordo entre forma e conteúdo: caricaturar não tem por que significar estereotipar, mas na mãos de um artista menor, como é o caso, é precisamente isso que significa. E não quero terminar sem referir o caso lamentável de Guy Delisle (o qual também mencionas de passagem). O que é triste no meio disto tudo (como sugeres e eu digo claramente) é que a obra que dá origem a estas menoridades, o magistral L'Ascention du Haut Mal de David B. continue na sombra. Os editores de banda desenhada em Portugal já não existem. Razão mais do que suficiente para que, nas raras vezes em que dão sinal de vida, mostrarem que sabem o que estão a fazer. Infelizmente mais uma vez se demonstra que não é, de todo, o caso. Ou então, e inclino-me mais para esta segunda hipótese, sabem-no bem de mais...

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  2. Olá, Domingos.
    Tive alguma dificuldade em enfrentar este livro, pois ele contém sempre uma "defesa" - que eu penso ser fraca - que é o de "ser de dentro". Só que a carga negativa, quase anti-humana, é demasiado visível (e é curioso, ou não, como sempre, notar como são poucas as nozes que acentuam essa dimensão). Ainda para mais que, depois de ter visto o último filme, maravilhoso, simples, efectivo, do Jafar Panahi, em exibição, "Táxi", há sempre esta confirmação de que "lá", no país dos "Outros", há vida humana. E mesmo que tenha boa vontade em ler textos da cultura popular, como no caso das fantasias fascistas do Edmondson que debatemos há umas semanas, ao vasculhar este livro, pergunto-me, "onde está?".

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  3. De dentro, como um cavalo de Tróia.

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  4. Bem visto. Como pessoas conservadoras que serão membros de uma determinada comunidade, e arvoram precisamente essa pertença para depois avançarem as suas perspectivas conservadoras.

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