25 de agosto de 2015

RecidIVist. Zak Sally (auto-edição)

É algo difícil ler um livro que cria obstáculos à sua própria leitura. Um livro que, descaradamente, nos apresenta matéria verbal para ser lido e depois nos nega essa possibilidade dadas as formas e estratégias de impressão. Algo que, para todos os efeitos, é uma banda desenhada, e pretende que se institua um diálogo permanente entre as imagens, aparentemente narrativas, e um texto, aparentemente complementar. E depois se nega a completar essa união. Recidivist é um livro que não pode, pelo menos de forma fácil, ou ininterrupta, ou rápida, ou cabal, ser lido. E se for esse o propósito? (Mais) 

Esta pequena publicação, do artista e músico Zak Sally, contém quatro a cinco histórias curtas. Cada uma delas é totalmente separada da outra em termos diegéticos, não havendo partilha de personagens, espaços, ou sequer acontecimentos. Se existe um estilo de desenho relativamente aproximado, já a composição e a abordagem gráfica difere, havendo histórias compostas somente de splash pages (uma vinheta ocupando toda a página, neste caso quadrada, com o texto na página ao lado), outras com algum tipo de divisão, quase sempre ortogonais e simples. Os esquemas cromáticos também são distintos: azul, vermelho e preto num caso, azul acinzentado noutro, amarelo e lilás depois, vermelho no último caso, e apontamentos a prateado ao longo dessas histórias, de modos bem distintos. Ainda, uma história quebrada em três páginas/partes, espalhadas ao longo da publicação, a azul e prateado. As histórias intitulam-se “Scratch, scrape”, “Revenge”, Unhome” e a última não tem título, tal como também não a tem a “espalhada”.

Quase todas as histórias têm uma trilha textual que as acompanha. Não existem jamais balões de fala nem diálogos, apenas um texto corrido, narrativo, que pode ou não ser atribuído à personagem que vemos. Apenas a última história, com dois irmãos jovens fugindo de uma casa meio-destruída para se depararem com o corpo estendido de um adulto (o pai?), é “muda”. Os outros textos pretendem ser uma espécie de faixa que exporia os acontecimentos visíveis de outra forma. Mas sê-lo-ão?


Parte desses textos é apenas legível (visível até!) se se segurar num determinado ângulo contra a luz – e a solar é muito melhor, sem dúvida, mais difusa. A tinta prateada impressa sobre os azuis cinzentos praticamente desaparece – como o “fantasma” que atravessa essa história (“Revenge”) -, ou, contra o mesmo texto impresso a negro e no centro de uma tempestade de espirais, aparece e desaparece nessas camadas – como o corpo que flutua em “Unhome”?

Não há dúvida de que o texto “faz sentido”. Quer dizer, a camada textual, tomada singularmente, pretende criar uma forma terminada e burilada de significado próprio. Trata-se mesmo de uma prosa com grandes contornos poéticos, num diálogo simples entre um interlocutor e o seu leitor projectado, vogando por entre impressões e emoções ambivalentes. Poder-se-ia dizer que estaríamos perto de uma longínqua influência do nouveau roman, talvez, mas é provável que não chegue sequer a esse nível de complexidade. Todos os textos, isolados entre si, partilham essa característica, de ser um texto “endereçado”, implicando o leitor nas acções ou sensações entretanto desenroladas ao longo das acções das personagens: num caso, a aparente obsessão em ajuntar toda e qualquer réstia de uma substância prateada, noutro, um estranho e incompletamente compreendido ritual em torno de vários objectos banais, no terceiro, a perseguição de um meteoro (também prateado) e a transformação de si através dele, e finalmente, na última história, uma morte.

Qual o propósito, então? Aconselharia todos os potenciais leitores a ler o texto que o autor tem como apresentação e tentativa de não vender este objecto a pessoas que se recusem sequer a querer aproximar-se dele, no site de venda. A dada altura, escreve Sally, “é sobre a falha e a obsolescência e o medo e a esperança e por que razão alguém, nos dias que correm, dedica tempo e energia a fabricar e a divulgar folhas de papel obscuramente impressas com cenas lá dentro. E porque é que isso interessa, mesmo que todos os signos apontem para o contrário.” Poderíamos dizer, talvez, que o propósito de Recidivist, até pela própria noção ofertada pelo título, é esta insistência em querer acreditar que, sendo a comunicação humana, e o entendimento estético, algo impossível de cumprir na sua completude, é a de estender a mão ainda assim a essa possibilidade. As personagens destas histórias são de facto algo falhadas: uma acaba soterrada sob a pilha de livros e objectos desconjuntos que acumula em casa, outra dissipa-se enquanto um fantasma, outra ainda parece abandonar-se num ritual de auto-destruição, outra persegue uma quimera e é por ela jogada fora, ao passo que os últimos jovens se vêem abandonados. Ou talvez não, uma vez que se opera uma transformação cromática e estilística neles que talvez aponte, de certa forma, a uma possibilidade de redenção, salvação e fuga. Assim, talvez o esforço dos próprios leitores mime aquele que vemos ocupar as personagens, sendo os leitores mais felizes do que elas.

Não estamos aqui perante um mecanismo similar à da escrita assémica ou à abstracção visual de um Tim Gaze e amigos, mas antes à fabricação de sentidos através de outros modos, densos, complexos e exigentes, e que, à sua maneira, obrigam o leitor a tomar em conta de forma permanente a materialidade do objecto, tais como tantos outros projectos, de Pedro Franz a Chris Ware. A relação aqui talvez seja mais simples, concentrada, mas tais como as linhas sobrepostas criam padrões hipnóticos, é a recorrência interna que complica os padrões do projecto.

Recidivist é um título partilhado entre várias publicações de Sally, daí a sua numeração (aqui jogada com as letras do título), sendo todas elas uma pequena colecção de histórias curtas as quais, partilhando de forma menos ou mais aproximada temas e atitudes, poderão ser subsumidas a uma ambiência, pelo menos. O autor cultiva outros trabalhos mais “legíveis”, se forem esses os termos que se desejem empregar, como a banda desenhada online Sammy, entretanto coleccionada pela Fantagraphics, como outros títulos. Mas Recidivist é uma exploração materialista dessa “confusão” possível e táctil que convida os seus (atrevemo-nos a dizer “bons”?) leitores a aceitar o desafio da aproximação.


Impresso em risografia e com variados níveis de tinta e intervenções, é óbvio que o autor esperava de facto que se construíssem e empilhassem camadas de “ruído”. Ou melhor, e é isto o que o torna curioso, como cada camada, que porventura corresponderá a um nível de “signos” legíveis, interpretáveis e significativos – mesmo no caso dos padrões concêntricos -, se torna ruidosa ao se sobrepor. A transformação de comunicação em ruído parece, em parte, aquela que opera nas nossas vidas, recompensando quem escute o ruído (como aquele que porventura poderia assim ser chamado, no CD que acompanha a edição) e compreenda, como sofredores de pareidolia, a detectarem padrões e sentidos, mesmo que fugazes.  

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