4 de agosto de 2015

Saint Cole. Noah Sciver (Fantagraphics)

É com alguma dificuldade que tentamos compreender este livro. Tratar-se-á de uma espécie de abordagem irónica e pós-sclacker, miserabilista, do Bildungsroman? Será antes um retrato desencantado e feroz da América branca sub-urbana contemporânea? Será a tentativa de criar uma anedota de humor negro e que funciona como espelho de uma geração ou esfera social? Ou será apenas uma ficção lúgubre? (Mais) 

Uma leitura desatenta deste livro poderia fazer-nos crer que estaríamos perante mais um objecto que exploraria a autobiografia em banda desenhada, sobretudo aquela associada a uma certa angústia suburbana do homem branco ocidental no centro de uma desapaixonada existência quotidiana. Enfim, o de sempre. Porém, esta obra de Sciver é uma ficção, centrada numa personagem, Joe, e é uma espécie de ficção-ensaio sobre, a um só tempo metafórica e, sem querer revelar grande coisa, literalmente, sobre o buraco negro que muitas vezes nos canta com a sua voz de sereia. Ou o abismo que nós próprios escavamos. Ou outra dessas ideias feitas, mas correctas.

Sciver trabalhou noutros campos, graças à diversidade que lhe foi permitida com um zine antológico como Blammo, e os vários títulos em que tem trabalhado mais recentemente, e que o têm colocado numa posição relativamente privilegiada, em termos de atenção crítica e recepção. Não desajudará o facto de que tem produzido muito nos últimos anos, ora através de editoras de renome como a Fantagraphics e a AdHouse, como através de outras plataformas “indie”, e ainda a inevitável internet. Curiosamente, o seu irmão Ethan Van Sciver também partilha com ele a profissão de artista de banda desenhada, mas em circuitos bem mais mainstream. Parte do livro havia sido publicado online, mas que saibamos nunca o foi na sua totalidade, criando uma relação complexa entre a acessibilidade da banda desenhada na internet (não sendo propriamente webcomics, com valências acrescidas, mas tão-somente página disponibilizadas num site) e o valor crítico que ganha graças a passar um crivo editorial, ainda para mais do gabarito da Fantagraphics.

Com esta novela, na acepção específica literária da palavra, acompanhamos quatro dias somente, de Sábado a Terça-feira, da vida de Joe, na casa dos vinte. Empregado de um restaurante sem grandes laivos de originalidade, pai de um recém-nascido com uma namorada desempregada, e a partilhar a casa com a mãe dela, Joe parece estar numa situação relativamente estável. Todavia, a ideia da “família nuclear” e de um “empego estável” são vistos por Joe não tanto como o coroar de uma existência, como o corolário do “sucesso” ou do “empreendorismo” ou até da felicidade burguesa, mas uma prisão, um espartilho, uma armadilha. Essa “vida normal” não é mais do que uma escapatória fácil e destruidora de uma expressão mais genuína da vida, ao sabor dos desejos momentâneos e livres.

Claro que tudo isto depende da perspectiva. Para os leitores que vejam essa vida ou rota como “normal”, provavelmente não compreenderão por que razões Joe evita aceitá-la como uma forma de felicidade. Para aqueles que não partilham dessa “normalidade”, aperceber-se-ão dessa experiência, que não têm, como, lá está, uma prisão. Obviamente, colocar as coisas nestes termos cria uma dicotomia demasiado fácil para sequer ser levada a sério heuristicamente, mas de certa forma é essa dimensão que é criada por Sciver, ou percepcionada e discutida verbalmente por Joe. Todavia, o autor cria uma estrutura que permite sentirmos empatia pelo protagonista. Não só através do facto relativamente simples de que a narrativa é totalmente focalizada desde o ponto de vista de Joe (nada vemos para além do que ele próprio poderia testemunhar), como temos mesmo acesso a percepções que só poderão ser internas, desde os momentos de leve alcoolémia às pedradas de erva, já para não falar das visões ou sonhos sexuais.

Saint Cole não é um livro que nos ofereça de forma alguma uma “solução” ou “saída”, fácil ou de outra natureza. Mas o seu grande esforço, e intuito conseguido, é providenciar-nos continuamente com um ambiente desconfortável, incómodo, por vezes mesmo roçando a abjecção, mas sem jamais o fazer por caminhos expectáveis. As drogas, o álcool e o sexo estão presentes, como já dissemos, mas não sendo mais tabus sociais nenhum deles, e muito menos, ou sequer, sinal de resistência e inconformismo face à normatividade, esses elementos surgem somente como elementos constituintes de uma espécie de desespero a lume brando, de melancolia sem poesia ou redenção, de desassossego permanente e débil. Se há angústia, nunca atinge níveis dramáticos, heróicos ou grandiloquentes. Nem sequer atinge o nível de tragicomédia que as ficções hiperbolizadas, que se poderiam talvez considerar alegorias, de um Josh Simmons (House, Black River) providenciam. Não há aqui qualquer alegoria. O realismo surge como uma estratégia crua, sem segundas intenções ou antinomias, utilizando esse termo de uma maneira algo banal: um sistema de representação dos eventos, dos ambientes, espaços e tempos de uma maneira quase desprovida de polifonias, transfigurações, metáforas visuais, informações transcendentes, etc. e onde a narração parece tomar uma prevalência máxima sobre a descrição.

Contudo, é menos importante categorizar uma dada obra para a arrumar, ou pior, tomar uma decisão predeterminada em relação ao seu valor, do que pensá-la em relação a essa categoria para compreender o que ela oferece de significativo, forte, e interrogador da própria categoria. Esta espécie de realismo anti-social quer, na visita que faz às vazas da vida, construir um estado de arte dessa mesma vida.

Poderíamos mesmo dizer que Saint Cole, sem a necessidade de entrar pelos territórios do documentarismo ou do ensaio, molda um retrato também da classe trabalhadora norte-americana contemporânea, onde nem sequer o orgulho da ética protestante está presente para disfarçar a estrangulação social em curso. Este retrato não se centra somente em Joe, na sua família e ambiente de trabalho, mas em torno de algumas personagens secundárias que trazem algum grau de diversidade experiencial dessa mesma miséria. Não se trata de uma classe totalmente desprovida de “saídas”, mas estão suficientemente presos a duas ou três possibilidades, sem capacidade sequer de imaginação para se libertarem delas. E as mais das vezes leva apenas à mediocridade. Por outras palavras, revelam de modo exacto como essas “saídas” não são mais do que ilusões criadas para alimentarem a estratificação social que sustenta todo o restante edifício de desigualdades sociais e económicas.
A leitura deste livro fará recordar outras ficções (ou semi-ficções) que, de uma maneira ou outra, também abordam a experiência do homem ou mulher sub-/urbano da 
contemporaneidade ocidental: Shoplifter, The Nao of Brown, Zombie, algum Clowes, entre outros. Cada um desses títulos opera de forma diferente, mas curiosamente todos eles ofertam-nos com uma narrativa que termina com uma nota positiva, um final “feliz” ou pelo menos promissor de uma escapatória à gravidade dos problemas entretanto abordados e enfrentados. Mesmo que se apresentem irónicos. Poderíamos dizer que Saint Cole também o faz – não podemos revelar o fim sem com isso destruir parte do prazer do seu absurdo – mas é por uma via tão negativa que não estamos em crer que possa ser lido com qualquer laivo de redenção.

Dissemos atrás que o livro segue as vias do realismo, ou naturalismo, mas há momentos de desvios visuais que fornecem desvios de representação. De uma forma mais ou menos subtil, Sciver apresenta quase sempre pranchas construídas de modos regulares, simples, mas sempre que existem momentos de maior tensão ou de percepções distorcidas, embriagadas, a composição ganha alguns contornos menos comuns, com vinhetas interrompidas por linhas oblíquas, criando-se formas constritas e mais geométricas de forma vincada. Quer dizer, os “quadrados” das vinhetas ordinárias estão tão naturalizados – a “janela” de Alberti - que não nos surgem como limitados, mas qualquer forma geométrica semi-regular, como losangos, triângulos ou outras formas, surgem-nos como espartilhos muito particulares. E os momentos de maior problematização da memória com o álcool apresentam-se a negro, buracos negros, mais uma vez, de total ausência de informação, criando crises de ritmo, representação e tessitura. Preciso no programa da forma como Joe, em quatro dias, deita tudo a perder.


Essa descida é inevitável (não fosse essa desde logo a promessa estrutura do livro). De quando em vez, uma típica frase da voz da consciência interrompe essa descida, judiciosamente integrada a meio de anúncios inspiracionais na televisão, conselhos dados semi-seriamente por amigos e colegas, mas ao mesmo tempo tão embrulhados no chorrilho de banalidades, ganância, humor desinteligente e simplesmente bílis de outras pessoas – mas acima de tudo, da pura idiocia do próprio Joe, a cometer erros de juízo atrás de erros – que nada dessas “ideias de salvação” funcionam ou sequer têm peso suficiente para curvar o destino. Joe considera-as “injustiças” provocadas contra Nicole, a sua namorada e mãe do seu filho, não compreendendo que é nele mesmo que as feridas se vão acumulando. E quando uma ferida maior, física, soluciona o grande problema que se lhe atravessa na frente, quando um obstáculo maior parece apagar aqueles que lhe perigavam a vida, chegámos ao fim da narrativa, deixando sobre a nossa responsabilidade, e na nossa capacidade e limitações de interpretação e projecção social, decidirmo-nos sobre que fim ele terá, poderá atingir ou até mesmo merecerá. Tal como o próprio título da obra, essa resolução não nos é permitida conceber, e cabe-nos o ónus da sua moral. 

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