Tal
como ocorre com muitas outras situações da condição humana, ter
uma experiência qualquer não significa necessariamente que ela seja
tida com intensidade para se tornar singular e muito menos que ela
tenha suficiente poder para ser transformada numa forma de arte
transmissível e que explore a disciplina de expressão de forma
vivaz. A parentalidade, a maturidade, a doença, o trauma, e até o
banal, não têm interesse artístico em si mesmos. Tampouco uma
viagem. Acreditar nisso é não compreender a diferença entre a vida
e a arte. É apenas na capacidade do artista em transformar essa
mesma experiência (todas elas, qualquer delas, única, irredutível,
magnífica) num “texto” que reside a possibilidade de tecer um
discurso artístico. (Mais)
Guy
Deslile é um profissional da animação que, devido à sua posição
no mundo de trabalho do ramo, teve a possibilidade de viajar um pouco
pelos estúdios internacionais arregimentados como “outsourcing”,
e transformou essa experiência em relatos de viagem de banda
desenhada, começando em 1998 com Shenzhen. Pyongyang
seria o segundo volume dessa linha de criação, que agora nos é
ofertado em língua portuguesa, na colecção “madura” da Devir.
O objectivo, como o de qualquer objecto de literatura de viagens, é
tríplice: devolver algumas das percepções do viajante do local
visitado, devolver parte da personalidade do próprio viajante, criar
um espaço de fricção entre as duas realidades para tentar
compreender não apenas a diferença mas a forma como cada uma dessas
“partes” podem informar a outra. A mestria do género encontra-se
no grau de subtileza e resultados atingidos.
Guy
Deslile não tem essa mestria. O problema primário que reside no
coração da obra de Deslile é idêntica àquele problema que existe
em O árabe do futuro, de Riad Sattouf, de que falámos há
pouco, ou o Carnet de voyage de Craig Thompson, ou outros
exemplos de outras áreas, como o Cimêncio, que mencionámos
a outros propósitos. É o facto de não existirem muitas pessoas do
lado de lá da percepção dos seus autores. Ou melhor, haverá, se
por pessoas entendermos somente os corpos humanos que se movem
observados e tintados por essa mesma percepção.
É
absolutamente natural que vejamos as coisas do nosso ponto de vista.
Verdade de Lapalisse, dirão alguns. Claro que sim. Mas deveria ser
particularmente acesa num autor que deseja criar um discurso público
a capacidade de alimentar essa mesma perspectiva com, não apenas
informação que impeça a criação de um discurso vazio e
totalmente descontexualizado – raramente se cria boas narrativas de
viagem sem o mais breve contexto histórico e social, a menos que
sejamos Henri Michaux -, mas empatia para com os seres humanos com os
quais nos deparamos. Este problema acontece igualmente noutros dos
livros deste autor, funcionário de empresas internacionais de
animação que visita os vários estúdios onde a mão-de-obra é
mais barata para a criação do “intervalos” (a parte de leão
das imagens criadas na animação tradicional), mas é provavelmente
em Pyongyang onde essa atitude se exacerba de modo especial.
O
mais importante em quase todo o relato é a sua vida pessoal, o seu
conforto, até ao ponto mesmo em que vai confessando os seus pequenos
prazeres e subversões (colocar os pés calçados em cima da cama,
escapar à atenção dos seus acompanhantes oficiais, quase sempre
designados aos empregados estrangeiros). O autor poderá querer criar
uma imagem de si (estamos sempre a falar, obviamente, da função
autor-protagonista, não podendo fazer um juízo de valor sobre o
próprio autor fenoménico) pouco simpática, impaciente, por vezes
até sexista e tola, o que seria uma estratégia típica do captatio
benevolentiae, mas uma vez que nunca há uma aproximação
suficiente que permita essa sensação, uma vez que não há
verdadeiramente cenas que explorem a construção interpessoal –
apenas uma apresentação unívoca -, isso jamais ocorre.
Falámos
de juízos de valor. Não é apenas disso que é composto este livro?
Um cínico dir-nos-ia, “Então uma autobiografia ou um diário de
viagem seria feito a partir de que perspectiva? Ele só pode falar da
sua experiência.” Teria razão. Mas há várias formas de o fazer,
tal como há de viajar, desde ir a pé de mochila às costas e
albergando-se a cada passo junto aos locais como no “palácio
motorizado” de Roussel. E na devolução das impressões, há
também a possibilidade de mostrar um esforço em ir para além da
superfície, da vida quotidiana – neste caso imposta de forma
absurda e cruel sobre as pessoas -, e descobrir o que existe naqueles
seres humanos. Deslile parece apenas preocupado em demonstrar o quão
“esquisitas” estas pessoas são (não faltam comentários sobre a
maneira como as pessoas se vestem, o que comem, como sorriem ou não
sorriem, sobre como receberem o seu dinheiro lhe deveria dar direito
à simpatia, etc.), e como ele próprio não pode ter acesso a
determinadas coisas.
Que
a República Popular Democrática da Coreia seja um dos mais
“misteriosos” países não é algo de novidade, nem mesmo em
2002, quando este livro foi publicado originalmente, ainda longe das
ascensão de Kim Jong-Un (o qual, poder-se-ia argumentar, é mais
perigoso que os seus ascendentes, já que nasceu no interior da
“narrativa” que nutriu o seu país e, logo, é alimentado desde
pequeno com uma ideia de excepcionalidade que nem o seu avô nem o
seu pai levariam totalmente a sério). Por alguma razão é este país
o “campeão” do último lugar no Democracy Index. Todos os países
terão problemas de auto-determinação, expressão política dos
seus cidadãos, liberdade de imprensa, de movimento, educação e
felicidade económica, é certo, mas a Coreia do Norte parece
contribuir de uma maneira especificamente cruel para a infelicidade,
ignorância e isolamento do seu povo. Podemos queixar-nos de que
existe propaganda de várias formas em outros lugares (Portugal não
é excepção, decerto, e há pouco foi notícia mais alargada os
próprios esforços de propaganda da Coreia do Sul, algo deslocados),
que não temos espaço para respirar, mas não se imaginará o que é
viver num regime doentio destes, que um autor como Bruce Cumings
definiu como sendo “mais Neo-Confucionista do que Estalinista”,
isto é, contendo toda uma série de determinações políticas,
culturais e económicas que o tornam incomparável com qualquer outra
realidade político-social no planeta. Isto obriga a que os autores,
em vez de irem “dentro do segredo” armados somente com a sua
boa-vontade ocidental e observações semi-distraídas, procurem
munir-se ao máximo de uma compreensão de que atravessarão lugares
onde o medo que as pessoas locais sentem é real e tangível.
Para
quem está “de fora do segredo”, isto é, daquela experiência,
poderá pensar que as pessoas são “lobotomizadas”, “cegas”
ou mesmo “estúpidas”, ficamos incrédulos como “acreditam
mesmo naquilo”, não compreendendo que uma pessoa traumatizada não
tem a capacidade de responder de outra maneira – e a esmagadora
maioria dos cidadãos norte-coreanos terão uma experiência
quotidiana idêntica ao dos sofredores de traumas “lentos” e
“pervasivos”, em que todo e qualquer mecanismo psicológico e
espiritual responde automaticamente no interior de um espaço em que
a “liberdade” não existe sequer.
E
quem sofre dessa experiência não precisa de pessoas que, sem
qualquer elegância, insistem com um “descontrai, pá!” todas as
vezes. Dessa maneira, a comparação com o regime autoritário,
distópico, quase-absurdo (não fosse real) do 1984 de George
Orwell não é sequer uma observação subtil e iluminadora. É uma
obviedade gasta em si mesma. Porém, vemo-lo, ao autor-protagonista,
a trazer precisamente esse livro na sua viagem à capital da Coreia
do Norte, para de quando em vez nos ofertar uma citação do romance
inglês como forma de espelhamento, paralelismo e prognóstico
daquele regime. Mais, a maneira como ele o coloca nas mãos do seu
tradutor deveria ser vista como irresponsável até, e não um acto
de bravura do ocidental livre.
Independentemente
do regime – responsabilidade dos seus governantes e da conjuntura
mundial -, haverá indivíduos, seres humanos, que procurarão
momentos de felicidade e de genuína vida. Ou quereremos crer que
todos os norte-coreanos, todos os iranianos, todos os afegãos, todos
os árabes, todos os americanos, etc., etc., etc., são “uma massa
idêntica”, caracterizável por meia-dúzia de traços? Esses
indivíduos não se encontram em Pyongyang. Veja-se o recente
Taxi, de Jahar Panahi, para ver como se bebe essa vida pela
criação da arte.
Pyongyang
parece ser um discurso apenas preparado para uma confirmação.
E os pequenos actos de rebelião de Guy – tentar entrar numa zona
interdita do hotel, atirar aviões de papel pela janela do estúdio,
conter o riso numa cerimónia de idolatria ao Grande Líder,
atravessar onde não devia, passar um “livro proibido”, entrar no
país com um aparelho de rádio – são, pura e simplesmente,
patetas e até deletérios, já que demonstra que não consegue
conceber (e sequer respeitar) as pessoas que não têm outra escolha.
As
suas observações contextualizadoras são apenas dignas do mais
breve dos artigos de Wikipédia, sob a forma de vinhetas mínimas
interrompendo a narrativa do seu quotidiano. Não há qualquer
contrabalanço dos jogos de poder em jogo em toda a Península da
Coreia, recuando mesmo às tensões existentes entre a China e o
Japão no final do século XIX, em que a Coreia era tão-somente um
palco de discussões entre outros poderes. Não estando nós a
defender o regime facínora da Coreia do Norte, não se seja
estúpido, apenas se deve compreender que o papel das Nações
Unidas, dos Estados Unidos da América, da União Soviética e da
China, logo após a 2º Grande Guerra (libertando a Coreia de um
colonialismo particularmente abjecto da parte do Japão) não foi o
mais prístino e límpido da história, tornando-o aquelas terras no
primeiro palco das experiências bélicas e ideológicas entre as
duas grandes potências. A expressão “Guerra Fria”, não nos
esqueçamos, só faz sentido a quem viveu na Euro-América, ao passo
que na Coreia em 1950, nos países africanos do final da década de
1960 e princípio da de 1970, no Vietname nessa mesma década, e no
Afeganistão de 1980, etc. a temperatura era outra. Mesmo que se
empregue um pleonasmo como “guerra por procuração”, é o
primeiro termo que fez vítimas e deixou feridas ainda hoje abertas,
mas muitas vezes secundarizadas.
A
atenção que Deslile não tem não é impossível de escavar, mesmo
que não seja esse o seu objectivo. Recordemo-nos como Baudoin e
Troub’s, por exemplo, em Viva la vida, visitavam “a mais
perigosa cidade da Terra” para aí “desenhar a vida” e
interrogar as pessoas dos seus sonhos. A um local traduzido como sem
humanidade, os autores franceses desencantam a mais profunda da
humanidade, para nos ofertarem (leitores confortáveis de livro na
mão) outra realidade, que analisámos noutro local. Em que momento
Deslile sequer dá um passo nessa direcção? É fácil dizer que os
outros são lobotomizados quando nós próprios não começamos
sequer a compreender o que é nascer e respirar num regime de medo e
opressão daquela natureza.
É
curiosa a forma como o autor é sarcástico quando se depara com ser
tratado como “capitalista”, como se essa frase fosse mal-empregue
pelos norte-coreanos. A curiosidade não está nesse “erro”, que
não o é, mas antes na cegueira do próprio autor, que afinal
trabalha numa empresa que procura formas de aumentar os lucros
através de um sistema inqualificável (colocar divisas estrangeiras
num país com um regime desta natureza, para não pagarem melhores
salários e mais direitos de trabalho nos seus próprios países,
onde provavelmente existiria muita gente interessada em trabalhar na
indústria, ainda que não por “tuta-e-meia”), sem que exista
nenhum facto que assegure que os salários locais sejam de facto
justos. Mais, é curioso como a atenção de Deslile para com os
“intervalistas” seja muito, muito reduzida. A desculpa seria a de
falta de contacto, eventualmente, mas apenas corrobora a latitude
mínima da sua visão. Quando o faz, trata o momento com alguma
desfaçatez, disfarçada de humor. Mas quando a única pessoa que
entende a pessoa é quem a faz, será ainda uma piada?
O
último aspecto é que o estilo de Deslile é também algo pobre.
Shenzhen ainda apresentava alguma espontaneidade genuína e até
ingénua do lápis, mas Pyongyang pretende ter um tratamento
mais refinado. Existem pracnhas bonitas, sem dúvida, sobretudo as
splash pages, atravessadas por manchas de grafite esculpidas, que mostram os imensos edifícios gloriosos da capital
norte-coreana isolados na noite, como que confirmando o absurdo dos
esforços megalómanos de um regime em que as mais básicas
realidades humanas são esmagadas da forma mais natural.
Mas
convenhamos, e não repitemos a fórmula esvaziada de “simplicidade
enganadora”, não estamos perante a elegância minimal e dinâmica
de um Stanilas, por exemplo, ou sequer de um Porcellino. E tampouco
estamos perante desenhos feitos à mão sob observação directa,
como Baudoin cria nas suas viagens, ou num aturado, cuidadoso e
multi-angular apurar como o de Sacco. Pyongyang não é uma
obra de jornalismo, de reportagem, onde haveria uma construção,
mesmo que informada (sempre!) ideologicamente, que conteria vários
factores, ângulos, faces, ou uma genuína busca pela compreensão do
outro, e nem sequer apresenta uma estrutura narrativa compreensível:
é apenas uma cadeia de factos e observações de um estrangeiro. As
narrativas de Deslile são criadas a partir do princípio da
acumulação de “Polaroids”, que espera que o seu mero
encadeamento espolete no espectador a ideia de uma narrativa. Tal não
se verifica.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
boa crítica... aliás, Deslile é mais um caso de literatura "light" que passou a ser normal nas "novelas gráficas" e "diários de viagem" de quem não tem muita intelectualidade ou sensibilidade. Pelo menos não escreve de cinco em cinco páginas "sentei-me e comecei a desenhar"... ufa!
ResponderEliminaros livros mais interessantes dele são os que leva a família porque aí ao menos é obrigado a interagir com mais pessoas senão é esta secura...
abraços
Não é estranho ter de "levar pessoas" para com elas conversar, quando haveria pessoas no sítio visitado? É por aí que acho estranho a forma como o Deslile constrói as suas narrativas.
ResponderEliminarOi Pedro,
ResponderEliminarMais uma grande dose de humanismo servida numa prosa brilhante e ligada à terra, o que te desqualifica a escrever o livro dos livros. Ainda assim prefiro dar as graças a ti :-DDD. Salvaguardado o abismo intelectual entre nós, defendo também que somos fruto do contexto e não de qualquer idiossincrasia geográfica. Mas quanto à comparação que fazes do Delisle com o Sattouf, já a encontro pouco judiciosa. Desde logo, parece-me haver uma longa distância entre eles a nível artístico, ou pelo menos do domínio da técnica. O PYongYang é uma obra bem arrumada, graficamente sólida, o "árabe" é esteticamente mal conseguido. Não sendo eu um admirador das obras completas do Delisle, gostei das suas crónicas birmanesas e encontrei mais que algum interesse neste PYongYang. As suas obras, como bem observas, não pretendem ser biografias, são relatos de viagem assumidos e, a espaços grandes, literatura ilustrada light. O "árabe" é outra coisa, uma colagem a fórmulas próximas de sucesso mas assentes no repetido falhanço humano de erguer preconceitos autojustificados na simples impossibilidade de se desenvolver como ser humano em dois contextos distintos ao mesmo tempo: a ubiquidade é constitucionalmente proibida. Olhando para o Sattouf, pergunto-me em que ponto da sua vida adulta é que ele se "perdeu na tradução". Recordo a minha infância e não vejo no "Árabe" grandes diferenças no ocidental lugar estranho e ambivalente dos adultos ou no reconhecimento precoce que fazemos desde pequenos do primado da força sobre o próximo. O livro tem o efeito não pretendido de compreender os pontos de contacto entre nós e os árabes do passado, mas porque parecerá que o fito do autor caminha desde o sentido inverso? Desfazendo a ponte com o PYongYang, este tipo de obras, mormente quando produzidas por alguém com um pé em cada um dos lados de cada "contexto", ajuda a perceber à superfície os preconceitos que levaram ao fracasso da integração dos 300 mil refugiados nortecoreanos a viver na Coreia do Sul.
Não penso que o Delisle comete o mesmo erro. O livro dele centra-se propositadamente na esquizofrenia de uma pátria e não de um povo ou indivíduo. Tu o dizes: não há interrelacionamento com os nortecoreanos. Acrescento que os esforços feitos para promover esse relacionamento, mesmo que torpes, são tão ilegítimos como os que lhes são dirigidos do outro lado da cortina. Pensar no Delisle como um agente provocador abusando da sua pretensa supremacia ideológica sobre o handicap cultural (asiático :-) de "habitantes" de um país/planeta distante é cair na armadilha mais adiante, a de ignorarmos a lógica inversa que produz o mesmo resultado: os nortecoreanos têm a mesma dignidade - sem dúvida - mas também a mesma indignidade que apontarmos a qualquer outro ser humano.
A crítica que faço ao trabalho do Guy Delisle reside num facto que tu referes, mas noutra perspectiva, a de viver do recurso à exploração de mão-de-obra barata. É para mim este o principal ponto digno de alguma acusação: a utilização dum povo para fazer os inbetweens por outro que detém as keys é a perfeita metáfora imperialista - a exploração do homem pelo homem.
Em sua defesa, há que atender ao contexto familiar. Pelos pequenos pedaços biográficos que respingam entre as críticas de insuficiência dos seus livros :-), na origem das suas viagens e da opção por esta saída profissional em contextos deslocalizados, estará o trabalho da sua mulher nos Médicos Sem Fronteiras. Por esta via, já terá decerto um conhecimento mais próximo das semelhanças que nos rodeiam a todos do que muitos de nós e isso nota-se, por vezes, nalguma atitude "Pekariana"com que encara o "Esplendor Internacional", sendo isso mais perceptível nas crónicas birmanesas que nas de Jerusalém.
Não será que a proximidade do lançamento em português destas duas obras tornou-as muito facilmente comparáveis? A ser assim, convenhamos, como método científico é algo contraproducente :-)
Aquele Abraço
José
Concordo absolutamente com o Marcos (sobre o Delisle já sabes o que penso). Quero só reforçar um ponto que focaste, e muito bem: um dos maiores crimes alguma vez cometidos contra um povo (num século infelizmente pródigo nos ditos): http://www.japanfocus.org/-charles_k_-armstrong/3460/article.html
ResponderEliminarOlá, Domingos e José Sá.
ResponderEliminarUm dos problemas em falar de qualquer ser humano é que nenhum ser humano é intrinsecamente bom ou intrinsecamente mau, e acredito piamente que a estupidez humana é muito bem distribuía pelo planeta. Logo, transformar quaisquer grupos em blocos homogéneos é perigoso. Mas também penso ser estúpido pensar-se, como algumas pessoas o fazem, que desejar alguma felicidade diária aos norte-coreanos ou aos líbios signifique automaticamente que se compactue com um regime absolutamente abjecto ou com o terrorismo fundamentalista. Não é o caso. É apenas a de desejar ver obras de banda desenhada que sejam tão sérias nessa abordagem quanto outros discursos, ou então que sejam bem feitos no divertimento. Misturar as coisas, até poderá funcionar, mas não aqui.
José, o argumento de que o Deslile é casado com fulana ou cicrana não me parece muito interessante: nada desse facto transparece na obra, e não poderia ser um escudo. A obra ou tem mecanismos de defesa e vale por si, ou estamos metidos num sarilho. Quanto à comparação com o livro de Sattouf, isso prende-se tão-somente com a circunstancialidade e proximidade dos meus textos. Cada crítico utilizará os instrumentos a que tem acesso. Há quem não compare nada e ache tudo uma "obra-prima da bd", há quem faça erros de comparação. Prefiro este segundo, como se confirma. É claro que os pontos de partida são distintos, o grau de "inscrição" é incomparável, os métodos e grafismos bem diferentes e os resultados também não terão pontos comuns... Mas eu vejo, pela circunstância da proximidade da edição portuguesa, já que são livros de datas bem diferentes, essa característica comum: a da criação de um claríssimo "eu não sou eles", que é particularmente problemático numa obra que pretende revestir-se de um qualquer grau de "realismo". Há pessoas que se "informarão" ("conformarão"?, "confirmarão"?) com estes títulos...
Ainda ontem, numa conversa de circunstância, este "Pyongyang" levou a uma viva discussão... Pelo menos que desperte isso!
A continuar, decerto.
Obrigado pela tua resposta Pedro.
ResponderEliminarPegando no seu fim, sem dúvida que há pessoas que se bastam com uma única fonte para se sentirem informadas, mas parece-me que esse tipo de críticas serão mais apropriadas aos leitores do jornal "Expresso" :-) que basearem o seu conhecimento do que supostamente acontece pela leitura daquele jornal. Sinceramente, sendo um relato pessoal, sempre encarei este livro como uma obra de ficção - li-o há 5 anos - e despertou-me o interesse para ler outras coisas sobre o tema e que não cabiam na obra do Delisle. Essa "responsabilidade" pertence ao leitor sempre que entender que determinada obra se inscreve num intervalo limitado de esclarecimento não exigível para a mesma, como defendo ser o caso. No entanto, compreendo perfeitamente o teu ponto, bastando pegar para isso na edição da D&Q de 2009 que tenho em casa e que arranca com 44!!! - sim, contei - referências elogiosas a este PYongYang vindas - entre outras - do habitual espectro de publicações da imprensa mundial de referência, caracterizando o livro como (cito)"um importante documento". Vá lá, vá lá, literalmente :-)
Abraço,
José
Caro José Sá (e espero não estar a quebrar alguma nettiquete bloqueira ao dirigir-me a si; faço-o porque suponho, ele dirá, que o Pedro não tem objecções a ver o diálogo passar a triálogo):
ResponderEliminarA minha edição também é da D&Q, mas é de 2003 e, por isso, não tem nenhuma dessas blurbs elogiosas. Enfim, o que me leva a comentar não é isso e sim o facto de que, por mais chocante que seja, não há nenhuma "imprensa mundial de referência" no que à banda desenhada diz respeito. Isto porque o jornalismo relacionado com a banda desenhada sempre foi, com algumas excepções muito pontuais (Bruno Lecigne, Ng Suat Tong) absolutamente abaixo de cão.
Caro Domingos Isabelinho,
ResponderEliminarObrigado pelas tuas palavras e peço desculpa se fui pouco claro no meu comentário anterior, mas referi-me à "imprensa mundial de referência" ponto e não à "dita da banda desenhada", que, é claro, como bem acrescentas, não existirá. Não deixará essa imprensa, no entanto, talvez por questões de conveniência ou outras para as quais não estou capacitado, de vez em quando de dar notas a uma ou outra edição bdesca de cariz político. Na edição de 2009, entre muitos jornais canadianos, encontramos os britânicos The Guardian, Independent e Observer e, noutras paragens, o Washington Post e o The Japan Times, estes últimos como seria de esperar :-).
Quanto à tua edição de 2003, e pedindo sinceras desculpas pela tentativa de correcção, talvez ela não seja da D&Q, mas da edição original francesa da "L'Association". Só em 2005 é que o PYongYang chegou à D&Q, sendo que terá sido a partir daí que acumularia o eco a que me refiro na edição de 2009.
Aproveito para deixar os meus agradecimentos pelo teu "The Crib Sheet", sempre presente nos meus favoritos, e, em particular, por tudo o que me deste a conhecer do Héctor Germán Oesterheld.
Um Abraço,
José
Agradeço o teu agradecimento e a tua correcção. É sempre bom saber que o que estamos a fazer atinge o objectivo: ou seja, que ultrapassa a barreira da contra-informação que a tal comunicação social de referência impõe ao que, geralmente, tem mais qualidade. Sabemos como há um silenciamento dos pequenos editores e etc., mas deixemos a divagação p'ra outro dia... Quanto à correcção, é bem verdade: a minha edição é da Drawn & Quarterly, mas de 2005. A edição de 2003 será, como dizes, de L'Association.
ResponderEliminarPelo prólogo já se está mesmo a ver o que eu penso da tal "imprensa mundial de referência". Em vez de crítica dá-nos publicidade (cada vez menos, diga-se de passagem) encapotada. Desde o êxito injustificado de Persépolis que tudo o que cheire a (estive do outro lado e vi como era) tem os maiores encómios por parte dos publicitários de serviço.
Só para avisar que não me incomoda nada o diálogo entre terceiros (um diálogo com mais de duas pessoas continua a ser um diálogo, o que é o seu aspecto mais saudável), neste espaço, desde que não haja as típicas discussões da internet, mas não me parece o caso. Apenas gostaria de dizer que, se sou algo mais paciente com determinadas obras, e tendo ver sempre as dimensões positivas de um determinado trabalho - se há negatividade a mais, ou me calo, ou se falo é por perceber que é necessária uma linha contraditória -, existem gestos que são algo graves, sobretudo se eles alimentam a cegueira aspectual de quem as bebe como se fossem ideias completas, não o sendo (nenhuma o é, mas há as que mostram a sua incompletude e outras que a disfarçam; as segundas são perigosas). De quando em vez, penso que existem pessoas que dão atenção à banda desenhada de uma maneira extremamente inteligente, mesmo que não sejam "especialistas" (aliás, quando isso acontece pode haver surpresas mais fortes em termos intelectuais do que o seu contrário). Não me parece que "Pyongyang" tenha suscitado esse pensamento: somente as confirmações mornas e automáticas de "grande livro", talvez sem lhe dobrar a espinha...
ResponderEliminarpedro