4 de outubro de 2015

Sandman, Overture # 06. Neil Gaiman e J. H. Williams III (Vertigo)

Desde o seu lançamento que se adivinhava que o último número que encerra esta prequela à saga Sandman, de Neil Gaiman, et al., teria um fecho directa e organicamente associado ao início da história da personagem. O próprio título ou sub-título da obra o implicava, até com os seus laivos de interpretação musical, uma veia de interpretação quiçá produtiva: um prólogo “fora da acção” do texto principal, mas que poderá apresentar tematicamente alguns dos seus elementos estruturais. Aliás, a maneira como cada um dos números tem revisitado, en passant, muitas das personagens, temas ou episódios da saga maior, fará recordar precisamente a estrutura de um ritornello, tal como a apresentação física das páginas e a fluidez dos desenhos, na sua heterogenia gráfica, a torna flexível nessa revisitação. (Mais)

Tal qual como nos números anteriores (1, 2, 3, 4 e 5), também aqui se joga com a possibilidade da estrutura da revista, havendo apenas duas páginas isoladas, precisamente a que abre e fecha a distribuição clássica do comic book, para depois se espraiar uma sequência ininterrupta de 14 pranchas duplas, as quais tiram bastas vezes partido de um protocolo de leitura horizontal. Nesse sentido, Sandman. Overture partilha uma distribuição muito mais próxima aos clássicos pictures books, aspecto que veremos não é de forma alguma aleatório. Todavia, após a ficha técnica final, segue-se como que uma espécie de coda, de cena pós-créditos: quatro páginas protagonizadas pelas irmãs do Sonho (ou uma irmã e uma irmã-irmão), Desespero e Desejo. Esta última, descobrimos brevemente, companheira oculta, coadjuvante e instigadora das acções do percurso de Sandman ao longo de Overture. Ela própria, Desejo, expõe a razão: se o sonho pode estar no coração de todas as coisas, é o desejo que as faz mover, que instila a gravidade que as organiza. Talvez seja essa a razão pela qual o artista desenha, à guisa de pseudo-molduras de vinhetas em torno das personagens intervenientes círculos com volutas barrocas e aparentemente excessivas, que não apenas imitariam as curvas decorativas de uma figura felina ultra-estilizada como os padrões produzidos, sejamos específicos, pela desintegração de partículas no interior de uma câmara de bolhas de um acelerador de partículas. É possível que seja este um uso somente decorativo, ou simbólico, mas também é plausível que haja uma intenção autoral que pretende criar uma associação directa entre a potencialidade desta pulsão humana ou até além-humana (o desejo) e o fenómeno físico em questão... Afinal, também Lucrécio falara de que era o “desvio” das partículas, o clinamen, que permitia que o universo criasse a diversidade de que era composto, caso contrário seria um tecido eterno, homogéneo, sem vida.

Essa ligação oculta entre Sonho e Desejo, mas também as breves aparições, decisivas, do futuro Sandman, de Delírio, Morte, Desespero, Destino, a mãe-Noite e o pai-Tempo, e menções a Destruição, mostram uma possibilidade da rede de colaboração entre todos os membros da família dos Eternos, que é precisamente pela sua falta de aliança que se lançam em movimento. Contudo, esse parece ser precisamente um dos temas recorrentes nesta série. Em termos narrativos poder-se-ia dizer que ocorre tão pouco, ou nada, neste último número, como ocorre tudo. Se os números anteriores haviam criado a ideia de um inimigo derradeiro e poderosíssimo, acabamos por nos aperceber que essa expectativa, menos do que “gorada”, é derrotada e ultrapassada. Não há, afinal, um inimigo físico, com o qual Sandman colocasse a sua capa, máscara, cristal e bolsa e desatasse num combate corpo-a-corpo. São ideias, noções, fantasmas de eventos projectados, que se mesclam num perigo cada vez mais iminente, e as armas empregues pelo “herói” são parte intrínseca do território e domínio que ele representa e é.

O número final confirma, de certa maneira, a ideia de que esta personagem não é, nem poderia ser, aquela que veríamos a desenvolver-se e maturar emocionalmente durante a saga de oito anos que durou a série The Sandman. O Sandman de Overture tem uma agência limitada (de maneira a que seja Deseja a movê-lo, por um lado, e a Esperança/Hope, por outro). Independentemente do poder que ele terá – e o esforço final desta série mostra o escopo cósmico desse poder -, as coisas acontecem-lhe. Desta maneira, é compreensível que J. H. Williams III o retrate sempre com um rosto esquálido, empedernido, hierático, estático, no qual se subentende uma figura aparentada àquela que Clint Eastwood alimentou durante a sua carreira de actor (até mesmos os traços fisionómicos são similares, dos olhos sumidos às maçãs do rosto emaciadas).

A estrutura final desta série recorda por demais a maneira como Jodorowski e Moebius haviam fechado a saga do Incal, antes de terem imaginado a possibilidade de revisitar esse universo. Repare-se como a cena finalíssima coloca a personagem de Morfeu, tal como os autores francófonos o haviam feito a John Difool, a tombar num vazio a um só tempo físico, mas que atravessa várias dimensões espaciais, mas também temporal, lançando-o num tempo tanto fora do tempo como circular, como ainda num vazio existencial, que lhe permite reescrever a sua própria experiência. Sandman, tal como Difool “cai no seu início”. Além disso, o pedido de Sandman e de Hope que todas as personagens reunidas no navio sonhem juntas, e que “queiram”, isto é “desejem”, expressem livremente a sua vontade, é por demais próximo do Sonho Teta de La Planète Difool, que dissolve o universo e relança Difool no início da sua aventura.

Este retorno (Eterno Retorno?) é também outra das dimensões desta “abertura”. O tema do tempo desarrumado mantém-se, não apenas pela presença de Daniel (o Sandman futuro), como do pai dos Eternos, e ainda o símbolo, relativamente claro, do relógio derretido. Recordemo-nos de que o tempo, de acordo com a física contemporânea, é uma dimensão tão plástica como as outras e, teoricamente, seria possível manipulá-la como as dimensões e propriedades físicas se tivéssemos nós, humanos, acesso às forças que o controlassem. Como a gravidade, por exemplo. Mas o Sandman representa um nível de existência que não é o dos seres humanos, como esta obra não deixa de demonstrar ao fazer-nos percorrer as dezenas, senão centenas, de espécies contraditórias e diversas desse seu universo, e que sobrevivem ao grande cataclismo, dos seres mortais. Sandman tem acesso a essa gravidade, capaz de distorcer não apenas as dimensões espaciais, tais como aquelas que são distorcidas pela trilha visual em percursos e composições de página inusitadas (mesmo que ainda “naturalizadas” em termos de protocolo de leitura), como ainda nas temporais, permitindo que o fim de Sandman. Overture seja precisamente a abertura da saga de Sandman, iniciada no início de 1989: para além da fórmula rezada pelo raptor de Morfeus, desenhada como uma espécie de armadilha, vemos uma imagem derradeira, possivelmente delineada ou arte-finalizada de novo por Williams, recuperando a página titular desenhada por Sam Kieth e Mike Dringenberg no primeiríssimo número da série, “Sleep of the just”, que agora ganha um significado mais denso.


Qual a consequência desse regresso, desse retorno, desta reformulação do universo? Mais uma vez, Gaiman, tal como outros autores-chave da banda desenhada mainstream dos anos 1980-1990, emprega a técnica da reconstrução, da re-arquivação do futuro visitando um hipotético passado. Falamos acima das personagens que são os alienígenas, habitantes do vasto universo, e que sobrevivem. Se olharmos para algumas delas com atenção, apercebemo-nos de que elas configuram muitas vezes certos modelos ou protótipos de personagens conhecidas de outras histórias: robôs gigantes de programas de animação japonesa, um unicórnio vestido como o Príncipe Valente, um monstro demasiado parecido com as personagens de Mercer Mayer, uma personagem parecida com Brainiac da DC, outra com Morbius da Marvel, outra ainda com o monstro de The Watchmen, por sua vez associável a outros monstros de programas televisivos norte-americanos dos anos 1950. E muitas outras que poderão preencher categorias mais ou menos reconhecíveis e clássicas (funny animals, high fantasy, cena de bar intergaláctico, etc.). De certa forma, portanto, levando à ideia de que todas estas personagens sobreviventes não são totalmente dissolvidas com a reescrita do universo, mas antes absorvidas nas histórias, a que o próprio Sandman preside, afinal, como Príncipe das Histórias. Todas e quaisquer personagens que habitam o domínio da imaginação dos seres humanos, portanto, no nosso mundo, são então as notas sobreviventes de um universo desaparecido, mas transfigurado nessa maneira, pela queda de uma entidade como Sandman. A qual agora terá um longo caminho a percorrer. E que podemos nós percorrer de novo.  

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