6 de outubro de 2015

Vários títulos. AAVV (Cachalote)

Introdução: No espaço desta e da próxima semana, colocaremos neste espaço uma série de textos sobre banda desenhada brasileira contemporânea que, por sorte e esforço, nos tem chegado às mãos. Atravessaremos vários géneros, estilos, territórios e mercados, mas esperamos que isto permita, por um lado, aos leitores portugueses (ou outros), uma maior aproximação à pujante produção do Brasil e, por outro, aos leitores brasileiros, uma perspectiva não-local, que esperamos sirva para algum diálogo transatlântico. 

Este primeiro texto(s) será curto, pois remeteremos os leitores para a apresentação que já fizéramos deste projecto, o 1000, face ao qual a nova colecção, Franca, é quase uma pequena variação. Se aquela se apresenta como um caderno de uma dezena de páginas, impressas a preto sobre papel colorido, e sem qualquer matéria verbal para incentivar outro tipo de pesquisa na organização estrutural das imagens enquanto forma narrativa (ou não-narrativa), a Franca apresenta-se como uma mais clássica publicação, a preto-e-branco, com uma sobrecapa, mas onde o conteúdo se pode alinhavar por princípios mais convencionais, ou não, da relação entre texto e imagens. Este é um grupo de pequenos, mas significativos gestos na diversidade da paisagem editorial brasileira, já que não se conformam à ideia de “novela gráfica”, “adaptação”, “livro”, os quais, com maior ou menor felicidade, conquistarão de imediato uma maior atenção, automática. (Mais)

Velhos hotéis passam cinema mudo. Guazelli. Este título tem duas linhas de pesquisa. Por um lado, trata-se de uma agregação de cenas urbanas modernas e abandonadas: a cada vinheta observamos as fachadas de cinemas, hotéis, motéis, penetramos pelos corredores de carruagens de metropolitano e comboios, estações e fábricas, usinas e centrais eléctricas, auto-estradas e cemitérios de automóveis. Por outro, a cadência do movimento, pelo menos num primeiro momento, nada tem a ver com a sequência e a organização das imagens numa inclinação narrativa, mas pelo contrário segundo uma lógica de acumulação de identidades. No momento em que se instala uma espécie de movimento, logo descobrimos que ele não é teleológico, e rapidamente somos raptados para um outro nível, metatextual, que nos impede de criar elos entre esses espaços. Todos eles abandonados, desprovidos de figuras humanas, surgindo apenas um esqueleto à janela, e atravessada todas as cenas por papéis esvoaçando e pó, é possível que Velhos hotéis seja um exercício de uma estranha nostalgia por paisagens obsoletas, ou em parte apenas informadas por modos fantasmáticos de as imaginar. [depois de todo o texto, apresentamos mais uma prancha de cada livro, por ordem de apresentação.]

11. LTG (Lucas Gehre). Projecto oubapiano não-dogmático, 11 apresenta-se como uma negociação permanente entre a construção de um objecto potencial de cruzamentos e possibilidades narrativas – a tira distribuída e re-montável como um dado de lançar (aliás, os ateliers Oubapo produziram um objecto tangível irmanável: Coquetèle, de Anne Baraou e Vincent Sardon) – e uma tira mostrando uma personagem em gestos totalmente banais e quotidianos. A distribuição das vinhetas, porém, numa descontrução das formas habituais, obrigarão o leitor a tentar entender quais são os caminhos alternativos necessários para a construção do sentido. História circular e simples, com um desenho minimalista que recordará uma animação tremida, é a ocupação do espaço o tema central do título.

Vizinhos. Laerte. Se poderemos sempre ler todo e qualquer traço material de um projecto como significativo, não pode haver dúvida que o uso de um papel vermelho e brilhante para esta história – nos seus traços gerais, obedecendo a convenções claras – acaba por informar de forma indelével a imensa tensão que se cria entre as duas personagens: o habitante do apartamento com garagem e proprietário do automóvel que tem de estacionar, e o moleque de rua que tenta ganhar uns trocos a estacionar outros em torno daquele lugar. Uma intriga concentrada e linear é constituída rapidamente, mas estará nas mãos dos leitores a atribuição de responsabilidades e até mesmo de juízos de valor sobre as acções de ambos os homens, que se desequilibram à volta de questões sociais, económicas e raciais inclusive. Laerte criou este livro com um processo rápido, deixando ver o lápis, e apenas colocando linhas de tinta quase sumárias para trancar as figuras, como se houvesse uma urgência maior em termos de “conteúdo” do que na moldação finalizada das “formas”.

Aranha. Luiza Doria. Destes quatro títulos, este é o mais “simples” e quase linear, numa tentativa de um género mais infantil e clássico. Aranha é um pequeno conto de terror para leitores mais jovens, no qual uma terrível e tremenda aranha consegue impor a sua vontade ao menino que dorme no quarto ocupado, levando-o a sucessivos sacrifícios, cada vez mais temíveis. No final, mesmo depois da mais alta importância paga, é que o jovem protagonista consegue apelar a forças maiores para a sua salvação, mas cujo nível de poder é tão caricato, que nos põe a duvidar de todos os acontecimentos.

Risco. Marcelo D’Salete. Pertencendo à tal colecção Franca, estamos perante aqui outro nível de experiências, que podendo convidar a abordagens mais “normalizadas”, não significa que não possa permitir a cada autor perseguir as suas próprias linhas de inquirição. Dessa forma, não é particularmente surpreendente encontrarmos D’Salete a tecer aqui uma narrativa curta em torno de personagens jovens negras urbanas que permitem colocar, mais uma vez, questões de equilíbrio dos papéis sociais, dos preconceitos, mas também das realidades brasileiras da violência sistémica policial e da conivência de outros círculos sociais: dos mauricinhos brancos aos meios de comunicação social, passando por aspectos como o emprego, a marginalidade, a brutalidade e a indiferença. Porém, D’Salete quer que em Risco, não apenas esteja presente de forma central o único ingrediente que pode redimir as relações humanas e fortalecer os elos de solidariedade – o amor – como ele possa levar a um final feliz.

Cavalos mortos permanecem no acostamento. Pedro Franz. Tal como no caso do autor anterior, também neste caso a plataforma de Franca é empregue para dar continuidade às experiências formais do autor. Publicado anteriormente pela Kus na antologia Š!,esta história de 14 páginas enquadra-se de uma forma aparentemente autobiográfica, mas a memória do evento da vida do narrador dá azo a uma espécie de desvio, que talvez possa ser lido simbolicamente, ou pelo menos enquanto capacidade associativa. Esse mecanismo, por sua vez, abre caminho a uma segunda camada mais recuada ainda de memórias pessoais, e que se vão desembrulhando em várias possibilidades de imagens agregadas em sequências poéticas e abertas. A última página é uma clara homenagem à obra de Seiichi Hayashi, Red Colored Elegy, na qual Franz imita as figuras e estilo, para criar uma derradeira nota complicada entre autobiografia, confissão de arte, multidisciplinaridade da materialidade da banda desenhada, diálogos interculturais, e as formas de pesquisa que lhe são tão caras.

Nota final: agradecimentos a Rafael Coutinho e editora, pela oferta dos títulos, assim como a Pedro Franz e Marcelo D’Salete, pelo papel no processo. 


 





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