26 de novembro de 2015

Graphic Novel. An Introduction. Hugo Frey e Jan Baetens (Cambridge University Press)

Começaríamos por afirmar uma declaração de interesses, uma vez que, sendo Jan Baetens o nosso orientador académico, e mentor de longa data com muitos dos seus escritos, que nos vemos forçados a afirmar a superioridade desta obra sobre todas e quaisquer outras que possam ter surgido sobre a mesma temática. De uma forma cabal, única e derradeira, eis a última palavra a dizer sobre esse fenómeno da “graphic novel” e, por atacado, sobre a banda desenhada. Boa noite, e obrigado.

Se as coisas pudessem seguir esses trilhos assim fáceis, a vida sorriria a todos os momentos, mas a realidade é bem distinta. (Mais)

O propósito de Graphic Novel: An Introduction é providenciar os leitores com um volume no qual se poderiam encontrar as questões prementes para compreender não apenas a história do termo, mas igualmente o seu escopo, propósito e alcance. Isto é, que tipo de textos abarcaria (e excluiria), que tipo de função ele teria a nível comunicativo, económico e político, e finalmente, que tipo de resultado obteria a um nível ontológico. Por outras palavras, em relação a este último ponto: que pertinência haverá em utilizar esse termo em vez de “comics”, pelo menos em inglês? No caso da língua portuguesa, que pertinência há em dizer “romance gráfico” (ou, intentando uma incorreção literária, “novela”) por oposição a “banda desenhada”, “história aos quadradinhos”, “história em quadrinhos”, etc.?

Está fora fazermos aqui a história do termo, que é bem complexa e está aberta a variadíssimos excursos (Nuno Pereira de Sousa faz um bom balanço e apresenta ideias sólidas no seu site), os quais são cumpridos precisamente por este livro, nalguns pontos até recordando experiências algo preteridas (ainda que não sendo exaustivos, como veremos). Como é de esperar, fazem um trabalho bem mais completo do que muitas das versões enlatadas que muitas vezes são apresentadas, quase sempre apenas tocando naqueles exemplos mais conhecidos ou que pretendem dar conta de uma história mainstream e convencional (Eisner, os três grandes de 1986, um livro ou outro europeu, e depois os “grandes autores” da contemporaneidade, e, claro, a inclusão de géneros expectáveis).

Neste nosso texto, referir-nos-emos a graphic novel e a comics, e não a banda desenhada ou outros termos, uma vez que fará sentido atermo-nos a essas palavras na leitura deste livro. De uma forma quase concludente, lemos palavras decididas na seguinte afirmação: “A 'graphic novel' foi definida pela sua originalidade e diferença de formatos do passado e pelo seu conteúdo narrativo original. Foi empregue explicitamente para assinalar um corte com a percepção de que os comics eram para crianças ou adolescentes” (233). Portanto, o termo parece querer dar conta de um tipo de textos que, sendo aparentados com outros, são deles diferentes. Porém, na nota introdutória à lista bibliográfica que aconselham no final do volume, os autores são claros ao afirmar que “seria altamente artificial e contraproducente separar de forma demasiado drástica os estudos das 'graphic novels' e os estudos de 'comics'” (246), e se isso faz todo o sentido, ainda se torna mais surpreendente a maneira como, ao longo das mais de duzentas páginas, atravessámos precisamente um discurso que não apenas reitera, como reforça essa divisão artificial, ao debaterem formas e conteúdos que também são detectáveis nos comics, mas apenas foram analisados nas graphic novels.

Como escrevem Baetens e Frey logo no início, “os processos de definição giram à volta da percepção, de escalas de diferença, variedade e impressão. [Nesse capítulo] tentaremos explicar como em várias questões-chave, as 'graphic novels' oferecem de facto um conjunto significativamente diferente de actividades culturais em relação aos 'comics'”. (5) Como é de esperar, o livro encontra-se estruturado de uma forma simples e bem pensada, dividindo a sua matéria em três partes: “Contexto histórico”, “Formas” e “Temas”, cada qual podendo ser vista como características específicas que serviriam a essa distinção (as questões de formatos e de modos de distribuição e produção estão subsumidas nos capítulos centrais). Cada uma destas partes é dub-dividida em três capítulos e, ainda que seja possível identificar aqui e ali quem poderá ter escrito o âmago ou a parte de leão de um determinado capítulo (se se conhecer a produção de cada um dos autores, não é um exercício difícil, sendo Frey um historiador e Baetens um crítico pós-formalista e cultural), ambos reviram todo o projecto em conjunto e assumem a responsabilidade de todas as partes.

Em relação à parte histórica, os autores trazem à baila várias experiências que de facto não costumam estar no rol de “percursores”, tais como os projectos livrescos de Harvey Kurtzman, o papel de certas revistas e das adaptações literárias da Classics Ilustrated, do movimento artístico Pop Art e certas negociações de remediação pela televisão e cinema, a criação de uma atenção particular da parte de um público adulto com as tiras de Schulz e Trudeau, e depois alguns dos projectos editoriais dos anos 1970 que procuravam cumprir a ideia de “livros com uma história completa” (abarcando-se objectos tão díspares como The Stars My Destination e Alien: The Illustrated Story) etc., juntando-se, claro, a todo aquele conjunto de outros pontos já mais consabidos. Se bem que de uma forma tão secundarizada que, mais uma vez, alguns mitos se mantêm, e independentemente da importância conceptual, política e económica de Eisner, se se trata de um livro de discussão académica e histórica, algum tempo gasto nos pormenores da emergência do termo não seriam mal-vindos.

Escrevem eles, “ao longo dos anos 1970, a ideia das 'graphic novels' vinha ganhando algum peso em áreas para-literárias nas quais a ilustração havia sido sempre importante” (71; os autores referem-se a fantasia, a ficção científica, o pulp, etc.). Todavia, não há nenhuma palavra sobre as colecções em livros cartonados das tiras da imprensa norte-americana do princípio do século XX (Doonesbury e Peanuts datam da segunda metade), por exemplo, que levaram a uma circulação bem distinta da dos jornais originais e, mais importante, como veremos, não há qualquer contraponto com o álbum francófono, nascido já no século XIX, nem com outros formatos e/ou experiências do resto da Europa ou para além dela, como os kibyoshi, o que traria uma contextualização mais lata e mais complexa. Se a exclusão dos primeiros se poderia dever à questão temática – as graphic novels seriam mais adultas, sofisticadas, etc. -, as dos segundos levanta questões mais bicudas quando se discute a literaliedade, como veremos.

No que diz respeito às “formas”, não é de surpreender que a atitude aqui seja mais de revisão teórica, não sendo este um livro para praticantes (como o eram os projectos de Eisner e de Abel-Madden e, de certa forma, de McCloud), mas sem que haja propriamente uma apresentação de desenvolvimentos novos. Um dos capítulos dessa parte intitula-se “A graphic novel como forma especifica de narratividade/storytelling”, sendo este um dos grandes pontos de combate do volume. Os autores pretendem então que as formas específicas à graphic novel é diferente da dos comics, se bem que em muitos momentos seja algo difícil de destrinçar umas e outras, já que em termos de composição de página, sequencialização das vinhetas, usos de estilos, aspectos de abordagem cromática ou de apresentação de matéria verbal, ou outros, são praticamente, se não completamente, idênticos. Mas é, acima de tudo, a terceira parte que traz à vista os “músculos teóricos” de Frey e Baetens. Um dos capítulos discute as relações cada vez mais íntimas entre as “graphic novels” e a “coisa literária”, não apenas em termos de objectos comuns de atenção e desenvolvimento criativo, mas também de mundos sociais; o outro explora a “nostalgia e o regresso da história” como uma tendência assinalável dos último anos. Como vimos, o livro possui ainda uma bibliografia no final que convida os seus leitores a descobrirem as fontes de algumas das lições de An Introduction, assim como a explorar referências mais alargadas.

Mesmo compreendendo que o livro se destina a se tornar um volume introdutório a estudantes novos na área, existem alguns pontos que não são desenvolvidos da melhor maneira. Por exemplo, as páginas dedicadas à questão da composição partem, naturalmente, das investigações já existentes em Peeters, Groensteen e Hatfield, não trazendo novas inquirições, e tampouco atingindo a sistematização de Chavanne, mesmo que este seja visto como menos desenvolvido em termos teóricos ou de integração intelectual – contudo, não é sequer citado. É por vezes algo surpreendente que um livro que se pretende apresentar como sendo académico não preveja cobrir certas áreas sobejamente conhecidas nesse mesmo contexto.

De certa forma, a emergência e fortuna do termo “graphic novel” deve-se, num primeiro momento, a uma certa atenção mediática que surgiu em 1986, quando da publicação, mais ou menos coordenada, de Maus de spiegelman, Watchmen de Moore e Gibbons e The Dark Knight Returns de Miller. Foram esses três títulos que de repente lançaram a banda desenhada a uma inesperada atenção (positiva, tenha-se em conta) na imprensa mainstream, e que abriria as portas aos desenvolvimentos editoriais, económicos e culturais que se seguiriam, sobretudo nos anos 1990 (estamos sempre a falar do contexto anglófono, senão mesmo norte-americano). Numa segunda instância, já no início da década de 2000, o franco desenvolvimento da recepção e produção académica (os Comic Studies), são os educadores e investigadores que tornam esse termo numa espécie de “escudo” contra outro tipo de produção de banda desenhada, o que levaria à quase instantânea canonização de todo um grupo de trabalhos (Maus, Jimmy Corrigan, Persepolis, Fun Home) ao ponto mesmo de apagar a atenção a outros títulos, sejam eles afectos a géneros “fechados” ou mesmo a experiências menos famosas. Basicamente o que essa atitude criou foi a ideia de que se não tem lugar na recepção académica, então não faria parte da discursividade literária, à qual agora supostamente a banda desenhada pertenceria, e que o termo graphic novel confirmaria. Até certo ponto, é quase como o problema do ovo e da galinha: é o termo que permite uma leitura literária, ou é a sua apreciação “literária” que justifica o termo?

Um dos problemas de base de Graphic Novel: An Introduction parece dever-se a questões editoriais, apresentadas publicamente – mas não expressas no próprio livro – pelos autores. Ao que parece, uma obrigação da Cambridge foi a de que os exemplos que deveriam ser discutidos na argumentação se ateriam a fontes anglófonas, maioritariamente norte-americanas, ou a títulos traduzidos e de grande circulação. Ainda que Baetens e Frey incluam alguns exemplos “fora” desse âmbito – e ninguém pode duvidar que ambos os investigadores conhecem muito bem, até intimamente, muito outros pólos de produção -, como The Cage ou Breccia, há um desequilíbrio tremendo para com fontes norte-americanas, o que leva a uma visão de todo o desenvolvimento conceptual da banda desenhada na sua relação com outras realidades culturais extremamente problemática. Se houvesse uma nota indicando que a discussão do livro se ateria precisamente a esse campo geográfico, linguístico e cultural, até reforçando a ideia de que o termo em si tem uma presença mais pertinente nesse mesmo campo, excluindo então as críticas advindas de uma sua contextualização mais lata (no mundo “ocidental” ou mesmo à escala global), seria uma coisa. Na sua ausência, estas críticas serão certamente válidas.

A dado momento, no último capítulo, os autores escrevem, partindo de um exemplo, que “[c]omo temos explicado ao longo deste livro, a emergência da 'graphic novel' não foi assim de maneira alguma [como no exemplo], mas antes a partir de uma miscelânea [patchwork] de tradições estéticas altamente complexas e que ainda hoje reflectem uma imensa amplitude de trabalhos” (230). Aquilo que queremos colocar em causa é precisamente a clareza de terem garantido a apresentação dessa amplitude.

Repetidamente, os autores discutem o seu desejo em ter uma abordagem “não-essencialista” à banda desenhada. Porém, mesmo tendo em conta as considerações, informadas e inteligentes, que tecem em torno de projectos não-narrativos, o próprio uso contínuo de exemplos narrativos parece implicar que a banda desenhada é necessariamente um meio narrativo, subsumindo tudo a esse princípio. Na página 110, os autores são cuidadosos ao falar da “posição dominante da narrativa nesta forma de literatura desenhada” (nosso itálico), mas repare-se como a própria frase começa com a possibilidade de não-exclusividade mas para se subsumir a uma outra área – a literatura – a qual, neste emprego metafórico e generalista, pode ser entendido como sinónimo de narratividade (mesmo que não necessariamente de “prosa” ou “ficção”).

Por exemplo, na página 164, terminam uma secção com a frase, “o espírito aberto e não-essencializante deste livro”, mas logo na secção seguinte iniciam um novo ciclo desta maneira: “O que é essencial na 'graphic novel' é que o desenho é menos do que uma técnica que é usada para moldar uma determinada história do que uma operação criativa que produz as imagens e as próprias histórias”.

Se aceitarmos, todavia, que as graphic novels seriam um meio, um medium, distinto desse outro que são os comics, sobretudo caracterizado pela sua qualidade próxima à da literatura – que será alvo de grande parte de argumentação – então aceitar-se-á a continuidade dos outros aspectos debatidos. Vejamo-los.

“[O] que é típico de uma 'graphic novel'”, escrevem os autores, “é o trazer regularmente estes elementos [as estruturas da banda desenhada, sejam as molduras, o multiquadro, a matéria verbal, etc.] para primeiro plano” (173). Adiantaria encontrar e mencionar exemplos que não de graphic novels, mas de comics, que fizessem o mesmo? Se pensarmos na colecção Levoir-Público produzida há pouco, entre nós, será que todos esses títulos cumpriam esse papel? E em que medida é que poderemos encontrar noutros círculos de produção os mesmos trâmites?

Há momentos em que numa mesma frase se seguem os termos graphic novel e comics, ou mesmo comics e comix (!), levando a uma hipotética dor de cabeça no momento de traduzir para a nossa língua. É o mesmo quando vemos, em inglês, criarem-se distinções entre comics e bande dessinée, etc. Não será essa distinção linguística e superficial parte do problema, desde logo, da sua legitimação cultural? Já o havíamos dito, mas imaginem de novo alguém que diga “gosto de cinema, não de filmes”... Qual a diferença entre “só leio romances gráficos, não gosto de banda desenhada”? A outro nível, mais sério, é que frases como “os comics e os comix” criam uma distinção objectiva, senão reificada, de imediato na denominação.

A análise e estudo da integração da banda desenhada (no caso presente, as graphic novels) no Mundo da literatura (no sentido da teoria institucional da arte) é muito bem cumprido. Os autores reflectem sobre as três tendências da negociação do mundo literário com a banda desenhada: “Em primeiro lugar, o interesse do mundo literário pelos comics e graphic novels legitimam ainda mais ambos os campos como sendo parte de um reino literário mais alargado” (197) – o aparecimento de críticas em publicações respeitadas do establishment cultural, nas secções culturais, em prémios e bolsas -; mais “novas 'graphic novel' têm sido criadas e romancistas recrutados para criarem argumentos e contratados para colaborarem em 'graphic novels' originais” (197) – e a título de exemplo pense-se em Jonathan Lethem, Denise Mina ou Greg Rucka -; “Em terceiro lugar, como tem sido reconhecido à escala nacional [E.U.A., claro], comics vernaculares têm aparecido comummente na literatura” (197) – por exemplo, na obra de Austin Grossman, Junot Díaz ou Michael Chabon. Não há, porém, uma análise propriamente dita do que se poderia chamar um “discurso literário” no seio da própria banda desenhada, e que poderia incluir de Jean-Claude Forest a Alan Moore, Pierre Christin e Jason Lutes, Marguerite Abouet e Ed Brubaker, etc.

Os autores consideram então que “a 'graphic novel' é um dispositivo de contar histórias [storytelling device]... a história [story] no formato da 'graphic novel' é mais do que uma história contada no formato da 'graphic novel': a escolha do meio induz a um conjunto de possibilidades tais como de impossibilidades, de obstáculos como de oportunidades, que não são detectáveis em qualquer outro meio, mesmo que seja sempre possível recontar ou refazer uma dada história num meio diferente” (162). Mais: “Podemos acrescentar que a 'graphic novel' instituiu a sua literaliedade [literariness] através de outros meios: reformatações, inclusão editorial em antologias de base textual, a adaptação da narrativa gráfica para ficção mais corrente, apreciação crítica através de paratextos tais como prefácios e posfácios escritos por 'escritores', novelizações, e escritores de ficção utilizando a banda desenhada como fonte de material” (150).

Há, portanto, uma insistência na ideia da narrativização da graphic novel que raras vezes é desconstruída, precisamente na ausência de toda uma série de experiências que poderiam levar à sua crise – aquilo que se chama de quando vez art comics, abordagens experimentais, exercícios de salão oubapianos, etc. -, os quais, é preciso sublinhar, levam a cabo precisamente aquelas características que os autores acentuaram noutro momento do seu livro...

Contudo, acima de tudo parece-nos que o problema maior está em que se criem “ilhas” de determinadas produções que se tornam então “dignas” ou “passíveis” de serem consideradas enquanto graphic novels – e, daí, a um tipo de estudo mais sofisticado -, relegando a um outro território sem nome, massificado, o “resto”. De certa maneira, e mesmo que não tenha sido de um modo concertado mas à la dominó, o termo viria a ser imposto pela via académica, sobretudo pelos professores de literatura, mas às expensas de não dar atenção a todo um rol de produções (outras) de banda desenhada, jamais havendo atenção para com tipologias, estilos, editoras ou mesmo públicos que não se coadunam de forma mais imediata e elegante com alguns dos pressupostos teóricos previstos na sala de aula. Se algum título não for estudado academicamente, não faz parte desse discurso. Pescadinha de rabo na boca, portanto. Curiosamente, mesmo quando Baetens e Frey citam outros autores que se referem a comics em termos mais generalistas, e não a graphic novels, como é o caro de Jared Gardner, a discussão é absorvida para este outro campo.

O livro, portanto, apesar do seu esforço (intenção?), continua a alimentar uma ideia elitista de que existe um grupo perene de livros que merecem ser estudados o mais cuidadosamente possível e que tudo o resto que cai fora desse foco, o da denominação “graphic novel”, é lixo derivativo. Muitas vezes nos deparamos com considerações de que “a banda desenhada mainstream é assim e assado”, sem quaisquer qualificativos, e bastas vezes sem sequer exemplos concretos, implicando que é “tudo a mesma coisa”. Frey e Baetens utilizam descritores da produção de banda desenhada mainstream como sendo “industrial” ou “convencional”, sem qualquer preocupação para as gradações existentes, isto é, sem jamais ultrapassarem a linha da produção para auscultar o acto criativo. E de facto, termos autores como W. Ellis ou E. Brubaker, J. Aaron ou G. W. Wilson a escreverem títulos centrais da Marvel ou DC, por hipótese, não é “a mesma coisa de sempre”. Com efeito, será que, e tomemos dois exemplos de autores da Marvel dos nossos dias, ler Nathan Edmondson e Ales Kot revelaria a mesma atitude perante as personagens e universo daquela companhia? Será que a inscrição sócio-política desses autores é idêntica por trabalharem no seio dessa máquina industrial? Só não os lendo é que se pensaria que sim. E a questão da visualidade é a mesma coisa: ver/ler a arte de um Jim Lee não é a mesma coisa que a de uma Tula Lotay. Esse tipo de agregação levaria à ideia peregrina que, por serem Vampirella e Ms. Marvel personagens femininas do mainstream, que ambas teriam o mesmo significado para com modelos societais feministas, que ambas responderiam a essa busca de igualdade com o mesmo tipo de gravidade.

Pedir uma atenção particular para com outros tipo de banda desenhada que não a “graphic novel” não é o mesmo que afirmar que Rob Liefeld tem de ser comparado com art spiegelman, mas tão somente que é necessário: 1. ler mesmo esses tais títulos, 2. compreender a relação entre o que buscam os seus autores individuais e as limitações do “dispositivo”, 3. descontrair um bocado a atitude elitista preventiva. Esta é uma das razões pelas quais o trabalho de uma Karin Kukkonen ou Julia Round, entre outros, entendam-se ser menores ou maiores as suas conquistas a nível teórico, são trabalhos frescos, uma vez que dedicam de forma equilibrada os instrumentos de análise e crítica mais sofisticados a outros canais de produção desta disciplina.

O problema da canonização – que aqui se mantém - leva a que haja um afunilar cada vez mais problemático. A título de exemplo, citemos um artigo de Hillary Chute para o Routledge Companion of Experimental Literature. Num volume dedicado a experiências como o Oulipo, a poesia gráfica, o lettrisme, poesia-performance, o projecto L=A=N=G=U=A=G=E, etc., esperar-se-ia que Chute abrisse o leque para falar de projectos que, como saberão alguns leitores atentos do lerbd, nos são caros. Todavia, o que sucede? Eis que a investigadora mais uma vez reinstaura o seu cânone predilecto, com spiegelman, Ware, Bechdel, etc. desta forma poderíamos dizer que os proponentes da “graphic novel” não apenas colocam de lado a banda desenhada mainstream, mas também aquela do “campo expandido”, como havia proposto Domingos Isabelinho. Baetens escreve nesse volume também, mas toma conta do Oulipo, sabendo que, fosse ele o articulista com responsabilidades sobre banda desenhada, acabaria por alertar para os projectos da Fréon, a título de exemplo. Não obstante, não o faz (ou de modo suficiente) neste volume a meias com Frey.

Se a perspectiva em torno das “graphic novels” - não “propriamente ditas”, mas na sua conceptualização pelos autores - é bastante matizada neste volume, não deixa de haver uma generalização no “resto” que é problemática. Tomemos outro exemplo ou dimensão. A dado momento, os autores querem ajuizar sobre o autor, discutindo a individualidade e o mito (cansado) dos “autores completos”, chegando mesmo a empregar a expressão de “individualismo pronunciado”. Ora, não querendo negar que de facto existirão autores com uma personalidade gráfica, criativa, autoral, se quiserem, mais pronunciada do que outros, eventualmente mais preocupados em perseguir caminhos familiares e genéricos, quando os mesmos autores lançam a ideia de existirem “pseudo-colaborações” mas sem providenciar quaisquer exemplos concretos leva-nos a, mais uma vez, levantar a questão daquele elitismo generalista. Se pensarmos na colaboração existente mesmo em casos de “sistemas de estúdio”, como por exemplo no de Hergé, no de Simon e Kirby e, mais tarde, na bullpen da Marvel comandada por Stan Lee, ou nos estúdios de Tezuka, etc., sabemos que as questões são bem mais complexas do que se esperaria. E alguém coloca em dúvida a “paternidade” de Dave Sim, Frank Miller, Moebius, Will Eisner, Urasawa sobre as suas obras respectivas mesmo sabendo do trabalho necessário dos assistentes, colaboradores, editores, coloristas, etc.?

E arriscaríamos mesmo a dizer que, em alguns casos dos nossos dias, a colaboração criativa entre artista e escritor, mesmo no seio do mainstream, é muito mais íntima do que há décadas atrás. Por outro lado, como pensar nas questões implicadas em projectos tais como La guerre d’Alan, American Widow, Aya de Youpougon ou certos projectos afectos à Frémok? Jamais são citados, por isso não saberemos. Mas a sua ausência é palpável e modela as considerações presentes.

Haveria, seguramente, muito a dizer sobre cada um dos capítulos, ou temas debatidos, alguns dos quais são particularmente fortes e interpelantes – a discussão em torno da nostalgia é francamente produtivo, e em larga medida cria um retrato exacto de alguma da “cultura da banda desenhada” -, mas estamos a concentrar-nos talvez nos aspectos menos conseguidos, e que matizam o alcance do livro.

O propósito deste livro, então, não é tanto colocar em questão o termo, mas antes justificá-lo com os vários argumentos esgrimidos ao longo das suas páginas. No fim do dia, como se costuma dizer, o livro acaba por se confinar nos discursos tradicionalistas da banda desenhada, quase justificando uma atitude que se tem notado cada vez mais de quem a lê somente pelo foco académico. Que seja um bom ponto de partida, não o negamos, mas terá de ser compreendido como uma estação na fronteira de um país bem mais alargado do que ela parece prometer.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, a Derek Royal, Nuno Pereira de Sousa e Benoît Crucifix pelas discussões e, naturalmente, a Jan Baetens, por tudo.

13 comentários:

  1. Ai a questão da definição causa tantas ansiedades.
    Ia escrever um rant sobre a graphic novel, mas depois de ter lido o teu texto todo, percebi que já partilhas todos os problemas que eu tenho com o termo, ou pelo menos com a sua sobreposição ou diferenciação dos comics (e que os discutes de uma forma mais completa do que eu poderia ter feito).
    Faz-me confusão que (julgando pelas passagens que citas) que a argumentação que os autores apresentam para justificar a elevação da graphic novel ao nível do meio, separado dos comics, parece coincidir na perfeição com a descrição de um género.

    Hugo A.

    ResponderEliminar
  2. Na verdade, os autores não procuram uma "definição geral", como exprimem directamente, mas procuram estipular vários "níveis" de discussão que levariam então a essa distinção dos objectos cobertos por este termo e as outras coisas: e assim falam de aspectos formais (passando desde a composição de página, as formas de publicação e até os estilos), de conteúdo (basicamente insistindo não em "géneros literários" mas na seriedade e sofisticação dos discursos e representações), depois voltam aos formatos de publicação (para falar de serialização, por exemplo), e terminam a falar de modos de produção e distribuição... Basicamente os autores acreditam no adágio de "não deitar a água do banho fora com o bebé", sendo o bebé o próprio termo e a água do banho a canga "essencialista" e "elitista" que criaria as distinções. Eles querem argumentar por um termo "aberto", "flexível", "sensível ao contexto", etc., precisamente para evitarem que seja um termo somente discutido ou proposto por "jornalistas, editores e livreiros", procurando então criar uma boa base académica.
    Dito isto, penso que é uma pena tremenda que não se tenha permitido a académicos desta craveira (estamos a falar de dois gigantes!) pensarem transversalmente esta questão, criando mais uma vez uma divisória insustentável entre os dois lados do Atlântico (e nem vamos falar da ausência de outros pólos, ok?), e insistindo, até certo ponto, num determinado cânone, independentemente das menções a outras obras.
    P.

    ResponderEliminar
  3. Ha, já agora... o Ian Hague tem um texto excelente em que analisa essa mesma ansiedade da definição, vale a pena lê-lo. Quanto a mim, cada vez mais estou convencido pelo Noël Carroll e outros filósofos que menos do que uma "definição", mais vale uma "descrição histórica".

    ResponderEliminar
  4. I'll third that!
    Tens esse texto do Ian Hague em .pdf, que mo possas enviar?

    ResponderEliminar
  5. Olá Pedro:

    Pode ser de interesse para os teus leitores (e só agora é que percebi como os dois posts estão intimamente ligados):
    http://tinyurl.com/pvvuve3
    http://tinyurl.com/nfcsr5n

    ResponderEliminar
  6. Olá, Domingos. Em primeiro lugar, obrigado pelos links. Tenho quase a certeza absoluta que a maioria, senão a totalidade, dos leitores deste espaço conhecerão o teu, e acompanharam essa discussão. Deveria ter entrado em melhor diálogo com os teus textos, na verdade, mas há sempre pequenos focos diferentes. A denominação está aí e vingada, mas infelizmente cria de facto mais problemas do que soluções, se bem que tenha permitido, qual pé-de-cabra, a entrada da banda desenhada num mercado do qual estava afastado há décadas, senão "desde sempre". Todavia, não me parece que seja particularmente preocupante que o termo seja empregue para géneros, estilos ou até mesmo "graus de seriedade" diferentes, já que o mesmo ocorre noutras áreas artísticas, e é responsabilidade da crítica entender que valores se esgrimam em cada texto, em vez de empregar o termo como uma palavra mágica de distinção.
    Não me faz confusão nenhuma que existam "graphic novels for kids", tal como não me faz confusão que existam romances, filmes (curtas ou longas-metragens), etc., cujos elementos possam ser pensados com leitores distintos. Existem de fato modos de aproximação aos objectos e artes, e a existência de gradientes não me parece ser problemática, em termos artísticos e democráticos (ainda que acredite que uma e outra senda possam, sem dúvida, ser incompatíveis).
    O livro do Baetens e Frey era promissor enquanto projecto, mas a sua elaboração traz alguns escolhos, senão mesmo uma nova bateria de problemas, sobretudo se tivermos em conta que pode correr o risco de ser visto como uma "autoridade" e velará sobre as suas "novas verdades", contra as quais "blogueiros maldicentes e chatos" (desculpa arrastar-te!) não poderão muito... As tuas farpas são, como sempre, contundentes e bem lançadas, e provavelmente eu sou um nadinha "paninhos quentes". Dito isto, continuo a achar que vale a pena marchar...
    Obrigado!

    ResponderEliminar
  7. Olá Pedro:

    De forma menos contundente, é verdade, acabas no teu texto, sobretetudo na parte final, por dizer o mesmo que eu digo: os autores não focam o que deviam focar com a atenção que aquilo que deviam focar merece (então aquela do Floc'h brada aos céus!). Mas essa não é a parte mais importante. A questão de fundo é a tal da "graphic novel for kids". E aqui eu acho que fui claro ao dizer que se trata de uma questão de política editorial. Retiraria até o editorial (porque soa demasiado a jornalismo) e diria mesmo que se trata de uma questão de política tout court. Ou de política comercial, para ser mais exacto. Só que os académicos não podem ter cor política; não podem defender umas causas em detrimento de outras. Compreendo esse escolho, mas os autores podiam pelo menos ter tentado contorná-lo. Não vi o mínimo esforço da parte deles para o fazerem. Antes pelo contrário e, o que é pior, não evitaram servir a causa opposta porque isto da virgindade e da objectividade e etc... e tal... é tudo treta.

    ResponderEliminar
  8. Sem dúvida. Aliás, eu discuti aspectos do livro com um dos autores antes de o ler, e assisti mesmo a uma curta discussão pública. O aspecto do anglocentrismo deveria ser claro no próprio livro, em detrimento de um discurso sério. Se se pretende - e eu e tu e muitos outros sabem que estes são dos autores cultos, sérios e de gostos "não-heterodoxos" - criar um manual académico para ajudar à transformação da percepção social da banda desenhada, dever-se-ia começar por instrumentos claros... Há aqui um ponto de partida algo manco. Vou ler agora um livro imenso elogio ao Eisner. Provavelmente será mais "honesto", digamos assim, nos seus propósitos e instrumentos, mesmo que vá seguramente sublinhar os mitos. Mas é com eles que se cria a História?

    ResponderEliminar
  9. Olá Pedro,
    Confesso que a mim esta discussão diz-me pouco ou nada e que concordo (e aprendo) em absoluto com o que escreveste na tua entrada e com os comentários do Domingos Isabelinho e do Hugo A. Só apareço aqui por estranhar que surja a referência longínqua aos Kibyōshi e que não se aproveite para recordar o testemunho mais próximo do Yoshihiro Tatsumi que podemos encontrar no seu “A Drifting Life” acerca da mesma ansiedade de definição por uma banda desenhada mais adulta.
    Na década de 50 do século passado, também os autores de banda desenhada japonesa quiseram criar a ideia de uma mangá mais à frente e romperam com a temática infantil do argumento e do traço. Os termos “Komaga” e o mais reconhecido “Gekigá”, não se traduzem por novelas gráficas, mas revelam até uma maior preocupação na caracterização da estrutura da página e da proximidade do desenho à realidade, ou pelo menos à realidade cinematográfica.
    Não me parece nada assim de tão diferente que uns anos mais tarde, do outro lado do Pacífico, outros autores aspirassem à maioridade artística do seu trabalho e aproximassem a banda desenhada desta vez à literatura. Também na Europa franco-belga encontraríamos uns anos anos um movimento paralelo.
    No Japão o “Gekigá” já estará em desuso, parece que sopram ventos de nouvelle vague mangá, e o romance gráfico seguirá provavelmente o mesmo caminho. Talvez o único contexto em que se encontrará interesse nesta discussão será o histórico e mesmo assim, se passarem as décadas suficientes, adivinha-se que se deixará cair o tema da mesma forma que se deixou cair a controvérsia à roda da palavra “romance” - escrever à moda de Roma. É um pouco ambíguo como classificação de um género e também parece confundir-se com o meio.
    Se de alguma coisa servirá a eternização desta discussão será pelo efeito Lenny Bruce que poderá produzir nos seus espectadores: após a saturação semântica do termo “graphic novel” (graphic novel graphic novel graphic novel), pode ser que a definição perca o seu peso e sentido.
    Admito sem nenhum embaraço que me tenho descolado cada vez mais dos consumos de cinema e literatura substituindo-os pela banda desenhada e que me sinto mais adulto por isso. Talvez a banda desenhada possa também fazer isso por ela própria.
    Obrigado e um Abraço.
    José

    ResponderEliminar
  10. Olá, José.
    Bom, com todo o respeito, mas o argumento de que não se mencionou "x" numa conversa complexa desta natureza é algo inoperante, já que falta também citar "a", "b", "c" e muito provavelmente teríamos de ir a outros alfabetos e sistemas de escrita. Um exemplo é um exemplo é um exemplo, e se falei desse tipo de textos, era apenas para assinalar a ausência quase completa de considerações sobre a banda desenhada japonesa, que continua a ser ainda o pólo mais significativo e influente da Ásia, apenas contrabalançado pela França-Bélgica e os Estados Unidos. Seja como for, eu havia escrito sobre esse livro do Tatsumi (aqui: http://lerbd.blogspot.pt/2009/09/drifting-life-yoshihiro-tatsumi-drawn.html), e parto sempre do pressuposto que as discussões tidas aqui são feitas por pessoas com capacidade de esgrimir vários argumentos e de navegar por estas complexas águas (como tu, sem dúvida).
    Dito isto, à Cavaco Silva, raramente ou quase nunca utilizo este termo "romance gráfico", mesmo que em francês o faça para me reportar à colecção (A Suivre) e a alguns títulos específicos, mas num contexto de especificação, nunca de generalização.
    Por outro lado, abandonar uma coisa em nome de outra não me parece o melhor caminho: mais de tudo.
    Abraços.
    Pedro

    ResponderEliminar
  11. Pedro,
    Falei do Tatsumi e do Gekigá porque me pareceram um elefante na sala desta discussão. É claro que li o teu post de 2009, talvez em 2012, sei perfeitamente que quando aqui refiro alguma coisa, a ti estou simplesmente a mostrar fotografias antigas das estrelas :-) e digo isso com uma grande admiração pelo teu trabalho e talento, como tu sabes.
    Não tenho o sonho juvenil de aspirar ao ecletismo de que poucos como tu são capazes, não está ao alcance de todos, certamente não estará ao meu, e assim há que dosear a "roda dos alimentos" segundo aquilo que me fará sentir melhor. Parecerá pouco ambicioso? Talvez para quem está a começar, mas da minha perspectiva penso que toda a discussão é algo serôdia para quem começou há muito, como no caso da BD. E, perdoa-me a provocação, mas relativamente à utilização que fazes do termo poderemos dizer que estás já num momento de sístole quanto ao mesmo e que os teus distintos colegas na diástole? Duma maneira ou de outra, parecem-me ambos uma forma de pressão sobre a BD ou pelo menos sobre os leitores (se não mandasse esta morria eheheheh).
    Outro Abraço,
    José

    ResponderEliminar
  12. O contexto é (quase) tudo. Esta discussão só faz sentido no contexto norte-americano (e, por uma vez, é mesmo norte-americano porque a iniciativa partiu do Canadá). Existe noutros países apenas porque o resto do mundo Ocidental segue sempre o que se passa na capital do império. Vou mesmo mais longe e digo mesmo que esta discussão só faz sentido no seio do BISAC (e não se pense que, como tenho dito, Chris Oliveros conseguiu tudo o que queria, longe disso). De resto, um romance gráfico, ou o que se queira chamar, é banda desenhada autoconclusiva publicada em livro. Pela minha parte, e porque pertenço ao partido do Oliveros, acho que é "um livro autoconclusivo de banda desenhada de temática adulta", para outros poderá incluir tudo o que se quiser...

    ResponderEliminar