Deixamos aqui o texto que lemos no dia da abertura (com ligeiras modificações), esperando que complemente todos os outros materiais textuais disponíveis (o panfleto à entrada, o jornal da exposição). "Manifesto" aqui deverá estar quer no seu sentido dissertativo como no de declaração de carga, digamos assim. As fotografias foram disponibilizadas pelos serviços do museu, e espero que sirvam para abrir o apetite. (Mais)
A SemConsenso. Banda Desenhada, Ilustração e Política mostra o trabalho de 22 artistas que trabalham em disciplinas tais como o cartoon editorial, a ilustração, a banda desenhada, o mural, o desenho narrativo, que têm tido uma saúde de ferro nas últimas décadas em termos de produção e inventabilidade, mesmo que isso não se tenha traduzido pelas moedas mais correntes, a fama e a recompensa financeira. Não é que elas não sejam importantes, mas pela sua usual ausência, não são o motor destes trabalhos, o que reforça ainda mais a sua eficácia e poder. O foco da exposição é uma ideia muito especial do político, que se informa a partir da leitura do filósofo contemporâneo francês Jacques Rancière. Remeto os interessados para o texto no jornal da exposição, disponível gratuitamente no Museu, para uma sustentação teórica mais elaborada, ficando, nesta apresentação, por uns brevíssimos apontamentos.
A
ideia de política que aqui se propõem não tem nada a ver com os
esforços de lutas partidárias, nem com desejos de tomadas de poder.
Tem a ver com uma possibilidade de tornar visível e exprimível
certas experiências que muitas vezes estão arreigadas dos usuais
canais de comunicação da política usual. É muito curioso que as
forças do poder em vigor muitas vezes afirmem que as suas acções
são cumpridas por uma razão “objectiva”, “inevitável” e
que são sempre os “outros” que se movem por “princípios
ideológicos”. Mas como sabemos, a “ideologia” deve ser
entendida não tanto como um pensamento sistemático e organizado em
princípios, precisamente, mas antes como a formação do sujeito, as
próprias condições de possibilidade de se ser sujeito, isto é,
ter acesso a uma voz, um espaço de actividade política e capacidade
ainda de expansão dessa ambição.
Querer
o contrário é como se se desejasse reinstituir classes ou castas,
diferenciando entre patrícios e plebeus, isto é, aqueles que podem
debater a política, que podem pertencer às mesas de diálogo que
lhe estão alocadas, e aqueles que ficam de fora. Seria mais simples
para gerir, sem dúvida: a democracia é uma chatice.
Se
passearem pelo museu, deparar-se-ão com uma citação de Alexandre
Pinheiro Torres, que discutia o significado do Neo-Realismo em 1976.
Dizia ele que pela força da história havia que reiterar o
Neo-Realismo então. Ora, estou em crer que uma das importâncias em
apresentar estes
trabalhos neste
museu é uma forma também de reiterá-lo nos nossos próprios dias,
se não em todos os seus traços programáticos ou mesmo as opções
de forma, pelo menos no seu objectivo mais basilar: formar mais
democracia.
Rancière
chama aos museus uma “forma de recortar o espaço comum e modo
específico de visibilidade”. Essa é uma das razões pelas quais
não encontrarão os trabalhos numa só sala, apenas emoldurados.
Eles estão espalhados na fachada do museu, no foyer,
no hall
de entrada, estão espalhados nos pisos 3 e 2 por entre todos os
objectos e obras que já constituem uma outra exposição, do museu,
Batalha pelo
Conteúdo.
Estão mesmo nas casas de banho. Poderão identificar essas
participações pelas legendas num verde vivo, mas cabe a cada um dos
visitantes criar as possibilidades de diálogo entre estes trabalhos
e aqueles já existentes no espaço: as pinturas, esculturas, filmes,
músicas, documentos, etc. Não há respostas certas. Há perguntas
pertinentes para descobrir as coisas.
Quando
se fala de um qualquer esforço colectivo, gosto de falar em
constelações. Esta palavra é muito precisa: uma constelação não
existe em si mesma, mas na perspectiva de quem a desenha. Existem
pontos isolados, que podem ou não partilhar características, e
depois faz-se um desenho unindo-se esses pontos. Eu fiz um desenho,
haveria outros desenhos seguramente.
Qual
é esse desenho, feito por estas participações em particular, de
artistas de várias gerações, de tantas naturezas formais
diferentes, que trabalham em objectos diversos, que são tão
diferentes entre si em termos de personalidade, formação, atitude,
“engajamento”, etc.? As mais das vezes é pensarmos que uma obra
de arte representa qualquer coisa, retrata um aspecto do real. Mas a
verdade é que estes trabalhos não estão a representar nada, como
se estes textos visuais estivessem do lado de fora do real. Eles são,
todos, gestos que pertencem a esse mesmo real, constituem-no e
alimentam-se dele. Os visitantes não procurarão aqui imagens que
depois identificarão como tendo associações à realidade que
conhecem. Colocarão umas e outra em diálogo e, se tudo correr bem,
alterarão ambas.
Uma
breve nota sobre o título. “Sem consenso”, no seu sentido banal,
é a dissensão. A dissensão não pode ser entendida aqui como uma
voz do contra, reactiva e que, por isso, cumpre as regras do jogo.
Ela abre o campo do possível, logo abre o campo de quem tem acesso à
expressão ou não, de quem pode fazer política ou não. Por isso há
um foco particular para com trabalhos que, de uma maneira ou outra,
olham para a vida quotidiana, por vezes até informada pela fantasia,
o desvio do desejo, a súbita pulsão onírica, já que tudo isso faz
parte da tessitura da vida. Isso é constitutivo do próprio real.
Outros trabalhos são o que chamo de endereçados:
reconhecerão as figuras públicas a que se dirigem. Mas mesmo nesse
caso, muitos destes autores estão a ir mais longe no que se pode
dizer com essas mesmas figuras, expandindo, sempre, um entendimento
do campo da política. São novas regras, novos jogos.
O
perigo está sempre à espreita, porém. E se democracia significa
fazer sempre mais, e mais democraticamente, é preciso ver, pelo
canto do olho, onde surgem os obstáculos. Podemos dizer que a
censura não existe. Bom, se antes era a do Estado, repressiva
através de corpos identificados, hoje ela está nas mãos do
mercado, de um poder mais atomizado, uma entidade mais difusa, uma
mão invisível. Ou, pelo contrário, bem visível, torcida sobre si
mesma como nos desenhos do Miguel Carneiro (os “Mamões”), e
prontas a reprimir mais eficazmente. Porque o gesto que essa mão faz
mostra o que ela própria chama de “caminho inevitável”, um
caminho único, uma recta a que todos temos de nos submeter.
Não
temos.
Espero
que o périplo aberto a que esta exposição convida vos faça ver
que não há caminhos únicos.
Nota
final: gostaria de deixar aqui os agradecimentos à Câmara Municipal
de Vila Franca de Xira, e à Direcção do Museu do Neo-Realismo por
ter acolhido de braços abertos este projecto. A David Santos pela
primeira empatia, a Dra. Fátima Roque e o Professor Doutor António
Pedro Pita pela condução do projecto, e à equipa de produção,
cuja dedicação e brio foram notáveis. Assim, um bem-haja à Maria
de Lurdes Aleixo, Helena Seita e Fernando Marques, assim como a todas
as outras pessoas que tornaram o trabalho de concepção e montagem
um processo fluido. Um agradecimento especial a todos os artistas que
aceitaram este desafio, e sobretudo por me terem dado carta-branca a
pôr e dispor dos seus trabalhos de maneira a sublinhar a ideia.
Olá Pedro,
ResponderEliminarEstou em perfeita sintonia quando dizes que vivemos tempos de transferência da censura do domínio público, dos estados, para a esfera privada, mas reformularia, se me permites, o pressuposto de que será um fenómeno atomizado decorrente da acção da "mão invisível" dos mercados. Essa descrição clássica de Adam Smith já não terá aplicação nesta fase de capitalismo tardio em que nos encontramos. O mercado atomizado, mais próximo da concorrência perfeita, onde a entrada ou saída de players não afectaria o jogo das forças da oferta e da procura já ficou muito para trás. Do meu ponto de vista, o que agora assistimos é a um fenómeno paralelo e sublimado de aproximação às economias de planeamento central, uma deslocação do eixo do poder dos estados para as grandes concentrações de capitais que se assumem como entidades supra-estatais capazes de influenciar as políticas globais, assegurando a substituição do modelo do estado social pelo do capital social. Não é surpreendente que a censura seja assim tratada como mais uma parcela de propriedade dessa transferência.
Como sabes, tive a oportunidade muito recentemente de observar in loco esse fenómeno quando uma exposição de cartunes sobre as lutas sindicais dos trabalhadores do sector da aviação a ser instalada no aeroporto de Lisboa foi censurada à última da hora pela direcção do aeroporto, sendo a gestão dos aeroportos portugueses uma actividade que recentemente foi transferida do sector público estatal para o sector privado multinacional, neste caso maioritariamente francês mas pouco ou nada Charlie. De facto, o desenho também é uma arma, e aquelas pranchas, apesar de não ofenderem qualquer cultura, povo ou religião foram proibidas de ser exibidas dentro duma infraestrutura semipública detida por privados e houve que recorrer à autarquia de Lisboa para que fosse permitida a exibição das peças no espaço público diante do aeroporto. Com a transferência do público para o privado estaremos a assistir agora também a uma inversão de sentido? É o estado que nos vai defender da censura? Como piada não é das mais alegres.
Prometo não deixar passar Novembro sem visitar a exposição.
Obrigado e Aquele Abraço.
José