11 de dezembro de 2015

Amores de família. Carla Maia de Almeida e Marta Monteiro (Caminho)

Na vida diária, na linguagem quotidiana, muitas palavras são empregues de modo despreocupado, sem que o peso da sua etimologia ou do seu uso particular e informado por uma perspectiva específica tenha aí papel. Mas noutros contextos, elas distinguem-se, por meio de subtilezas ou concretudes teóricas, cujo objectivo não é tanto alterar a natureza do seu emprego diário, mas antes ajudar a pensar, em contexto especial, de modo mais cuidado. A área difusa a que se tem dado o nome de “Teoria dos Afectos” , um campo interdisciplinar que nasce da psicanálise mas se entrosa por outros territórios, distingue sentimentos, emoções e afectos. Estes últimos são como que reacções corporais pré-cognitivas, isto é, pré-pessoais, e são depois estudadas como categorias específicas. Os sentimentos estão associados, como que bordados, na tessitura do pessoal, do biográfico. As emoções, por sua vez, são sociais, aprendidas, construídas ou tecidas, nunca na solidão. (Mais)
A palavra família também poderia ser vista quer do lado da linguagem de todos os dias, agregada a problemas de uso, de programas ideológicos específicos, de automatismos culturais, quer do lado de uma reflexão mais cuidada, e que permitisse um pensamento mais matizado (e se fôssemos pela etimologia, ficaríamos horrorizados). Amores de família é um livro paradoxal na abordagem a essa mesma palavra, uma vez que tanto poderia ser compreendido como uma colecção de situações diárias, quase banais, sem grandes tremores, e por outro é uma pequena e profunda revolução no entendimento dessa mesma noção.

A noção de família, como qualquer outro factor social complexo, foi ou é alvo de revisitações e reformulações contínuas, associadas às transformações que têm lugar na sociedade em que emergem, sejam elas do foro económico, político, moral, cultural ou até tecnológico. Factores de trabalho (labor) reprodutivo e doméstico são absolutamente centrais, mas entrosam-se com muitas outras linhas de desenvolvimento. É curioso que, por vezes, se lhe acrescente o qualificativo “tradicional” para descrever uma sua determinada configuração, esquecendo-se que essa mesma “configuração tradicional” terá a sua própria história e, muito provavelmente, que ela corresponderá a uma distribuição bastante recente. A expressão particularmente idiota de “família nuclear” ainda mais recente e inoperativa é, uma vez que tem um alcance extremamente reduzido.

Uma definição é, por definição, a especificação de condições suficientes e necessárias para que um termo faça sentido. Assim, para definirmos “família”, mesmo tendo em conta que não se trata de um martelo, uma cadeira ou uma palavra passível de ser redefinida em jogo, teríamos de encontrar quais são os seus elementos suficientes e quais os necessários. Quanto aos segundos, parece-nos ser claro: é preciso que haja pessoas envolvidas. Suficientes, talvez as linhas que aliem aquelas numa rede qualquer que, sob a tempestade das emoções que se vão formando entre si, se mantenha enquanto tal.

O novo livro das palavras de Carla Maia de Almeida, e ilustrado pelas imagens, àquelas adicionando significados, por Marta Monteiro, é uma espécie de armadilha que capta esses elementos no seu voo. Se se pensar que estes temas não têm lugar nos livros infantis, então o que se anda a colocar neles? Afinal, se cremos que o acto de leitura – própria ou acompanhada – é desde logo um dos mais fundamentais exercícios de cidadania e de busca pela autonomia, é fundamental que certos valores e modelos de pensamento sejam explorados desde logo. Claro está que poder-se-á considerar que os “valores” de Amores de família não são aqueles que o leitor x ou y quererão passar no processo eleito de aculturação, mas afinal de contas a decisão de se escolher este livro (estes gestos, estas formas, estas posições) são desde logo garante de maior democratização daquele processo de autonomia e cidadania, afinal. Juízo de valor? Sem dúvida.

Os textos são, a cada duas páginas, autónomos. Há uma distribuição para cada pai, de maneira a compreender distribuições não só de funções, mas de humores, de capacidades, de talentos, de fontes de aprendizagem, o que é corroborado pela colocação das personagens “principais” em lados distintos das composições na maior parte dos casos. Quando forçoso, há um tio ou tia, há avós. Sendo somente descritivos das personagens que se apresentam, a coincidência entre os nomes e os “pais visíveis” é mais adivinhada que segura. Não há, porém, aliança narrativa entre essas famílias, e muitas pistas de representação visual apontam para localizações e culturas distantes entre si (possivelmente numa roça de São Tomé e Príncipe uma cena, seguramente numa aldeia Quechua ou Aymara outra, várias nas sociedades do mundo ocidental). O facto de os nomes de todas essas personagens serem oriundos dos mitos greco-latinos (há uma navegação estocástica por esses papéis e nomes) é mais uma desculpa do que uma procura por correspondências de exactidão. Talvez pensando nas relações familiares existentes entre essas personagens clássicas, nem sempre pautadas pelo equilíbrio, o amor incondicional e o respeito mútuo, mas muitas vezes atravessadas pelos ciúmes, a violência, a morte e a vingança, é curioso que sejam recuperadas para outras vivências, mais ao rés-do-chão e atentos.

Também há uma diferença entre a emoção e a paixão. A paixão é mais “animada”, exteriorizante, expressa de modo “visível”, convidando à acção e bastas vezes associada a esforços políticos. Os deuses exerciam-nas, e nos tempos que correm elas também se arvoram de maneira a que a bandeira da “família” se alargue. As configurações familiares aqui passam por variações de um mesmo gesto. Existem famílias “ditas” tradicionais (ora pois), aquelas que contam com a presença de várias gerações ou ramos filiais, mas também aquelas que se alargam por segundos casamentos ou uniões; há ainda aquelas formadas por dois pais ou duas mães; as que passam por processos de adopção ou de acolhimento; e ainda aquelas que terão dois progenitores de dois enquadramentos étnicos e/ou culturais diferentes. O gesto que os une, claro está, é o mel que os une precisamente uns aos outros, para que se compreenda o que quer dizer família.

Tal como no caso de Todos fazemos tudo, de Madalena Matoso, ainda que sem a dimensão ludo-combinatória, e recordando O livro do Pedro no seu “combate ameno”, temos também a importante faceta de todas as personagens estarem no meio de acções, e estas não estarem predeterminadas de modo algum. Aliás, uma outra dimensão importante de notar é a da escala social, não havendo neste livro apenas famílias de “classe média”. Algumas parecem mesmo pertencer a escalões superiores, e outros tantos a classes trabalhadoras, em alguns casos até mesmo bem limitadas em termos de recursos financeiros. Isso torna o projecto politicamente mais interessante ainda, claro, uma vez que não está a tomar decisões sobre a justeza ou a qualidade do amor conforme as classes, seja em que direcção (num eixo vertical?) for. Se o “capital económico” e até o “cultural” pode ser alto ou baixo, o “capital familiar” é maximal em todos os casos.


As imagens tiram partido de composições variadas que, de quando em vez, nos poderão fazer pensar em modelos consabidos (Le déjeuner sur l’herbe para um dos pais Apolo e mães Diana), mas essas cenas são menos para criar redes intertextuais (visuais) do que para derrubar distribuições sexuais e, novamente, predeterminações sociais. Marta Monteiro, que tem sublimado paulatinamente o seu desenho a uma espécie de construção por blocos cromáticos que se acumulam, imitando o princípio da serigrafia ou do pochoir, até ao ponto de mimar o seu “grão”, para construir figuras (no caso presente, com uma exploração bastante nítida de figuras humanas, respeito pelas relações espaciais e perspectivais, etc.), espraia-se aqui num leque reduzido de matizes – a predominância do laranja e do azul, e o “vazio” do branco, é claríssimo – para sublinhar os pontos comuns e sempiternos do movimento da tessitura da família (muitas vezes, parece-nos ver ecos de Alain Grée). 

Suficientes, cada destas pessoas de papel, necessárias, cada acção que os junta em família.
Nota final: este volume pertence ao acervo da Oficina do Cego, após doação da editora por ocasião da exposição Rodapé. Agradecimentos a todos os intervenientes. 

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