23 de dezembro de 2015

Roturas e ligamentos. Rita Taborda Duarte e André da Loba (Abysmo)

André da Loba não concorda com Rita Taborda Duarte. “Concorda” deriva do latim concors, concordis, isto é, “coração” (cor)” + juntos” (com-). O coração de Loba não está junto ao coração de Duarte. Por essa razão, talvez, este Rotura e ligamentos, que poderia ser descrito apressada e sumariamente como “volume de poesia ilustrada”, são na verdade dois volumes, um de poesia de Taborda Duarte, outro de desenhos de da Loba, encadernados de maneira a perfazerem um só volume, um corpo geminado, siamês. Caberá ao leitor ou leitora manipular o livro de maneira a que, lendo os poemas e vendo os desenhos, acerte o ritmo de cada um desses corações e, com os ritmos resultantes, chegue a resultados harmónicos, díspares, contrastantes, complementares, dissonantes, coincidentes. Há aqui um Tristão e uma Isolda, como veremos, resta saber se há noite que os una. (Mais) 

Os desenhos de André da Loba não estão propriamente para os poemas de Rita Taborda Duarte numa lógica de ilustração, enquanto respostas ou embelezamento deles. Mas tampouco são os textos da poetisa (de resto, alguns deles já éditos) escritos de uma forma que os vazasse num projecto “ilustrado”, o que a autor perseguiu noutras ocasiões, quer enquanto escritora de literatura ilustrada infantil (sobretudo com os seus magníficos projectos acompanhada de Luís Henriques) quer enquanto poetisa onde a imagem ou a materialidade do objecto-livro não é de somenos. O que ocorre em Roturas e ligamentos é uma conjunção, um dar as mãos, que não procura maior intimidade do que essa, mas cujo entrelaçar dos dedos convida de imediato a que percorram um caminho paralelo.

No que diz respeito aos poemas, não somos nós as pessoas mais indicadas a fazer uma leitura crítica. O livro em si apresenta-se com três blocos: “Roturas”, “Ligamentos” e “Fractura exposta”, cada um deles com conjuntos de textos que são mais ou menos coesos em termos estilísticos e temáticos. Os dois primeiros constituem uma unidade na divergência, até pelos próprios títulos, onde em primeiro lugar se auscultam as razões de distância entre um “eu” que fala e um “tu” que recebe os poemas, e depois, mantendo a mesma economia narrativa entre essas hipotéticas personagens, se procuram as razões antes da aproximação, mormente erótica. O terceiro livro apresenta “instantâneos” (que recordando-nos uma obra de António Pocinho), em que o poema, a um só tempo em abstracto mas enquanto objecto concreto, conhece revelações associadas directamente ao acto fotográfico.

Uma família vocabular relativamente restrita atravessa todos os poemas, recordando um António Ramos Rosa ou uma Maria Velho da Costa, igualmente nas suas dimensões eroticizantes. Mas também o universo semântico parece vogar em temas mais ou menos restritos: o jardim, o dicionário, a cama e os eus lençóis, o inevitável corpo e as suas paisagens e transmutações, cigarros, cachimbos e fumo, folhas de outono e o Tejo ao fundo, talvez imóvel, e o próprio acto de escrita e todas as suas fases de labor. São poemas que poderiam ser ditos “de amor”, que constatam a sua existência, que assumem mesmo a banalidade da sua existência e das suas faces/fases. Não se pode, porém, falar de um tom propriamente confessional, uma vez que a linguagem procura antes efeitos como de que descrições objectivas. Não no sentido de uma intencionalidade absoluta de chegar à “verdade”, mas de transformar o descrito num objecto, com dimensões próprias, peso, textura, passível de ser deslocado (repare-se no emprego constante de artigos definidos). Isso talvez explique as decisões tipográficas de deixar espaços pouco naturais na disposição da página: se há casos que podem dar conta de uma indentação que corresponderia a uma pausa na oralidade, na leitura, há outros momentos em que se afasta apenas um ponto, um adjectivo, uma proposição, uma oração inteira, isolando-os como pequenas pedras.

Os desenhos de André da Loba seguem um registo quase industrial, em que as figuras são reduzidas a contornos e porções diferenciadas apenas suficientes para uma descrição sumária dos objectos “a ver” (“homem”, “árvore”, “maçã”, “pulmão”), ou de acções decorrendo explicativamente: “tíbia quebrando-se”, “maçã que é comida”, “maçã que apodrece”, “vulcão que expele fumo”, “homem que se torna pedra numa cama”, “homens combatendo fundem-se em bolha”, “orelhas formando-se e transformando-se em borboletas que esvoaçam”, etc. Mesmo a natureza é reduzida a objectos formatados e de manipulação imediata. O uso de diagramas, esquemas sequenciais, e mesmo questões de composição, empregando vinhetas marchetadas em planos maiores, cortes de secção, por exemplo, aumentam esse grau de “ilustração científica” ou “técnica”, afastando a prática do autor, portanto, da mais banal e delicodoce das ilustrações para a poesia que muitas vezes ocorre. Todavia, se tivermos em conta aquela objectividade a que nos referimos, a concretude das referências e a recorrência dos objectos, então entender-se-á que há um eco perfeito entre imagens e texto. Pelo menos a promessa de que haverá algures um ritmo comum para ambos os corações.

Na verdade, há mesmo alguma coincidência dos “objectos”. Há homens e mulheres, mesmo que apenas em três casos haja uma exploração visual da relação de um com o outro. Há borboletas de asas abertas, novelos de cabelos, camas e lençóis em desalinho, um tabuleiro de xadrez, lábios e ossos, rosas e nuvens, pedras, frutos, árvores de outono, artifícios verdes, fumo e quedas.

Falámos acima, a propósito da “parte do texto”, de paisagens e transmutações providenciadas pela ergonomia do corpo humano, isolado ou em conjunção com outro. Não será de surpreender, portanto, que na “parte da imagem” André da Loba – de resto, também isso ponto recorrente na sua obra – explore tamanhos cruzamentos e mutações. Se podemos identificar uma personagem masculina e umas quantas femininas (ou interpretar estas como sendo a mesma mas em “fases” distintas), os seus corpos atomizam-se em divisões, fatias, secções, elementos: cabeças flutuam, substituem-se, dobram-se, perdem-se no alto no topo de pescoços extensíveis, corações estilhaçam-se, tíbias rompem e corpos tombam, voam, combatem, explodem, fundem-se.



Podemos encontrar pontos do âmago da divergência do sentido. Rita Taborda Duarte escreve que “as palavras da poesia não passam de borboletas/esmagadas/na página do coleccionador://não podem voar” (“A Palavra no Poema”). Repete não gostar de metáforas e de não as empregar, ou de pelo menos não as querer demasiado arrumadas, familiares, prontas. André da Loba, num dos spreads, mostra uma mulher a ler um livro e, paulatinamente, a mergulhar o rosto nele e, assim, a levantar voo vertical. Uma vez que o livro permite um folhear duplo que coloque qualquer poema junto a qualquer imagem, poderíamos imaginar um momento de maior distância, onde outras combinações permitiriam, quem sabe, estreitamentos. O título duplo do livro, então, mesmo que nascendo da conjunção apenas dos poemas, revisitará o projecto como um todo. Por associação superficial de uma forma, este livro estaria eventualmente na senda de um projecto de José Carlos Fernandes, mas onde neste se procuravam efeitos de recombinação sempre narrativa e talvez mesmo re-territorializante, Roturas e ligamentos almeja – questão será: conseguirá sempre? – des-territorializar permanentemente a relação entre as imagens e os textos, presos num leito comum, mas deixando visível a espada que os divide.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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