16 de dezembro de 2015

Bending Steel. Aldo J. Regalado (University Press of Mississippi)

Para Regalado, os super-heróis são “seres da imaginação”. Nesse sentido, eles não possuem em si mesmos princípios ideológicos ou culturais absolutos, mas são antes figuras que são empregues em vários usos e contextos. Este autor não olha para estas personagens como figuras salvíficas, à la Grant Morrison, uma vez que entende de modo sério as limitações intrínsecas às criações da cultura em relação ao poder sistémico, como ele diz. Sendo a modernidade entendida como uns grilhões de aço, porém, essas figuras são metáforas “com criatividade, inteligência, sensibilidade, inclusividade e dedicação suficiente” para as dobrar (228). Mas para entender os instrumentos com que o farão, e o modo como têm respondido ao curso da história, é preciso percorrer os passos para trás e ter uma visão de conjunto. (Mais) 
Este livro tenta um acto de equilíbrio extremamente curioso. Por um lado, a figura do super-herói é aliada a modelos literários que a antecedem, e que com efeito criaram o molde do qual ela sairia mais tarde, sobretudo no que diz respeito aos traços de masculinidade, individualismo, abnegação em nome da missão, e questões afectas igualmente à etnicidade, já que os heróis, preenchendo o papel do “americano ideal”, não apenas seguem cegamente uma sua noção preconcebida, como a dilatam, distorcem, transformam e, em última instância, influenciam. Por outro, ela é estudada na sua vida “interna”, isto é, nos desenvolvimentos conceptuais e actanciais que foi sofrendo ao longo de setenta anos de “uso”. Como denominador comum de todo esse edifício está a ideia de “modernidade” (e, necessariamente, de “pós-modernidade”), e a maneira como ela dialoga com a realidade americana: nessa fricção, o super-herói terá um determinado comportamento, e é isso o que é estudado por Aldo J. Regalado.

O autor, portanto, está menos interessado numa definição essencialista ou de elementos constituintes (um trabalho já cumprido por Peter Coogan, por exemplo), mas antes numa sua descrição histórica, olhando para raízes recuadas na cultura nacional. Recentemente, surgiram mais dois títulos afectos à história deste tipo de personagem, a saber, On the Origin of Superheroes, de Christopher Gavaler, e The Superhero Costume, de B. Brownie e D. Graydon, sobre os quais falaremos mais tarde. O primeiro parece focar-se porém em contextos históricos menos dilatados do que o caso de Regalado, assim como concentrar-se nos elementos constituintes da figura. O segundo, elegendo a questão dos uniformes, trilhará decerto um caminho bem distinto, quase semiótico, de cada elemento que compõe o uniforme.

Os leitores de Comics as Philosophy já se haviam deparado com um seu ensaio, onde estas questões eram apresentadas de modo mais sucinto, podendo aqui revisitar uma argumentação mais desenvolta. Regalado é de facto um historiador cultural, por isso não encontraremos aqui novamente as anedotas da criação das personagens, ou as novelas editoriais. Elas não são colocadas de lado, mas estão presentes somente para sustentar um discurso que está mais preocupado com os papéis societais que cumpriram e fundaram. Deste modo, todos os agentes nessa complexa equação são contemplados: está os criadores e os editores, claro, mas o autor vasculha igualmente cartas, publicações de fãs, notícias, etc., para ter acesso à voz dos consumidores, procurando aí respostas às questões que vai colocando. É possível que leitores bem informados na origem e desenvolvimento de personagens tais como o Super-homem, Batman, Mulher Maravilha, Capitão América e os heróis da Marvel de 1960 poderão não encontrar muitos “factos novos” nos últimos capítulos, mas é mais importante a sua contextualização nova, e análise cultural cuidada. Além do mais, Bending Steel tem uma elegância incomparável, tornando a leitura desta linguagem escorreita, culta, de argumentação clara igualmente um prazer.

O livro está dividido em seis capítulos, respeitando certas divisões cronológicas, que o autor identifica, seguindo outros historiadores ou até fases mais ou menos canónicas da história dos Estados Unidos, como momentos distintos da modernidade (“industrial”, “atómica”, etc.), a qual é entendida como uma rede complexa de desenvolvimentos tecnológicos e industriais, crescimento das cidades e subsequente imigração, transformações a nível económico e político, mudanças culturais nos papéis sexuais, das etnias, etc.

São os primeiros capítulos, talvez, os mais “originais”, por o autor recuar na literatura americana, “atrever-se” a fazer associações directas ou mesmo que oblíquas pertinentes e produtivas, e não se coibir de procurar uma textura matizada. Em primeiro lugar, recua-se às primeiras instâncias da “literatura autóctone norte-americana”, ante-Guerra Civil, e depois da Revolução, num país que, pela primeira vez, tem de se debater com a modernidade sozinho. Os livros de James Fenimore Cooper, e sobretudo a personagem Natty Bumppo (que os leitores conhecerão d'O último dos moicanos (curiosamente, um dos seus apodos é "Hawkeye"), serviriam a formação de um “carácter nacional”, asseverando privilégios de classe, etnia, sexo, e fomentando a ideia dinâmica da competição. Porém, com a continuação do século XIX, surgiriam contra-modelos a essa masculinidade triunfante: os heróis “ineficazes” (palavras de Regalado) de Edgar Allan Poe e do Gótico Americano, mas também os heróis das classes trabalhadoras das dime novels. Este é desde logo uma dimensão importantíssima no estudo de Regalado. Ele não se limita simplesmente a ver continuidades nas características que superficialmente se podem pensar definir os super-heróis – uma visão conservadora, individualista e violenta da sociedade americana -, mas procura ver que tipo de negociações, tensões e diferenças existiam entre os protagonistas heróicos das ficções de cada período, para apresentar uma ideia mais moldada e diversa desse mesmo conceito.

O segundo capítulo situa-se no período pós-Guerra Civil e início do século XX, na profunda transformação industrial do país, e no desenfreado processo de tecnologização, contra o qual o escapismo das novelas de Tarzan e de John Carter, de Burroughs, serviria de paliativo. O exemplo contrastante neste período são as personagens aterrorizadas de Lovecraft, mas se Randolph Carter não parece ter nada a ver com Tarzan, ambos pertencem à mesma estirpe de privilegiados anglo-saxónicos, brancos, da classe média americana, que procuram proteger-se da vida confusa e mesclada das cidades (sobretudo em termos de etnias), e cujo confrontos com o “Outro” são sempre momentos que permitem a comparação mas a assunção da superioridade da sua própria cultura. Aliás, o combate contra “as ameaças étnicas desreguladas e grotescas” (76-77) levadas a cabo por personagens como Doc Savage e The Shadow não eram menos peculiares nos casos daqueles outros escritores mais conhecidos. Os comentários de Lovecraft sobre as “raças” (os Portugueses encontram-se lá) são desprezíveis, mas o mais importante, parece-nos, e a Regalado também, não é tanto criar acusações de racismo que nos impeçam de reler as obras mesmo à luz dessas escolhas problemáticas, mas antes entender como é que esses posicionamentos sociais – já na sua época, e antes, abertos a contra-argumentos e discussões éticas - informariam as ficções enquanto resposta ao que se entenderia como “ameaça”, viesse ela de fora, de dentro, ou fosse mesmo confrontada “lá”.

Estes modelos, em alguns casos, foram influências directas, até mesmo explícitas, sobre os criadores de banda desenhada de super-heróis. Noutros, estabeleceram um cadinho cultural no qual a emergência daquelas figuras teria necessariamente de criar respostas: de confirmação ou confronto, dependerá. Por exemplo, um dos primeiros traços contrastantes das personagens dos super-heróis é a maneira como passam a viver nas cidades e com elas numa relação de simbiose quase absoluta, ao contrário de Tarzan, os dois Carter, Bumppo, etc., que “fugiam” precisamente dos espaços urbanos para encontrarem na natureza selvagem o palco da sua afirmação individual. Um outro, apesar das figuras dos super-heróis parecer sublinhar papéis de individualismo máximo, é a maneira como passam a informar uma ideia de sociedade em geral, em que cada papel tem o seu peso e importância; como escreve Regalado, “a ficção de super-heróis por vezes influía as sensibilidades do 'New Deal' de um estado activista que providenciava redes de segurança para americanos a passar dificuldades. Através dos seus actos altruístas, estas personagens acentuavam o valor do auto-sacrifício em prol da comunidade alargada” (9).

O terceiro capítulo dedica-se à origem do Super-homem em 1938, passando, claro está, pelas experiências imediatamente anteriores dos seus autores, em formas de fanzines e contos curtos. O quarto introduz o Batman, o Capitão América e a Mulher Maravilha, cada qual com as suas especificidades (nacionalismo, belicismo, cultura carnavalesca, questões de papéis sexuais, etc.). A partir desta parte, todos os outros capítulos trabalham em torno de um punhado de personagens específicas, empregando-as como modelos centrais das discussões eleitas pelo autor. Se bem que ele cite outras personagens, em cada capítulo, a escolha de não se dispersar em listas infindas mas antes em exemplos concretos e bem analisados é, sem dúvida, a mais acertada. Como dissemos, aqui deparamo-nos com dimensões mais conhecidas, mas é o foco e condução dos argumentos a mais interessante, como por exemplo, a cuidada atenção para com a maneira como a personalidade do primeiríssimo Super-homem (nas mãos de Siegel e Shuster) define um campo mais alargado daqueles que podem contar como “americanos”, expandindo os papéis étnicos suportados por tal descritivo, ou como a figura de Batman é estudada da perspectiva carnavalesca: nem sempre o cavaleiro das trevas foi assim tão “sério”, mesmo nos seus primeiros episódios, escritos por Bill Finger. O autor nunca, porém, cai em descrições que absolutizem as “personalidades” destas personagens. Se o Super-homem parece nascer da cultura do New Deal, e ter um posicionamento quase anti-capitalista nos seus ataques a políticos, homens de negócios ou problemas que levam à opressão dos mais desfavorecidos, a verdade é que o aparente prazer na destruição não é propriamente uma mensagem pró-proletária, sindicalista ou revolucionária.

O quinto capítulo debate-se com a cruzada anti-comic book dos anos 1950 e o declínio das personagens de super-heróis logo após a 2ª Grande Guerra. Todavia, é precisamente por esses “ataques”, que o autor estuda de ambos os lados da barricada, de uma forma inteligente (Werther, muitas vezes mostrado como um cientista louco de pacotilha, era uma pessoa com uma visão progressiva da sociedade, anti-racista – estamos a falar dos Estados Unidos antes dos Direitos Civis dos 1960s -, preocupado com a educação dos mais novos, mas depois abusaria de certas leituras e interpretações dos seus estudos, já para não falar de uma posição de determinismo), que emergiu o movimento de fãs organizados em clubes, fanzines e outras iniciativas, que prepararia o seu ressurgimento e refundição. Essa verificar-se-á, como se sabe, e sobretudo, na Marvel de Stan Lee, Jack Kirby e os outros autores dessa casa. Se se poderá indicar que a origem da “Idade de prata” se encontra em gestos anteriores, também eles informados por uma certa euforia tecnológica e uma boa vontade para com o futuro fora da Guerra Fria, são os heróis dessa casa em particular aqueles que melhor espelham um certo posicionamento da contra-cultura, da plasticidade dos papéis, da vontade dos jovens em participar activamente na sociedade, e sobretudo, a palavra-chave, a alienação (o que não é paradoxal em relação àquela participação). Regalado mostra com pormenor as formas subversivas com que essas personagens (Homem-Aranha, o Quarteto Fantástico, o Hulk, etc.) se teciam, mesmo que, mais tarde, as pressões do mercado e da própria Marvel enquanto companhia, tenham “recuperado” essas figuras em usos mais convencionais ou domesticados.

Intitulando-se “From Renaissance to the Dark Age”, não admira que este último capítulo faça um arco repentino entre esses primeiros gestos da “nova Marvel” com as desconstruções que surgiriam nos anos 1980. Se Regalado analisa, como ponto de passagem, as figuras do Pantera Negra como respondendo à nova situação racial nos Estados Unidos e no trabalho de O'Neill e Adams a lidar com a era pós-Vietname (na qual a “erosão de um ethos progessivo” levaria a “um carácter decididamente pós-modernista”, 206), a segunda parte de leão do capítulo aborda os inevitáveis Watchmen e The Dark Knight Returns. Moore “emprega o género numa dissecação pós-moderna de si mesmo para revelar as dinâmicas sociais, culturais e políticas que subjazem na ficção de super-heróis” (212), colocando essas mesmas personagens (ou melhor, as suas “funções” literárias, sociais e culturais) em questão. Miller, por seu lado, mas todos os seus seguidores, inverteriam o papel das personagens: estas “haviam evoluído de indivíduos afirmativos no contexto da comunidade para a celebração de indivíduos (e subculturas) atomizados ao mesmo tempo que rejeitam cinicamente a ideia de uma comunidade nacional mais alargada” (220).

Quer na introdução quer na conclusão, o autor menciona o papel preponderante que estas figuras têm hoje na cultura popular, sobretudo graças ao cinema (um tema que é abordado por outro livro, Comic Book Film Adaptation, de Liam Burke, que esperamos ler; ainda que não seja exlcusivamente sobre super-heróis, naturalmente aborda esse género de forma acentuada). De certa forma, isto não é por ele estudado, dizemo-lo nós, por vezes essa popularidade é feita mesmo em distinção da banda desenhada, isto é, não é necessário lê-la, gostar dela, conhecê-la, para ser fruída e é apenas uma minoria de espectadores que serão “fãs informados”. Regalado fala mesmo de uma hegemonia, até por mencionar as aquisições milionárias das propriedades destas personagens por aglomerados e multinacionais de media. O autor escreve, “Se esta [situação] compromete ou não a sua [dos super-heróis] capacidade em servir de veículos de sentimentos anti-modernos ou não é uma questão em aberto, e precisaria de maior investigação”. Que o autor suspende no seu volume, deixando a desenvolvimentos futuros e escapando ao alcance da disciplina da história. No entanto, em brevíssimos apontamentos sobre títulos em particular, como Truth: Red, White & Black, de Robert Morales e Kyle Baker, o run do Black Panther por Christopher Priest, e uma história singular de Richard Corben com o Batman (“Monster Maker”, da série Batman: Black & White) – cada qual debatando-se com as origens dessas personagens, os seus papéis na sociedade em que se inscrevem ou a textura social que os viu emergir - o autor consegue revelar que desenvolvimentos ele vê em curso na contemporaneidade, sobretudo a forma como “desafiam o público da banda desenhada a considerarem as verdades estétias, culturais e históricas que sustentam o género da ficção de super-heróis e, por extensão, a cultura em geral” (225). Os aspectos da diversidade de representação de personagens femininas, homossexuais, de origens étnicas que não anglo-saxónicas, etc., acentuam “o potencial de alterar o lineamento das identidades heróicas (e por isso nacionais) da mesma forma que o Super-homem de Siegel e Shuster fez nos anos 1930” (idem).

Estas são figuras fascinantes, e há dezenas, se não mais, de tentativas em transplantar o conceito para outros lugares (França, Inglaterra, Brasil, Portugal, países árabes, africanos, Índia, Japão), quer de forma satírica quer mesmo de forma mais séria, mas não nos parece que tenham alguma vez medrado de forma autónoma e suficiente. Se todo e qualquer outro género tem uma vida rica seja onde for, o género dos super-heróis manteve quase exclusivamente norte-americano, confirmando que se trata menos de um elemento narrativo, um topos, do que todo um complexo cultural. Perguntamo-nos se haveria aqui pasto para analisar a relação destas figuras com o “Excepcionalismo Americano”. Seja como for, parte dessa força e pertinência cultural está desde já estudada por Bending Steel.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

2 comentários:

  1. Tens o texto repetido no post, Pedro. Que gostei bastante de ler, diga-se.

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  2. Que estranho... É o que dá saltar de computadores. Obrigado, já está consertado.
    Pedro

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