29 de dezembro de 2015

Dispositivo de Circulação de Imagem. Fernando Lindote (auto-edição)

Este rápido post (mas quem queremos enganar?) vem na esteira da leitura e diálogo com Pedro Franz, a propósito do seu último trabalho e dissertação de Mestrado. No envio desses mesmos materiais, o artista teve a gentileza de agregar ainda outras publicações, como o último número do jornal Suplemento, e o primeiro de Altamira. Mas a grande surpresa foi o envio de três pequens publicações do artista Fernando Lindote. Para todos os efeitos, estes três cadernos são trabalhos de uma banda desenhada “explodida” por dentro, não-narrativa, não-sequencial, onde por vezes mesmo a figuração entra em crise, mas nem por isso abdica de estudar a potencialidade das séries formais ou conceptuais, e as variações/mutações internas. (Mais) 

O artista brasileiro parece ter trabalhado também nos campos do cartoon editorial, mas a sua prática de artista visual estende-se já desde os anos 1980 e atravessando toda uma série de disciplinas (performance, instalação, vídeo), em consentaneidade com a prática artística contemporânea. Importante também neste campo é o facto de que na sua primeira adolescência, Lindote trabalhou no atelier de Renato Canini, o “segundo pai” do Zé Carioca, e que havíamos estudado, pelo menos em parte, num nosso artigo académico primitivo.

No seu trabalho artístico, Lindote apresentou, em várias exposições, tais como 1971 – a cisão da superfície (2012) ou D.C.I. (Dispositivo de Circulação de Imagem) (2014), como parte integrante e intrínseca, pilhas de publicações que os visitantes poderiam levar consigo. Algo que já foi experimentado por muitos outros artistas, sem dúvida, transformando essas mesmas peças em esculturas ou instalações “mutáveis” conforme a visitação (Pedro Franz seguiria o mesmo método no seu projecto). Pelo que entendemos, existiriam cinco publicações distintas, todas elas impressas em papel barato, quase de jornal, em quadricromia, e em pequenos formatos próximos aos das revistas encontráveis nas bancas no Brasil, desde ca. 26 x 18 cm (próximo de um comic book norte-americano) a entre 13 x 20 cm. (o clássico “gibi”). Aliás, de acordo com as informações dadas por Pedro Franz, um sexto título era disponibilizado numa banca verdadeira, de um jornaleiro, exterior mas próxima ao espaço expositivo.

As publicações em si não parecem ter título, mas no interior surgem informações de autoria, citando “desenho” e “concepção” (do próprio Lindote) e “editoração” e “edição” noutros casos (de Fernando Leite). 1971 – a cisão da superfície surge numa das publicações, e parece-nos que, oficiosamente, cada um deles terá um título específico, mas ele não se encontra na própria publicação. Seja como for, se todas elas podem ser consideradas como parte de um conjunto maior, passível de uma leitura conjunta (um pouco à la Building Stories de Chris Ware, se bem que neste caso os elos narrativos, conceptuais e figurativos sejam bem mais convencionais e fortes), ao mesmo tempo elas possuem individualmente características materiais e de estratégias de representação específicas, o que as torna autónomas entre si.


De facto, a publicação menor, impressa em papel amarelo, parece apresentar variações em torno de um mesmo tema figurativo, a saber, o papagaio, vogando entre representações o Zé Carioca e a de um papagaio realista (se bem que um tem um charuto na boca, quiçá de uma publicidade conhecida, já que as imagens da personagem da Disney são facilmente identificáveis nas suas fontes: Canini, claro está, mas não só). O traço parece ser sempre da mesma lavra, desenhos toscos em contornos inacabados, com sobreposições várias e apontamentos de cores “selvagens”. Uma das vinhetas da capa mostra o edifício do Congresso, mas de pernas para o ar. Haverá aqui uma forte tentação em fazer uma leitura relativamente óbvia e bacoca de um comentário em relação ao estado da política do Brasil...


A outra publicação a que tivemos acesso, também de formato “gibi”, parece ser menos concentrada em termos de “temas” e “objectos” figurados, vogando pelas mais dípares presenças (personagens humanas, paisagens urbanas minimalistas, um retrato de um homem mais realista, um astronauta, vinhetas ocupadas por figuras geométricas simplificadas, outras por fragmentos de personagens Disney, e ainda objectos semi-abstractos e semi-tecnológicos, recordando, em parte, o trabalho de C.F., por exemplo. Muitas das vinhetas apresentam rectângulos vazios nos cantos, recordando as legendas e didascálias típicas da banda desenhada, reforçando assim a ideia de um desejo em narrativizar em abstracto aquilo que jamais se chega a concretizar. Não há propriamente um ciclo de recorrências aqui, que permitisse criar sequer um “fantasma” de narrativa, mas a própria existência num diagrama típico da banda desenhada abre essa possibilidade.

Finalmente, a maior publicação, parece apresentar planetas, corpos cósmicos e monumentos mais ou menos figurativos, por vezes incluindo cor, outras espraiando-se em toda a páginas mas dividido pelas vinhetas enquanto super-estrutura. Também aqui surge o Congresso e um Zé Carioca truncado, tal como na contra-capa há duas vinhetas que estabelecem uma rima visual entre um avião comercial por sobre o Congresso e um Zeppelin sobre uma formação rochosa conhecida por mesa. De Zardoz a Kirby, e com fugas para essas referência do mundo real, esta revistinha abre ainda outras formas de manipular a informação e as associações a que o leitor-espectador é convidado.

Além disto, em termos de conteúdo, mas também de materialidade, espectro cromático e até de estratégia de “migração de dispositivo” e relação com leitor-espectador, as publicações de Lindote são muito aparentadas a um projecto de Matt Mullican e Lawrence Weiner, In the Crack of the Dawn, que já citámos em duas ocasiões neste espaço. Não há como saber se existirão ou não contingências que permitissem uma maior aproximação, fora de uma entrevista ao artista, mas os elementos coincidentes são notórios, revelando-se algumas preocupações análogas, se bem que o projecto dos dois autores norte-americanos reflicta mais assuntos relacionados com espaço, urbanidade e abstraccionismo, do que o voo mais amplo de Lindote.

Aliás, um dos aspectos que o próprio Lindote aponta é de que, se numa primeira abordagem a relação com o espectador é a mesma para com uma escultura-instalação, mesmo que haja um grau de interacção possível que leva aquele a alterar a forma do objecto à medida que o tempo passa e os visitantes levam as revistas, num segundo momento dá-se o “acesso a outras imagens contidas nessa espécie de interior da escultura” (Lindote, parafraseado por P. Franz), e espoletando um processo de circulação maior. Quase que se poderia dizer, se nos recordarmos da noção de Ph. Dubois do dispositivo, que haveria aqui uma “migração de dispositivos”, se bem que do ponto de vista estritamente da banda desenhada – de que não parte, uma vez que a prática, mundo social e institucional de F. Lindote é o das artes visuais – haveria antes um “regresso” ao dispositivo convencional: a circulação de um objecto reproduzido de consumo individual e de leitura.

De resto, essa amplitude temática, figurativa, material, compositiva, está em consonância, parece-nos, com a sua prática artística, que igualmente elege ocupações do espaço das mais diversas formas, e configurações que tanto nascem da bidimensionalidade da pintura, em superfícies planas ou anfractuosas, como na integração de objectos tridimensionais que as expandem e teatralizam.

Para P. Franz, a noção que as “HQs” de Lindote lhe parece mais despertar é a do infranarrativo de Th. Groensteen. Não existindo “coerência imediata” entre as imagens, para mais figurativas – sombras e excertos do Zé Carioca, pedras-totems flutuantes -, a sua integração numa maquinaria (dispositivo, técnica, estrutural) típica da banda desenhada convida a uma leitura sequencial e narrativizante da parte do leitor, mesmo que a construção do sentido jamais atinja um nível fechado e decidido.
Nota final: agradecimentos a Pedro Franz pela oferta das publicações e todas as informações. 

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