3 de dezembro de 2015

El paraíso perdido de John Milton. Pablo Auladell (Sexto Piso)

Como é natural, acompanhar todos e quaisquer livros produzidos nos últimos anos de vários quadrantes geográficos e estilísticos não é possível, mesmo que haja razões para, ao nos interessarmos por um determinado autor, ser desejável acompanhar de maneira sustentada o seu percurso. Há quase dez anos, faláramos de La Torre Blanca, de Pablo Auladell. E apesar de nos cruzarmos aqui e ali com o seu trabalho de ilustrador e de autor de bandas desenhadas, foi preciso atravessar um deserto para ter a oportunidade de desembocar num projecto de grande fôlego. Este volume com mais de 300 páginas é uma adaptação livre do famoso poema de John Milton. Tendo começado num momento que se veria interrompido, e fruto de transformações internas, esta é a sua forma final. Desta feita então, Auladell empresta as suas figuras quasi-andróginas, pequenos títeres de grafite, para dar corpo a uma encenação que ronda a vontade e autonomia, o amor e a entrega, a glória e a solidão, a distribuição de poder e o sonho, ou até mesmo a mais profunda natureza humana, levada a cabo por seres que, em princípio, estariam longe das suas paixões. (Mais) 

Uma das transformações necessariamente operadas pela própria existência das estruturas clássicas da banda desenhada é a claríssima inscrição de Lúcifer/Satanás como protagonista deste livro, mesmo que o arco principal das acções sejam desencadeadas sobre ele, e não por ele. Para além das necessárias alterações de um poema épico para a uma obra de banda desenhada (a eliminação da matéria textual, a redistribuição do que “sobra”, a redução de 10 para 4 livros, etc.), é Satanás quem surge na capa, quem abre a sequência de imagens e quem ocupa a maior parte dos episódios do livro. Significativamente, todavia, se é ele quem abre a narrativa – com conhecimento do poema, ou na retrospectiva desta leitura, os leitores aperceber-se-ão de quem são as personagens que acordam no quarto do Céu -, não é ele quem a fecha, sendo esta atenção votada antes aos, afinal, novos protagonistas do mundo que Milton descreve: o homem e a mulher, Adão e Eva, expulsos do Paraíso pelo arcanjo Miguel, e que colocam assim em movimento todo o edifício da História humana (do ponto de vista teológico ou mitológico ou poético).

Existem inúmeros pormenores de acções e conversas que são eliminados, como é de esperar, mas o objectivo de El paraíso perdido não é, de forma alguma, criar uma versão “de consulta fácil” que evitasse a leitura do poema. Pelo contrário, é um livro que exige a leitura do texto original para que depois se compreenda o alcance das suas transformações, ainda que estas, como veremos, não sejam demasiado vanguardistas, por assim dizer.

Não faz sentido aqui analisar ou estudar os sentidos de um texto literário tão complexo e com uma história crítica tão longa e espessa (já para não falar da sua existência textual, em renovações constantes). Não é nosso propósito, nem capacidade teríamos para o fazer. Não há dúvida, porém, que esse é um caminho quase necessário de modo imediato, um estudo comparado ou genealógico de como o texto de Milton é versado, como um líquido, por Auladell, e como esse líquido ganha nova forma. A adaptação operada pelo autor espanhol não é, de forma alguma, uma que procure fundar novos modos de o fazer, isto é, não há disrupções significativas na ontologia da banda desenhada (não se trata do Castelo de Kafka versado por Deprez, nem da manobra de diversão de John Caldigate de Trollope por Simon Grennan, ou a aventura de debilitação da forma da Cidade de Vidro de Auster por Karasik e Mazzucchelli). Aliás, há pelo contrário uma maior concentração nos acontecimentos, subsumindo-se, portanto, os versos de Milton a um programa narrativo claro: a batalha e queda de Satanás e os “seus” anjos, a busca por uma solução no Abismo, a conspurcação do Paraíso, a queda do Homem, o castigo segundo aos (agora) demónios e a expulsão do Éden. Apesar de se manter a voz do narrador poético, nas suas invocações, sob a forma de legendas, a navegação das vozes das personagens por balões de fala e legendas deslocadas espacialmente, e uma estrutura cronológica não-linear, que respeita a original de Milton, a concentração imagética-accional torna este livro mais centrado nos acontecimentos e na causalidade dos episódios. Nem toda a trupe de personagens está presente, ou algumas figuras tornam-se bastante secundárias, não ganhando a voz que continham no texto original, mas mais uma vez isso é fruto da criação de uma “história” perseguida neste volume.

Aliás, a causalidade é precisamente o ponto nevrálgico da versão de Auladell. Algumas das suas escolhas entre texto, imagem e espaços da diegese são claros quanto a esse propósito. Se algo se torna claro, é a própria indecisão de quem seria o “último culpado”: o próprio Lúcifer, pela sua soberba ou amor de uma liberdade total? O Homem, por não se precaver da sua queda adivinhada? A Mulher, por ser retratada como mais permeável à adulação? Deus, por provocar afinal os mecanismos que levariam a tal desfecho? Esta é uma decisão que caberá ao leitor deste livro (do poema, os instrumentos encontrar-se-ão no texto e na sua crítica). Lúcifer não surge propriamente como uma figura salvífica ou prometeica, mas tampouco as promessas de Deus e dos anjos parecem claras. Todas elas apresentam os seus defeitos, e até as figuras do Pecado e do filho que teve com Lúcifer, a Morte, surgem como personagens singulares em busca dos seus papéis, à la Pirandello. Independentemente das muitas citações de bolso arrancadas a Paradise Lost, o confronto do leitor com as figuras de tinta (versos ou desenhos) deslocará personalidades menos uniformes.

O poema original foi alvo, durante a sua “vida activa” (isto é, sob a direcção do seu autor), de várias edições ilustradas, umas mais famosas que outras e, como se sabe, seria extremamente influente na História da Arte. Auladell conhecerá sem dúvida essa história, tal como a própria desenvoltura da pintura ocidental, da qual bebe claramente ao longo destas páginas. A própria abordagem pictoral, atmosférica, nebulosa, e onde se notam todos os apontamentos dos pincéis arrastados e grafite, uma paleta drasticamente reduzida e em que as presenças têm um valor também simbólico, aqui e ali alguns craquelées, ou efeitos de tramas de impressão (eventualmente “erros” de resolução mas que contribuem para a flutuação material das imagens), a diferença contrastante entre os balões de fala, coloridos sem gradientes, as letras não diferenciadas entre cada personagem, somente apresentando-se caligráficas e sem serifas para as falas e romanas para as legendas, tudo isso enfim, convida a uma leitura sobretudo plástica. Acresce a isso a própria figuração e composição das imagens em si, que poderão recordar nomes tão distintos como Ghirlandaio, Piero della Francesca, Rafael, entre tantos outros. O arcanjo Miguel, por exemplo, surge muitas vezes em planos aproximados, a três-quartos, a olhar directamente para nós, recordando muitos retratos renascentistas onde uma súbita intimidade e humanismo é apreendida. Auladell segue os mesmos processos, mas para criar mecanismos de alguma distância, o que consegue pelas posições hieráticas de quase todas as personagens, e o leque relativamente estreito de emoções expressas pelos rostos. Mas essa natureza bebe igualmente de outros momentos da história da arte: as figuras muitas vezes abandonam essa elegância renascentista esperada para se entregarem a distorções físicas monumentais, anti-anatómicas, de escorços impossíveis, ou até épicos, que poderão recordar William Blake (um dos ilustradores do poema de Milton) ou Modigliani. Alguns dos espaços, com poucos objectos dispostos teatralmente, poderão tanto recordar os cenários de um Bosch como de um De Chirico.

Estes, sejam as abóbodas celestes emergindo das nuvens, o jardim do Éden disposto esquematicamente, ou os planos de conjunto dos exércitos angelicais, seguem sempre regras de disposição clássicas e tiram partido da perspectiva atmosférica, que dá um ambiente aveludado e difuso a tudo (independentemente dos “lados” a que passem a pertencer: Céu, Inferno, Abismo, rios infernais, Éden, espaços no meio). Em parte, a ambivalência das personagens está presente igualmente nas mutações delas, com os rostos entrando e saindo de formas mais aquilinas, bestiais, crescendo de tamanho, assumindo de forma mais visível as paixões que os animam. No que perdemos de acesso às mentes e espíritos das personagens, ganhamos na sua vontade anímica e formal de escapar dos grilhões dos seus papéis, e na redistribuição das suas fortunas. Estando longe do Conte démoniaque, de Aristophane, é porém uma forma curiosa de jogar com as figuras infernais para fazer pensar na condição humana, de modo mais decidido do que outras abordagens mais fortuitas às “mesmas personagens” e/ou “histórias”, que poderão ocorrer na banda desenhada mais popular.

Estas referências todas – e tantas mais poderiam ser arregimentadas! - não servem, como se poderia esperar, para dar algum tipo de gravitas à obra de Auladell, uma espécie de patina emprestada que fosse um garante de qualidade. De uma certa maneira, recorda antes uma espécie de diálogo de referências visuais, com uma memória da arte ocidental, que recorda os livros de gravura de Frédéric Coché, no qual se jogam ligações mais ou menos nítidas, mais ou menos teatralizadas, mais ou menos instrumentalizadas para oferecerem uma corporealidade aos conceitos esgrimidos pela “história”. Também poderíamos discutir como Deus é representado como uma espécie de tonitruante Marlon Brando, uma majestade a um só tempo real, distante, poderosa e suficientemente amaneirada para se perceber como inspira ódio e desejo de liberdade da parte dos anjos revoltosos e obediência da parte dos que se manterão no reino celeste.


Onde narrativamente há uma busca por uma clareza e relação nítidas entre acontecimentos e personagens, as imagens procuram criar essa visualidade mais difusa. Contudo, até pelas escolhas de composição de página do autor, estamos perante um projecto mais convencional do que poderia ser. El Paraíso Perdido, de Auladell, é menos “moralista” do que “ambiental”. Apropriado à distracção do século XXI?

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