Nalguns
dos episódios aqui incluídos, Winshluss pede emprestado as
personagens do Super-Homem e de Conan, o Bárbaro. Numa nota final do
volume, ele indica a atribuição aos seus autores respectivos, mas
acrescenta que infelizmente não pode citar os autores de todas as
outras personagens (Deus, Jesus, Moisés, Pôncio Pilatos, etc.),
pois não os descobriu. Sendo assim, a ficção prossegue. (Mais)
In
God We Trust (com título inglês mesmo na versão francesa)
reúne trabalhos curtos de Winshluss publicados na Ferraille
Illustré, todos eles em torno
de paródias, eversões satíricas dos relatos bíblicos, ou anúncios
publicitários, cartoons/gags, desenhos soltos ou mesmo histórias
originais envolvendo, de uma forma ou outra, conceitos, personagens e
realidades afectas ao Cristianismo, e em particular ao Catolocismo.
Apesar de existir um pequeno mecanismo inicial que mostra um monge
criando uma espécie de mlduta narrativa para unir todas estas peças,
elas mantêm a sua autonomia própria, explorando vários graus de
proximidade à “palavra divina” e, claro, à virulência do humor
escatológico (em todos os sentidos, o mais material e comum e o mais
teológico) do autor.
Não
podemos entrar aqui numa complexa questão sobre o papel do humor na
cultura ocidental judaico-cristã, que teve um papel e presença
sempre flutuante, negociado, tensional, processo esse mesmo fruto de
séculos de discussões entre várias forças moldadoras sociais. O
nome da Rosa, de Umberto Eco, o
ensaio de Bergson (O riso)
e o de Bakhtin (Rabelais e o seu mundo,
apenas traduzido no Brasil), entre tantos outros, poderão ser bons
pontos de partida, senão armas de arremesso. O que interessa é que
existe uma tradição vetusta e alargada de fazer humor com os mais
profundos ensinamentos da Igreja Católica e as suas figuras
(mundanas e divinas), até ao ponto mais escabroso, que não nos faz
de forma alguma temer pela vida e fortuna dos seus autores (e
leitores), e talvez apenas os crentes possam imaginar (espero que não
desejar, ou seria uma
contradição da sua natureza religiosa) que, havendo preço a pagar,
ele será pago na próxima vida.
O
humor de Winschluss aqui é até bastante controlado, não existindo
propriamente cenas de sexo tórrido, por exemplo, ou cenas explícitas
de gore ou “porcaria”. O autor prefere antes criar figuras
animadas por paixões pequenas e passageiras, interesses momentâneos
e aborrecimentos perenes – inclusive Deus -, para demonstrar a
patetice disto tudo. Algumas das piadas são relativamente
expectáveis: um Jesus que regressa irado, transformado num
anti-herói de filme de acção dos anos 1980, piadas em torno da
situação familiar de José e Maria, a estranha aposta em torno do
sacrifício de Abraão, as “revelações” do que “aconteceu de
verdade” em relação aos milagres de Cristo, etc.
Temos
em nós que fazer humor religioso no nosso enquadramento cultural,
tal como, no caso particular português, na política, é
extremamente difícil, não porque não exista talento ou vontade
para isso, ou que sejam temas intocáveis, mas porque eles mesmos, na
sua existência, actores e mecanismos, é desde logo anedótica. É
por isso que quase basta contar os episódios tal qual eles são
conhecidos, repetir as situações, revelar os intervenientes nos
seus trejeitos mais usuais, que o riso surgirá da forma mais
natural. Sem querer fazer comparações bacocas e imediatas, veja-se
como, de entre os muitos sketches da troupe brasileira de
Porta dos Fundos, são sempre os religiosos aqueles que funcionam
melhor, menos por haver um desenvolvimento dos textos exímio (e há)
ou um desempenho apurado dos actores (que há), do que pelas
situações escolhidas serem verdadeiramente anedóticas nelas
mesmas.
Depois
de tantas criações em torno destas figuras, pensando de Franck
Stack a José Vilhena, de Cavanna a Vuillemin, não há propriamente
novidade “de choque” em In God We Trust, e insistir sobre
a corrupção da Igreja, os seus “pecados”, a hipocrisia de quem
se diz representante da moral, etc., patina um pouco no contexto
actual. Aliás, tendo tido o estranho (senão doentio) privilégio de
ter lido todas aquelas publicações de proselitismo evangélico
norte-americanos conhecidos por “Chick tracts” (de Jack Chick;
aliás, temos essa mesma colecção), é mais chocante a
“mensagem directa” do que o “humor de fora”.
Dito
isto, existem pequenas pérolas. A versão da vida de João Paulo II
como rocker cristão permitir-nos-á repensar a fama desse Papa e a
forma de apresentar a relação de Maria com Deus como um romance
comics consegue trazer algo de novo a esse gozo. Como dissemos,
cada parte é autónoma entre si (tendo surgido solitariamente na
revista), mas existem algumas personagens recorrentes para além das
principais que permitem ver alguma dimensão de continuidade, e há
de facto uma possibilidade de encontrar, como é de esperar, um arco
desde o Génesis ao Apocalipse.
Versões
amusantes de histórias conhecidas, mesmo que diluídas num
contexto mais alargado de outras tomadas mais radicais, e num veículo
em que a excelência visual preside, o que resta a In God We
Trust? Bergson diz que o cómico não tem a ver com a a emoção
– a reacção do que não vê a comédia, talvez – mas “dirige-se
à inteligência pura”. O propósito não é, então comover, mas
fazer pensar. Eis o maná de Winshluss.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
Olá Pedro,
ResponderEliminarO terceiro parágrafo desta entrada tem muito que se lhe diga e daqui (desculpa-me :-) parece-me deslocado da tua linha de estudo e pensamento. Desde logo, acelera e impede o outro debate de fundo acerca deste tipo de obras, mas sendo certo que este não é o espaço, assim sendo será judicioso sequer referi-lo? Tenho uma opinião reservada sobre essa posição relativa à brandura contemporânea dos costumes da religião católica, mesmo até pelo alcance ou intervalo em que definimos contemporaneidade. E no espaço geográfico europeu existem vastos exemplos com menos de um lustro (algum nacional e desta semana), mas que não importa aqui enumerar. O que me me importa destacar é que não encontro razão para associar a falta de sentido de humor religioso a outras crenças que a católica, quando ontologicamente, julgo, não será a religião a transformar a condição humana de per si, nem sequer o inverso, mas é ela sim um produto da materialidade da condição à vida humana. E assim podemos parecer cair na armadilha sinedóquica de associarmos a intolerância religiosa de alguns a um povo, ou a uma religião quando o emprego da figura no discurso vale para isso mesmo, para eliminar/arrumar ceteris paribus todas as linhas de desvio àquilo que pretendemos transmitir. Lá como cá existirão forças autoproclamadas responsáveis pela condenação capital do humor e doutras formas de expressão na religião, na diferença importante porém que dos exemplos próximos somos sempre mais precisos no isolamento do fenómeno pela excepcionalidade, rejeitando/ignorando com graves custos mais adiante a origem e o grau de contaminação à comunidade, quando para paisagens mais distantes - a metáfora ao fenómeno óptico resulta - no borrão tudo fica mais difícil de distinguir.
Obrigado e um Abraço,
José
Olá. Não estou bem a compreender em que é que essa passagem cria essa ideia. O prágrafo tem duas partes: na primeira defendo apenas a minha incapacidade em lidar com tamanho tema, remetendo apenas a três exemplos (um literário, um filosófico e um de teoria literária e cultural) que me parecem suficientemente pertinentes; na segunda, talvez de uma maneira pouco clara, que sempre se fez humor em torno da religião (desde as primeiras caricaturas da Crucificação, em que Cristo surge com cabeça de burro) e que, mais contemporaneamente, não virá daí consequências gravosas, ainda que claro que com vozes bem ariscas de certos sectores (o "caso 'Pato com laranja', Sousa Lara vs. Saramago, leitores do 'Expresso' vs. António Antunes, etc.). E NÃO desejo de forma alguma criar um discurso que crie um "nós" onde haveria necessariamente um "eles": simplesmente falo do "nosso" contexto (que claro que pode ser elástico, desde o meu umbigo ao planeta Terra). Dito isto, defendo que o "risco" desta obra de Winschluss se encontrará certamente muito diluído no seu poder efectivo de chocar nos nossos dias.
ResponderEliminarAbraço,
pedro