15 de janeiro de 2016

Sorge, o espião. Isabel Kreitz (Veneta)

Richard Sorge é uma personagem histórica. O traço que o inscreveria na história é o facto de ter sido espião alemão do Império Soviético desde o final dos anos 1920, infiltrando-se nos círculos nacionais-socialistas logo na década de 1930 e, depois, tornando-se o responsável pela rede de informação no Japão. Enquanto membro do Partido Nazi, jornalista alemão e confidente do embaixador alemão em Tóquio, a sua capacidade de trabalho e de acesso a informações confidenciais permitir-lhe-ia o seu maior feito: partilhar dados sobre a invasão alemã da União Soviética em 1941 o que, aparentemente, terá ajudado à derrota dos Nazis nessa empreitada. É bem possível que este último episódio, que o tornaria um traidor e o levaria à captura e execução pelos poderes do Eixo, Alemanhã-Japão, mas igualmente e muito mais tarde o tornaria um herói aos olhos da Rússia, seja bem mais complexo do que uma breve entrada enciclopédica ou mesmo uma versão romantizada (sob a forma de banda desenhada, romance ou filme) possa dar conta, mas é isso o que lhe atribuiria fama póstuma, ao ponto de ser considerado “o maior espião de todos os tempos” por escritores do género como Ian Fleming e Tom Clancy. (Mais) 

A autora alemã Isabel Kreitz dedica este livro a essa figura, concentrando-se nos episódios passados no Japão. Após um brevíssimo intróito na década de 1930, elege a chegada da pianista Eta Harich-Schneider a Tóquio como início da sua narrativa, desenvolvendo-a em quase 250 pranchas, densas de imagens, acções e texto, até após o desaparecimento de Sorge. Seguiremos os modos como Sorge se envolve amorosamente com Eta, sem que se torne propriamente uma história de amor arrebatadora, uma vez que as relações eram quase livres. Encontramos Sorge nos seus encontros com dignatários alemães mas também a sua rede local, com alemães, russos, japoneses ou outros, que tentam disfarçar a partilha e envio de informações. E seguimo-lo nalguns dos seus prazeres imediatos, muitos dos quais auto-destrutivos, como a sua condução ou abandono no consumo de álcool. Nenhuma destas linhas está separada da outra, e cada uma destas peças se encaixa e redimensiona a outra.

O mais surpreendente neste thriller de espiões é, porém, o facto de que o foco não está propriamente na intriga de espionagem em si. Podemos dizer que existem momentos de tensão, sem dúvida, mas estes são-nos acessíveis através das reacções das personagens envolvidas. Não há, por exemplo, a típica economia de distribuição desigual de factos entre os leitores, as personagens e o narrador. Por vezes existem factos não-revelados ao leitor mas que estão na posse das personagens, para depois surgirem num choque final; outras vezes são os leitores que estão munidos de informações que não estão acessíveis às personagens, e acabamos por projectar um cuidado para com eles. No caso de Sorge, o coração da intriga – o envio de informações oficiais confidenciais do governo nacional-socialista ao governo soviético – não é propriamente segredo ou oculto dos leitores, nem sequer é ele o que se torna o centro nevrálgico das acções. Ele acontece, sob os nossos olhos, e da forma tranquila (ainda que, no interior daqueles homens, tensa) do processo esperado: a entrega de um mapa, de uma instrução, o acto de telegrafar a mensagem durante o recital de piano. Numa versão cinematográfica, diríamos, não haveria uma faixa musical adicional, não-diegética, dramatizável. Kreitz está de facto muito mais interessada nas relações criadas entre as personagens, na dimensão humana dessas relações, toquem elas ou não nas raias de dimensões históricas muito mais abrangentes. Nunca saímos dos espaços confinados da vida alemã em Tóquio, para vermos as reacções nos escritórios de Hitler ou Stalin, por exemplo, e tudo o que provém desses lugares é apenas repartido numa frase, em conversa local.

Pode-se dizer que se trata da história do espião a partir da perspectiva da sua amante Eta. Afinal de contas, o título original alemão deste livro é Die Sache mit Sorge, algo como “O affair com Sorge”, e apenas o subtítulo indica Stalis Spion in Tokio. A própria capa da edição original mostra Eta e Richard Sorge num amplexo calmo, numa rua japonesa, em que lanternas de papel estão decoradas com a suástica nazi. A escolha da edição brasileira (tal como a francesa) por isolar a personagem na capa, levantar a perspectiva, e focar o título na palavra-chave da intriga é uma estratégia compreensível em termos de mercado e publicidade, mas acaba por sofrer a necessária discrepância com a matéria do próprio livro, cujo interesse é outro que não a espectacularidade (de resto, que na banda desenhada tem uma outra versão no Adolf de Tezuka).

É por essa razão que todo o livro é enquadrado por entrevistas “contemporâneas”. Recorrentemente, a fluidez da narrativa é como que “interrompida” (poder-se-ia interpretar como páginas capitulares, mas não nos parece que desejam criar separações ou articulações diegéticas mas antes intervenções de outros níveis) por personagens, idosos, sentados num interior, e como que falando para um interlocutor fora de cena, na nossa posição. Assumimos portanto o lugar do mega-narrador, autor, entrevistador, etc. (todas essas funções, mecanicamente diferentes, são aqui amalgamadas para o efeito pretendido). Depreende-se então que é a partir dessas “entrevistas” com pessoas que rapidamente perceberemos que são personagens da história que todo o relato está a ser construído. Se Sorge ocupa o título do livro, a esmagadora maioria das acções e é o tema de conversa quando está ausente, a verdade é que seguimos igualmente muitas outras personagens, como a pianista Eta, os colaboradores Clausen, os informadores Miyazi e Ozaki, etc. A narrativa não procura confundir-se com as impressões e ponto de vista de Sorge. Na verdade, na ausência de um narrador sob a forma de legendas externas, e sem acesso a balões de pensamento, o leitor tem de procurar através das falas e das acções quais são as sombras que se ocultam a cada gesto, a cada momento e a cada encontro. Algumas daquelas “entrevistas” lançam pequenas pontas de expectativa em relação ao que se seguirá, mas nunca de uma forma dramática.

Uma das estratégias visuais de Kreitz para criar esta tessitura de vozes que se vão complementando, e de linhas de atenção diferenciadas, intercaladas para criar um panorama mais complexo do que a mera adição, é a colocação dos balões sobre as linhas de intervalo entre as vinhetas. Por vezes, o nosso olhar leva-nos a ler um balão “antes” de chegarmos à vinheta correspondente, como se estivéssemos já a escutar as vozes antes de chegar ao próximo plano de corte, estratégia corrente no cinema. Isso leva a que as transições entre cenas seja não apenas mais fluida e imediata, mas que nos leve a compreender a rede de causalidade e implicabilidade entre todas e quaisquer acções, passando do círculo familiar e íntimo ao histórico e político sem pestanejar.

Kreitz é cultora de desenhos apenas a grafite, como tantos outros autores. Neste projecto em particular, fica apenas pelo cinzento da grafite, sem fazer intervir qualquer cor. Mas a autora alemã procura que haja não apenas uma representação, pelo menos dos objectos inanimados, o mais realista possível, como com um peso significativo, no qual se nota um deleite particular em pormenorizar a vegetação, a textura de um cortinado, os padrões que compõem qualquer estrutura arquitectónica, o metálico de um automóvel, viga de madeira, o entrelaçado de uma lanterna de papel, os nós numa os pêlos de um vison. Não se procura qualquer efeito de ilusão foto-realista, mas tão-simplesmente que se garanta que há uma concretude nesses objectos, por vezes mergulhados num quase obsessivo trabalho de linhas sobrepostas e tramas. A autora empregará decerto lápis de diferentes maciezas, e mudará a meio do trajecto de uma linha a posição da mão-lápis, de forma a que haja um concerto elegantíssimo entre linhas mais grossas e diáfanas, transparentes, e outras mais finas, sólidas e quase-negras (se bem que o trabalho de reprodução e impressão do livro tenha, é quase certo, “puxado” os negros). Existindo toda essa “objectividade”, essa precisão e rigor, o seu preenchimento guarda uma parte de esboço, improviso, rapidez de apontamento. As personagens, por seu lado, são ligeiramente mais simplificadas. Há uma atenção para com as mais pequenas expressões e gestos subtis da figura humana que instila uma dose de realidade nestas personagens, em contraste com autores como Amanda Vähämäki ou Miriam Katin, que também trabalham a lápis, mas procuram uma outra suavidade e estilização nas suas figuras.

No entanto, isto não significa que Kreitz procure uma absoluta qualidade empedernida nessas personagens. Pelo contrário, há uma flutuação suficiente entre maiores simplificações, quase rabiscadas, quando os corpos e rostos são vistos ao longe, ou pequenos gestos de minimalização quando uma personagem se encontra num plano mais afastado, que imita, na verdade, os processos de redução de “resolução” do próprio olho humano. Se quase nunca existem casos de linhas de contorno “soltas” ou “excessivas”, é no interior das personagens que as linhas em trama ou padrão para criar sombras e texturas se soltam por vezes de um comportamento mais fixo, e demonstram alguma soltura.

Acompanhado por um dossier no final, com um texto, fotografias e uma ficha biográfica das personagens, Sorge, o espião é menos um titilante romance de espiões do que um retrato das escolhas que muitas pessoas têm de fazer em momentos extremos, e a forma como vivem com as consequências dessas mesmas escolha. Richard Sorge, pelo menos aquele deste livro, vive-as da maneira mais livre possível.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.  

3 comentários:

  1. Isabel Kreitz não é nenhuma principiante, ganhou algumas vezes o prémio de melhor autora alemã,3 para ser exacta, também já saiu no Gambuzine mas escrevo sobretudo porque passei aqui de visita para confirmar o assaz revelador o silêncio dos blogueiros cá da terra acerca do mais importante festival de bd da Europa.
    Fica bem

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  2. está um "o" a mais... é corta e cola.. paciência

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  3. Olá, Teresa.
    Sim, sei que a Kreitz não é nenhuma participante, pois li um livro anterior, em francês ("Haarmann, le boucher de Hanovre"), mas sobre o qual não escrevi, e apenas a havia mencionado a propósito de outro volume, colectivo, dessa mesma colecção Écritures da Casterman.
    Quanto ao silêncio, não percebo bem: estás a falar de Angoulême? Ou de outra coisa? Eu, seja como for, não falo de festivais, apenas dos livros, logo não percebo porque me deve ser imputado qualquer silêncio sobre esse tema.
    Obrigado,
    Pedro

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