22 de fevereiro de 2016

Niki de Saint Phalle. Le jardin des secrets. Dominique Osuch e Sandrine Martin (Casterman)

A propósito de Las Meninas, de Santiago García e Javier Olivares, havíamos dado conta de uma tendência contemporânea, variada, de livros que, partindo de uma qualquer ideia de biografar a vida de artistas criavam discursos interpelantes sobre essas mesmas artes e carreiras, assim como asseguravam uma qualquer reflexão interessante sobre a própria banda desenhada, nascida desse embate ou diálogo. Por outro lado, quer com Bob Deler quer com Modern Arf (e tantas outras ocasiões), tínhamos tecido algumas considerações sobre a relação que a própria banda desenhada estabelece com o dito “mundo da arte”... Ora seguiremos nos três próximos posts três livros que, mantendo-se de maneira absolutamente central naquela tendência – livros de banda desenhada falando de pintores históricos -, vêm criar discursos bem distintos. Começaremos com a biografia que é dedicada a Catherine Marie-Agnès de Saint-Phalle, mais conhecida por Niki de Saint Phalle, morta em 2002. (Mais)

Niki de Saint Phalle é uma daquelas autoras cujas obras (algumas delas, claro) são conhecidas por um grande público em termos de imagem isolada, até reapropriada no imaginário, mas sem qualquer contextualização, integração num movimento mais alargado e até sem assinatura. Um pouco como Bottaro, Christo e talvez Mondrian, num determinado patamar, reduzidos a uma mera anedota visual-superficial. Muitas pessoas conhecerão as suas peças Caroline, Sophie e Catherine, três monumentais mulheres na cidade de Hanover, O Anjo Protector, na estação de Zurique, ou o Jardin des Tarots, “graal” deste percurso, ou o livrinho You Can’t Catch it Holding Hands/Sida, tu ne l’attrapera pas, a campanha a favor da prevenção sexual em 1986, que a autora criou como se fosse uma carta ao filho, por exemplo, mas não as associarão às transformações implicadas pelo período de uma arte ocidental pós-surrealista no pós-guerra, em que vão importar mais as experimentações formais, materiais e disciplinares, que contribuirão sobremaneira à emergência da noção de Arte desligada de disciplinas específicas (isto é, os artistas não serão pintores ou escultores, mas artistas), ainda que antes da emergência da arte conceptual. Este livro, apesar de criar uma perspectiva física e psicologicamente próxima de Niki, sem nunca assumir um posicionamento afastado e de focalização superior, coloca-a numa rede variadíssima de contactos, relações e cumplicidades (Robert Bresson, Brancusi, Mario Botta, mas acima de tudo, claro, o seu futuro amante e cúmplice, Jean Tinguely). Aliás, as autoras revelam as suas fontes no final, numa impressionante bibliografia – na primeira pessoa de Niki, ou segunda mão, entrevistas, documentários – e cronologia, a “linha” que elas perseguem sob outra forma no texto, e que insere a artista no seu espaço apropriado.


A uma primeira visão, pelas suas formas humanas exageradas na sua plasticidade, a re-utilização de objectos do quotidiano, a aproximação ao happening, performance ou à action painting, uma figuração naïf, uma coloração exuberante, um excesso do que seria tratado como decorativismo de um ponto de vista negativo, etc., que se poderia aproximar a arte de Saint Phalle com outros movimentos que se lhe seguiriam, e que até ganhariam maior popularidade. Mas a sua arte nada tem a ver, porém, com a Pop Art, de Warhol e companhia, a que Niki chamava de “os artistas da Coca-Cola”. Ainda assim, isto não significa que a artista estivesse totalmente afastada de uma capacidade de trabalhar no interior de certos jogos económicos e visíveis. Antes da sua carreira se iniciar, havia sido modelo fotográfico, e chegou a decorar um avião de rota comercial, criar um perfume, etc. Na consideração global da sua obra, podemos vê-la como um nome que contribuiu, de certa maneira, para aquela “forma pós-moderna de hibridização globalizada”, na frase de Rosalind Krauss, que seria “cúmplice com a globalização da imagem ao serviço do capital” (“«Voyage on the North Sea»: Art in the Age of the Post Medium Condition”). Há um episódio que a mostra a recusar-se viajar até Israel, sob o governo de Sharon, para a abertura de uma exposição do seu trabalho, mas isso soa algo a despropósito, uma vez que as obras prosseguiriam a sua presença. E há um bom número de associações a “causas” – os povos ameríndios, a espiritualidade asiática – que soam algo vazias de entrosamento verdadeiro, e mais de superficial preocupação.

É natural que, enquanto mulher, e o próprio livro ser criado por duas autoras mulheres (sendo ambas ilustradoras, é provável que haja uma distribuição convencional, visto que a figuração é homogénea), as questões de representação e valorização da mulher estejam na ordem do dia, não se tivesse verificado uma secundarização do seu papel face ao marido (o escritor Harry Matthews) ou companheiro de arte (Tinguely), já para não falar do seu papel no mundo da arte. A própria arte de Niki de Saint Phalle explora questões afectas aos “papéis sociais” e à fisicalidade feminina, como demonstram as suas esculturas de corpos túrgidos, grávidos, cheios e ocos, isto é, receptivos à entrada e trânsito de outros corpos. A própria materialidade e diversidade de matéria, cores, contornos, as posições movimentadas das personagens esculpidas derrubam muitas das categorias clássicas destas disciplinas. Saint Phalle não é uma figura, quiçá, tão decisiva como Louise Bourgeois, mas explora alguns dos mesmos contornos melancólicos, se bem que com instrumentos bem distintos. A frase final desta biografia em banda desenhada, ainda que lavrada por Osuch e Martin, pretende espelhar a voz de Saint Phalle, e parece revelar precisamente essa aliança à outra artista francesa: “O que é certo é que se eu não tivesse criado, teria destruído”.

Tal qual os livros dedicados a Rembrandt e Bosch, de que falaremos em seguida, foram criados num enquadramento de efeméride, oficial, e até de encomenda, também este livro teve a sua apresentação associada à imensa retrospectiva da artista que teve lugar no Guggenheim de Bilbao, que se pode entender como uma oportunidade para redescobrir, recontextualizar mas também re-agregar a sua obra como um imenso corpo coeso. A exposição e, consequentemente, o livro, atravessam todas as disciplinas experimentadas pela artista, em primeiro lugar a escultura, mas igualmente os projectos de obra pública, as esculturas-fonte, a pintura, a gravura, as criações de assemblagens, instalações, performances, cinema e animação… No caso de Saint-Phalle, como no caso dos seus compagnons de route, acima de todos Jean Tinguely, procurava-se uma arte dinâmica, integrada nos seus espaços, vivível, cinética e, se conseguirmos traduzir o conceito, “despedestalizada”. As ideias de fantasia, de jardim, de imaginários mágico, infantil, são instrumentais. E informam a narrativa também.

Se a ordenação desta parece ser, ao mesmo tempo, convencional e confusa, uma mais cuidada análise revelará que a qualidade da fluidez temporal é sui generis. Apesar do livro em si, na totalidade, estar dividido em capítulos, eles são desiguais, oscilando entre as 4 ou 8 páginas, por exemplo. Totalizam os 22, de maneira a ecoar os arcanos maiores do Tarot, aos quais retornaremos. Importante é o facto, então, de que há muitas páginas, ou pares delas, que se comportam como unidades, por estarem encimadas por uma data e um local, atomizando a atenção breve a uma cena, um episódio, um encontro, ou uma frase. Há mesmo momentos em que as transições entre vinhetas é feita cena entre cena, ou uma página-episódio se suceda a outra sem haver uma imediata correlação das acções, eventos e actores – aparte Niki, claro está. Há portanto uma carga de atenção e capacidade de encaixe e relacionamento exigido ao leitor, bastas vezes e de forma intensa. Essa aparente qualidade de stacatto, todavia, é justificável se tivermos em conta a própria personalidade da artista, ou pelo menos como ela nos é aqui apresentada. Niki de Saint Phalle surge-nos como uma mulher cuja herança de fantasmas, traumas e doenças (derivadas de problemas de tiróide, artrite reumatóide, taquicardias, pneumonias, depressões, chegando mesmo a ser internada) se acumula de modo perigoso, tal como fragmentada é a natureza da sua procura pelo caminho da arte: experimentando várias disciplinas, “falhando” na aprendizagem mais formal, desbastando no autodidactismo um percurso variável, senão mesmo volúvel. Sempre com uma origem clara numa hedionda crise familiar…

Olhando somente para a arte de Saint Phalle, poderíamos ser levados a crer estar perante uma artista “feliz”, celebratória, de explosões de vida, mas isso é apenas um sinal exterior de uma profunda melancolia e submissão a um namoro com a morte. Contemplar o suicídio era mesmo um exercício de grande exploração estética, e repetente, para a artista, que sonhava e debatia formas românticas de terminar a sua vida. Cita mesmo um verso de Rilke, que poderia actuar como mote da sua vida e obra: “La mort, toute la mort, et avant même la vie,/La porter en soi, si doucement. Et ne pas en être méchant./ C’est inexprimable…” (da Quarta Elegia de Duíno).

Ora, é assim que o Tarot surge como, a um só tempo, uma metáfora e um processo de cartografar da forma possível esse mesmo percurso inconstante. Saint Phalle tinha um apreço particular pelas cartas do Tarot, utilizando-as como fonte de segurança espiritual, modo de compreender o real e mesmo lançar-se conselhos a si mesma (do modo como Crowley recomendara, considerando não o baralho como uma fonte de verdade, mas antes um estímulo a um diálogo interno do si consigo mesmo). São essas figuras, sobretudo os arcanos maiores, que procuram sublinhar a melhor maneira de cumprir o seu grande desejo: a de unir o escultórico-fabricado ao natural, e com isso transmitir uma demanda espiritual. Cada página capitular mostra uma versão dos arcanos desenhada pelas autoras da banda desenhada, e todas essas imagens mostram Niki no papel principal, cumprindo uma acção, vestida de maneira alusiva, ou com uma qualquer sua peça da época que remeta ao período em questão. A breve nota em baixo, à guisa de legenda, pretende-se explicativa do arcano, é certo, mas ao mesmo tempo permite ao leitor ler como se interpretando algo da vida de Niki de Saint Phalle. Em todas as imagens surgem sempre figuras secundárias que dão conta dos seus filhos, amantes ou colaboradores, e apenas em momentos-chave as figuras principais são ocupadas por homens da sua vida (o Papa é o seu pai, o Imperador, Tinguely).

Cromaticamente, também há uma exploração clara. A maioria do trabalho de fundo e subjacente das figuras e fundos é a lápis, em suavíssimos cinzentos de linhas sobrepostas, como um primeiro mas decisivo esboço, mas de forma paulatina, pontual, significativa, surge a cor. Não propriamente como um dispositivo narrativo que transfore a narrativa, mas que ganha uma dimensão simbólica especial. Cores vivas mas também suaves, uniformes mas dinâmicas, espelhando algo que foi determinante na obra da artista francesa-americana.

Livro extraordinário? Talvez não, mas uma forma honesta e equilibrada que respeita a própria ontologia fragmentária e contraditória intrínseca à vida e obra da artista e, assim, capaz de a devolver.
Nota final : agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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