26 de fevereiro de 2016

Rembrandt. Typex (Self Made Hero)

Apesar deste livro, como aquele sobre Saint Phalle, se tratar de uma encomenda, neste caso do Rijksmuseum Amsterdam, com o intuito de celebrar a vida do grande pintor holandês, Typex evita todas e quaisquer armadilhas de um discurso didáctico ou simplificador quer da vida quer da obra de Rembrandt. Estamos, portanto, num diálogo que, se mais próximo dos intentos de Ruitjers em relação a Bosch, acaba por se tornar mais feliz no seu resultado. Não há grandes hipóteses deste livro ser recuperado por programas escolares. (Mais) 

Typex é um autor sobretudo afecto a um certo circuito alternativo, mas de alguma visibilidade, e até mesmo legibilidade. A revista Chorizo é um exemplo desse tipo de produção, materialmente rica, de alguma circulação, mas sem abdicar das muitas heranças do underground da Amesterdão dos anos 1980... E Typex é cultor de um trabalho gráfico que recorda precisamente alguns dos autores do underground clássico norte-americano como Crumb ou Deitch numa das suas vertentes: o emprego de um desenho associável à banda desenhada infanto-juvenil, de entretenimento e filme animado, para depois o empregar a temas “socialmente marginais”... Porém, no caso de Rembrandt, o autor procura uma maior gravidade na representação naturalista dos corpos humanos e nas paisagens urbanas, com uma corporalidade massiva, feita de linhas excessivas, soltas, como fumo, e depois uma aplicação de uma paleta sóbria, reduzida mas significativa e evocativa das grisailles e sanguíneas de Rembrandt, ou as linhas das suas absolutamente sublimes gravuras, tornando o aparecimento de cores mais vivas plenas de sentido. Cada episódio funciona, aliás, não apenas como uma unidade narrativa, da vida do pintor, mas a outros níveis também, inclusivamente formais, no que diz respeito à composição de página, “velocidade” dos acontecimentos, integração das obras originais de Rembrandt, e outros aspectos.

É em pormenores que a obra de Typex ganha alguma força, e o leitor deve estar atento à composição de cada vinheta, apetece dizer, cada “quadro” (ou “quadrinho”, se preferirem). A composição, enquanto arranjo dos elementos visuais, é extremamente importante, dispondo-se corpos em construções simétricas, numa só vinheta, ou entre vinhetas que se respondem, criando relações de campo e contra-campo, focalizações particulares de partes do corpo, etc. Ou autor tira partido de toda e qualquer estratégia de colocação dos corpos nas vinhetas, e das hipóteses de sequencialização destas, para criar dinamismos de avanços e recuos, entre planos estratificados, um objecto que rola para um canto… Numa cena passada na juventude do pintor, um nobre combina com um colega de Rembrandt um retrato e as quatro vinhetas mostram no centro apenas as mãos dos interlocutores, e nesse dramatismo “manual” consegue-se transmitir toda uma relação de hierarquia social, deferência, bajulação, maneirismos, aproximação, que ao mesmo tempo funciona como comentário às diferenças entre as éticas de trabalho desse colega, Jan Lievens, que colocava Jan num campo aproximável mas distinto do seu mais famoso companheiro. Esse é apenas um dos aspectos em que Typex parece seguir algumas das lições de Will Eisner no que diz respeito a uma teatralidade visível da expressão cinética dos corpos, por vezes tocando o melodramatismo, mas parece-nos que é apropriado à história de alguém que queria imitar com a máxima exactidão a vida, com todos os seus defeitos, para a tornar eterna.

Rembrandt não segue uma cronologia habitual, nem sequer podemos ver nos episódios valorações de idêntico peso. Cada capítulo tem o seu próprio título, desenhado caligraficamente num spread titular, com um pequeno desenho alusivo. Na maior parte dos casos estes títulos são nomes próprios das pessoas que se tornam “chaves” desse trecho, ou expressões que caracterizam o momento relatado. E se há nitidamente uma possibilidade, final, de progresso cronológico da vida do pintor holandês então conhecido pelo seu nome de família, van Rijn, desde 1629, nos seus primeiros passos de profissionalização, ou mesmo recuando à sua infância, e depois à sua morte, a ordem dos capítulos não segue essa lógica. Obriga-nos mesmo a uma navegação de trás para a frente, em voltas e retornos e avanços, em que mais surgem como quadros que pretendem construir uma personalidade variada e humana pelas suas acções e relações, do que providenciar uma hipotética “explicação” de Rembrandt. Essa natureza é ainda sublinhada pela maneira como o autor coloca bandeirolas com o nome do local e o ano, sobre uma cena diegética, criando a sensação de estarmos a entrar numa construção (pictórica, teatral, todas essas noções concorrem). Seja como for, cada um desses capítulos apresenta-se como um “arco narrativo” perfeito, uma pequena história em si mesma, que pode mostrar a experiência de uma dessas testemunhas da vida de Rembrandt – a primeira mulher, a criada-amante, o filho -, ou mostra uma atitude do pintor para com um evento. As mais das vezes, esmagando a sua humanidade num pragmatismo quase abjecto, egoísta e isolado. Todavia, se há aspectos do mito que não são totalmente desvanecidos, como o início do fim da sua riqueza material após o “falhanço” da ronda, Typex não diminui tudo a uma trama central, à la Peter Greenaway com Nightwatching (tão perigosamente redutor quanto interpelante na maneira como “descola” a imagem da narrativa, regressando a uma abordagem mais propriamente pictoral: até certo ponto, há um esforço similar em Typex - como interpretar a imagem deste parágrafo?, como aceitá-la somente pela sua "função narrativa" de Rembrandt a afastar-se de barco num dos canais?) e, acima de tudo, consegue aproveitar-se da profundíssima capacidade de auto-análise do pintor, como o próprio deixou transparecer nos seus vários auto-retratos, um exercício de auto-conhecimento superno em si mesmos.


Como é de esperar, a obra pictural e gráfica de Rembrandt torna-se matéria plástica na narrativa. Por vezes, Typex cita as imagens directamente, no sentido em que nos mostra um desenho ou pintura feita por Rembrandt, mas na sua própria assinatura de banda desenhada. Aqui comparamos directamente um desenho a pincel feito em 1664, de uma mulher condenada à morte, com a versão de Typex (cortámos em torno, deixando visíveis as margens das outras vinhetas; o desenho está no centro da prancha). Repare-se como o autor da banda desenhada não procura criar uma cópia perfeita, uma imitação ilusória, ou uma falsificação, mas procura cumprir de novo os mesmos gestos do mestre pintor. Typex sabe que está a lidar com um dos mais celebrados pintores do ocidente e um inimitável mestre da luz, por isso não o “persegue”, mas rodeia com o seus próprios instrumentos. Os limites desta vinheta-desenho inserido mostra ser uma folha “solta”, tal como a de Rembrandt, e de uma textura ou gramagem comparável, talvez. Rembrandt tinha o seu modelo à frente dos olhos, Typex o desenho, por isso notam-se como as linhas do novo desenho tentam percorrer as mesmas curvas, falhando aqui e ali, sendo quase exactas noutros locais (nos pés inchados, no machado pendurado) e depois o pincel tenta impor sombras. Noutros “usos”, as pinturas surgem enquanto cenas da narrativa, e aí o autor contemporâneo não procura mimar a exactidão do pintor, mas antes traduzir na sua própria assinatura gráfica (veja-se o mesmo exercício, com cortes drásticos na pintura de Rembrandt, em torno de Judas devolvendo os trinta ouros.


Outro aspecto da transformação das imagens em matéria narrativa traduz-se na maneira como o autor tece acontecimentos fictícios que permitem desdobrar possibilidades de relacionamento com o pintor. Por exemplo, do que se sabe histórica e oficialmente, aquele desenho da mulher condenada à morte, uma tal de Elsje, foi feito somente na óptica de um artista, velho, cansado, possivelmente em busca de matéria. Typex utiliza, porém, tudo o que se sabe dela – graças ao processo judicial que a levaria à condenação – para construir um episódio com o seu nome, envolvendo-a sexualmente a Rembrandt, a um só tempo para reinstituir o desenho com uma gravidade emotiva que possivelmente não tem, e ao mesmo tempo para tornar mais complexa a personalidade do pintor, graças a esse episódio a um só tempo tornada mais trágica mas também mais insensível ao sofrimento dos outros. Outros desenhos são empregues para criar episódios (a Ronda - cujo propósito social, título, relação espacial, etc., nada tem a ver com o seu "uso" contemporâneo - surge como cena “verdadeira”, em termos diegéticos; desenhos eróticos surgem como memórias de infância; detalhes de pinturas servirão de cenas numa rua, pormenores numa paisagem urbana, num qualquer interior).


Como vimos, aquele desenho de Elsje foi incorporado na prancha “tal qual” (outros autores, como Baudoin ou Lynda Barry, fazem o mesmo), deixando visíveis os seus traços materiais de artefacto, e criando uma textura dimensional nos seus trabalhos. Essa dimensionalidade ou materialidade é visível ainda na capa, em que apesar de não existir qualquer diferença física em todo o plano, parece estarmos face a uma sobrecapa em papel rasgada, revelando a capa de pele (ou a sua imitação sintética dos nossos dias). Já para não falar do fundo das pranchas, que funcionam como suporte dos desenhos – de maneira que se compreenda a fortuna teórica e analítica que é criar distinções entre “prancha” e “página” -, sublinhando a natureza diferente entre as vinhetas coloridas e emolduradas, os desenhos em silhuetas rabiscadas que aparecem “flutuando”, aquelas que surgem de modo monocromático e sem linhas rectas nos seus limites, ou aquelas que imitam ,de uma maneira ou outra, as estruturas arquitectónicas dos espaços em que ocorrem. E isso permite alguns jogos cómicos da parte do autor, como as manchas de vinho que “sujam” as margens, mesmo ao lado das vinhetas em que comensais já bebidos entornam os seus copos durante um casamento, ou quando uma comitiva italiana do Duque Cósimo vasculha o atelier do velho Rembrandt em busca de telas para comprar “rasgam” o canto da página…

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