7 de maio de 2016

L’homme qui tua Lucky Luke. Matthieu Bonhomme (Dargaud)

Em conjunto com Benoît Crucifix, temos desenvolvido um projecto académico em torno do conceito do “arquivo” em relação à banda desenhada. Trata-se de uma noção complexa e multifacetada, podendo ser descrita de várias formas, tendo em conta as práticas englobadas por essa ideia. Uma dessas dimensões foi alvo de um estudo nosso (no prelo) em torno da figura de Spirou, que nos parece estar a ser repetida, de modos diferentes, não apenas no título alvo deste post como do próximo, dedicado ao Mickey Mouse desenhado por autores centrais da banda desenhada dita franco-belga. O arquivo é uma noção que foi debatida de forma estimulante por autores tais como Foucault e Derrida, e tem encontrado uma fortuna particular nos estudos literários e culturais, cuja influência na leitura interpretante da banda desenhada é consabida: é nesse sentido particular que arquivo não vale apenas pela instituição com esse nome como todas e quaisquer práticas de transmissão do passado, com tudo o que implica no que diz respeito aos processos de inclusão, exclusão e reinvenção do passado. O reaproveitamento de uma personagem como o Lucky Luke, de Morris, não deixará decerto de revelar uma qualquer forma de colocar à disposição e transmitir o passado, e como o articular enquanto discurso. (Mais)

De uma forma geral e sumariamente apresentada, é usual que no contexto da banda desenhada comercial franco-belga as personagens sejam pertença dos seus autores originais, ao passo que na norte-americana elas são marcas registadas de grandes companhias, o que leva a uma flutuação bem maior de estilos visuais e narrativos neste outro território do que no primeiro. Sabemos, como é evidente, que não apenas essa é uma redução que pouca validade analítica terá como existem excepções históricas, por um lado o caso Spirou, bastante especial no espaço francófono histórico, e nos Estados Unidos personagens como The Spirit, por exemplo, ou mais tarde Hellboy. Além disso, desde a recuperação de personagens tais como Blake & Mortimer, após a morte de Jacobs, ou o que tem sucedido com as colecções paralelas com Spirou (“Le Spirou de…”), mas também outras personagens (já falámos de Choc), as águas têm-se diluído um pouco mais. Seria necessária uma análise mais cuidada para compreender as diferenças, por vezes de grau mas por vezes de natureza, entre todas essas práticas. L’homme qui tua Lucky Luke, portanto, deve ser entendido no quadro de vários contextos, que não teremos oportunidade de desenvolver.

Um desses é então o criativo, este relativamente recente desenvolvimento na banda desenhada francófona em permitir que “novos” autores se apropriem de personagens de outrem e criem novas versões temporárias, possam criar paródias ou cheguem mesmo a instilar nova vida “oficial” (como é o caso de Lucky Luke, Astérix, Blake & Mortimer). Por outro, esse mesmo motivo está intrinsecamente relacionado com duas dimensões estruturais: a comercial e a legal. Em primeiro lugar, temos a óbvia necessidade de “deixar vivos os heróis” que permitem um rendimento assegurado às respectivas editoras (e autores ou seus herdeiros), o que é até citado textualmente neste livro de Bonhomme (transfigurado porém por um valor mais nobre). Em segundo, essa mesma sobrevivência e continuidade tem de ser regular, para permitir que os direitos de autor continuem fora do domínio público (daí a prometida “ressurreição” de Tintin mal os direitos estejam a terminar a sua propriedade privada). Uma certa inércia de recepção – da qual não nos escusamos, estando a falar do livro, afinal – leva a que essa “máquina arquivística” se mantenha.

A prática em si, porém, também pode diferenciar-se. O caso presente é, então, muito próximo daquela colecção Le Spirou de…, em que se entregam “as chaves” de uma personagem e se permite que autores construam versões alternativas das personagens. Este é supostamente o primeiro volume de uma colecção intitulada “Lucky Luke vu par…”, esclarecendo de modo cristalino o modelo. A prática consiste em que os autores disponham do tal património ou passado das histórias como bem aprouverem, transformando, por exemplo, os contextos espaciais e temporais das histórias, alterando as relações ou valores morais adscritos às personagens, mesclando princípios de géneros incomuns na série, e por aí fora.

L’homme qui tua Lucky Luke, portanto, inscreve-se plenamente nessa prática de uma “versão”, para a diferenciar da série normal, que já passou por tantas mãos. Tendo-se iniciado a solo com Maurice de Bevere “Morris”, em 1946, rapidamente se transformaria nas mãos de Goscinny. Com a morte deste suceder-se-iam vários escritores e, com a morte do próprio Morris, o desenho passaria para as mãos de Achdé. Bonhomme não está a ser convidado, então, para “dar continuidade” à vida da personagem, até porque o género do humor é abandonado neste título, mas antes a criar uma situação singular com os mesmos elementos. Até certo ponto, quase se poderia ler este livro sem qualquer referência à personagem de Morris, que a história se manteria. Porém, é essa pátina extra que torna a leitura do livro acesa no sentido do arquivo (e que lhe garante a fortuna comercial, claro está).

Bonhomme, cuja carreira tem sido feita com conforto no interior da banda desenhada de aventuras, com os novos fôlegos previstos pelos temas e abordagens culturais da contemporaneidade – a sua série premiada Le voyage d’Esteban é mostra disso -, é detentor de um desenho que recorda, acima de tudo, Uderzo. A razão deve-se à inscrição quase absoluta nos princípios clássicos da linha clara, onde temos o contraste vincado entre personagens simplificadas e estilizadas e fundos pormenorizados e realistas. Mas igualmente um traço que pode oscilar entre uma estilização caricatural (o caso de Astérix no de Uderzo, e Esteban e Messire Guillaume no de Bonhomme) ou registos ligeiramente mais naturalistas (Tanguy & Laverdure e Le Marquis d’Anaon). Bonhomme já havia trabalhado no género do western, na série Texas Cowboy, escrita por Lewis Trondheim, mas que desconhecemos.  

L’homme qui tua Lucky Luke recordará de imediato pelo título um dos clássicos do género no cinema, The Man who Shot Liberty Valence, de John Ford. Como nesse filme, há uma questão premente entre a criação de um mito e a confusão de identidades. É nesse filme que surge a famosa frase, “Quando a lenda se torna facto, imprima-se a lenda”. Ford não estava a criar um discurso notálgico por um Oeste selvagem e violento, mas a querer demonstrar a importância da criação de mitos para a inspiração e processos de cultura. Bonhomme não está senão a cumprir a mesma tarefa, bastando para isso estar atento à quantidade de momentos em que as várias personagens tecem comentários que parecem definir Lucky Luke. O álbum permite ser lido enquanto uma aventura, um mistério “policial/western” que é resolvido pelo herói – quem roubou o ouro da diligência dos mineiros? Quem é o misterioso “índio”? – mas é ao mesmo tempo um ensaio que tenta compreender o papel de Lucky Luke numa paisagem maior. A personagem coadjuvante de Luke, neste livro, Doc Wednesday, diz a certo momento o seguinte: “Viste como as pessoas têm necessidade de heróis!.. És ainda perfeito. Não te desgraces!” L’homme qui tua Lucky Luke tenta compreender em que medida é que esse papel faz sentido e como é que é construído.

O livro abre de imediato com o evento-chave: a morte de Lucky Luke, para depois recuar de imediato para o “início da acção” até chegar a esse ponto. Nesse sentido, o in media res remete a um certo tom épico mas que não é procurado a todos os passos. Bem pelo contrário, Bonhomme tenta ancorar o mais possível as acções numa certa realidade histórica, ou pelo menos plausível. Luke não tem quaisquer características sobre-humanas, nem tampouco as outras personagens: todas elas são movidas por paixões à escala humana e mostram as suas imperfeições como tornam claras as suas qualidades. Luke aparece como um homem cuja heroicidade nasce de uma preocupação genuína pela justiça, que se revela pela forma desapaixonada como tenta exercer essa mesma justiça: é implacável na perseguição do transgressor mas protege-o igualmente das paixões sanguinárias dos que buscam mera vingança. Respeita os outros, sejam “pares” ou “diferentes” (mulheres, índios, etc.), mas não deixa de querer levar a sua avante.

A estrutura narrativa, ou a intriga do, livro não é particularmente surpreendente e, até se poderia dizer, original. Uma dieta substancial de cinema, banda desenhada ou outros meios do género “cáuboi” ajudará a identificar cada um dos elementos que surgem nas páginas do livro, mas é isso o que sublinha a escrita “arquivística” de Bonhomme: a de reaproveitar esses elementos já existentes, e até conhecidos, para uma nova combinação. O mesmo pode ou deve ser dito em relação à “história da personagem”. Tal como no caso dos Spirou, sobretudo aqueles lavrados por Émile Bravo e Yann-Olivier Schwartz, e, noutra escala, Al Severin, também Bonhomme procura no historial da personagem de Morris referências que possa usar. Porém, utiliza-as com parcimónia e até elegância, sem exageros, isto é, sem transformar essa história numa espécie de “moinho de ideias” (como até certo ponto Yann e Schwartz fazem com Le groom de vert-de-gris). Jolly Jumper parece ser um cavalo inteligente, mas é apenas um cavalo. As roupas de Luke ganham uma naturalidade própria. Aparece Laura Legs, que tinha surgido em Le grand Duc (e que também teve o seu papel na versão cinematográfica de 1991) e existem referências a vilões que ele prendeu, mas são apenas matéria de comentário (lá está, parte da “canga” que pertence à lenda que ele próprio é nesta história). E a famosa desistência do tabaco pela parte de Luke transforma-se aqui, ao longo da história, num evento com significado, primeiro num tom humorístico, depois associando-se a um valor moral (e de saúde). Aliás, sendo esta como que “a razão pela qual Lucky Luke deixou de fumar”, Bonhomme está a cumprir uma outra dessas “práticas de arquivo da banda desenhada” que se poderiam identificar como a prática do “Year One” (v. texto sobre Choc).

O autor permite, porém, que em vez de buscar a mais clássica resolução pela violência, o conflito, se escolha antes um caminho quase redentor (mas que também está previsto em alguns dos filmes).

A compreensão do que se deve ao cinema neste álbum encontra-se talvez do modo mais nítido na figura da personagem Doc Wednesday, a qual, é, naturalmente, uma mistura de variadíssimas personagens mais ou menos centrais na história dos filmes western. O nome remete à figura história de John Henry Doc Holliday, que tantas versões cinematográficas teve. O problema com o álcool e o seu papel na economia dos papéis recordará talvez “Dude”, de Rio Bravo, protagonizado por Dean Martin. Mas o rosto desenhado por Bonhomme faz também recordar algo de Robert Mitchum, que entrou em filmes tais como Man with the Gun e El Dorado, cujos elementos também estão presentes no livro. Alguns desses elementos podem ser transportados para outras personagens (como os tremores da mão de Luke, que também poderão ser recordados, num registo cómico, no motivo de Gene Wilder em Blazing Saddles). Enfim, não se esperaria outra coisa de um álbum que faz o seu papel de “homenagem” (leiam-se as tabuletas nos cemitérios para ver o seu alcance).


A composição do livro é absolutamente clássica, tirando partido das estratégias “retóricas” que ela tem permitido no mainstream francófono, assegurando total legibilidade. O uso da cor é também notável, menos pela mestria ou efeitos do que pela segurança das suas escolhas simplificadas, sem gradações, e por vezes optando por contrastes e complementaridades que, subtraindo a naturalidade, sublinham o efeito gráfico. Nesse aspecto, o álbum até recorda práticas já em desuso. Mas o propósito do autor era seguir enfim as passadas de Morris, Goscinny e todos os outros, criando um enxerto entre a personagem e todo um outro arquivo do western, de forma descomplicada, para depois assegurar não apenas a sobrevivência da personagem, como a necessidade de manter os seus mitos.

2 comentários:

  1. Olá Pedro,
    não conhecendo as versões do Spirou de que falas, é apetecível sugerir, pela descrição que fazes deste livro, que há aqui a importação do modelo de desconstrução/revitalização/etc. dos super-heróis. A contextualização que fazes sugere que esta abordagem ao Lucky Luke está na continuidade de exemplos francófonos anteriores, como as tais versões do Spirou de que falas, do Asterix, Blake e Mortimer, etc. Mas será que é possível olhar para esses exemplos também como resultado de uma influência cada vez maior da indústria dos super-heróis? (Se é que há uma "influência cada vez maior")

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  2. Olá, Hugo.
    No artigo no prelo a que me referi não apenas fazemos uma apresentação mais sólida teórica do que pode ser entendido como "arquivo", claro, como abordamos de forma sumária essas questões de contexto cultura-comercial e tradição, ainda que de modo incompleto. No caso do Spirou, sempre tivemos uma personagem que pertencia à editora e que, por isso, passou por vários autores e "personalidades" (independentemente da importância de Franquin, a personagem não era "dele", fê-la "dele", não sei se é claro,e ainda por cima seguindo modelos de Hergé). Estas mais recentes "versões" são, sem dúvida alguma, influenciadas pelo contexto norte-americano e de duas maneiras. Por um lado, precisamente porque as personagens dos super-heróis eram propriedade das companhias, desde a sua fundação que o princípio da "variação" estava a funcionar (Batman e depois o Capitão Marvel/Shazam eram Super-homens alternativos, a Wonder Woman um Super-Homem feminino, etc.). Mas foi preciso chegar a um momento de crise pós-deconstrução que se entrou na roda viva de "Years One", "Elseworlds", apesar de historicamente os "What Ifs?" da Marvel e as "Imaginary Stories" da DC fossem recorrentes.
    O que tentamos depois, claro, de forma mais completa e elegante no artigo,de forma mais sumária nestes textos agora, é perceber os mecanismos mais específicos a essa atitude: no caso do Spirou e do Luky Luke há uma re-historicização, uma ancoragem na verdade histórica, num peso consequente das acções à escala humana, etc. O "Spirou" do Bravo é, sem dúvida, um livro maior. O do Yann e Schawrtz, é mais leves, abraçando assumidamente a "cultura bedê". O do Lucky Luke é igualmente leve, mas entende-se o desejo de enxerto noutra tradição (a cinematográfica, mas sem a mesma capacidade nem de epopeia nem dramática). Nesse sentido, nenhum dos projectos abraça a "ética" dos super-heróis, bem pelo contrário a falácia humana está muito presente.
    Pedro

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