Em conjunto com Benoît Crucifix, temos desenvolvido um
projecto académico em torno do conceito do “arquivo” em relação à banda
desenhada. Trata-se de uma noção complexa e multifacetada, podendo ser descrita
de várias formas, tendo em conta as práticas englobadas por essa ideia. Uma
dessas dimensões foi alvo de um estudo nosso (no prelo) em torno da figura de
Spirou, que nos parece estar a ser repetida, de modos diferentes, não apenas no
título alvo deste post como do
próximo, dedicado ao Mickey Mouse desenhado por autores centrais da banda desenhada dita franco-belga. O arquivo é uma noção que foi debatida de forma
estimulante por autores tais como Foucault e Derrida, e tem encontrado uma
fortuna particular nos estudos literários e culturais, cuja influência na
leitura interpretante da banda desenhada é consabida: é nesse sentido
particular que arquivo não vale apenas pela instituição
com esse nome como todas e quaisquer práticas
de transmissão do passado, com tudo o que implica no que diz respeito aos
processos de inclusão, exclusão e reinvenção do passado. O reaproveitamento de
uma personagem como o Lucky Luke, de Morris, não deixará decerto de revelar uma
qualquer forma de colocar à disposição e transmitir o passado, e como o
articular enquanto discurso. (Mais)
De uma forma geral e sumariamente apresentada, é usual que
no contexto da banda desenhada comercial franco-belga as personagens sejam
pertença dos seus autores originais, ao passo que na norte-americana elas são
marcas registadas de grandes companhias, o que leva a uma flutuação bem maior
de estilos visuais e narrativos neste outro território do que no primeiro.
Sabemos, como é evidente, que não apenas essa é uma redução que pouca validade
analítica terá como existem excepções históricas, por um lado o caso Spirou,
bastante especial no espaço francófono histórico, e nos Estados Unidos
personagens como The Spirit, por exemplo, ou mais tarde Hellboy. Além disso,
desde a recuperação de personagens tais como Blake & Mortimer, após a morte
de Jacobs, ou o que tem sucedido com as colecções paralelas com Spirou (“Le
Spirou de…”), mas também outras personagens (já falámos de Choc), as águas têm-se diluído um pouco mais. Seria necessária uma
análise mais cuidada para compreender as diferenças, por vezes de grau mas por
vezes de natureza, entre todas essas práticas. L’homme qui tua Lucky Luke, portanto, deve ser entendido no quadro
de vários contextos, que não teremos oportunidade de desenvolver.
Um desses é então o criativo, este relativamente recente
desenvolvimento na banda desenhada francófona em permitir que “novos” autores
se apropriem de personagens de outrem e criem novas versões temporárias, possam
criar paródias ou cheguem mesmo a instilar nova vida “oficial” (como é o caso
de Lucky Luke, Astérix, Blake & Mortimer). Por outro, esse mesmo motivo
está intrinsecamente relacionado com duas dimensões estruturais: a comercial e
a legal. Em primeiro lugar, temos a óbvia necessidade de “deixar vivos os
heróis” que permitem um rendimento assegurado às respectivas editoras (e
autores ou seus herdeiros), o que é até citado textualmente neste livro de
Bonhomme (transfigurado porém por um valor mais nobre). Em segundo, essa mesma
sobrevivência e continuidade tem de ser regular, para permitir que os direitos
de autor continuem fora do domínio público (daí a prometida “ressurreição” de
Tintin mal os direitos estejam a terminar a sua propriedade privada). Uma certa
inércia de recepção – da qual não nos escusamos, estando a falar do livro,
afinal – leva a que essa “máquina arquivística” se mantenha.
A prática em si, porém, também pode diferenciar-se. O caso
presente é, então, muito próximo daquela colecção Le Spirou de…, em que se entregam “as chaves” de uma personagem e
se permite que autores construam versões alternativas das personagens. Este é
supostamente o primeiro volume de uma colecção intitulada “Lucky Luke vu par…”,
esclarecendo de modo cristalino o modelo. A prática consiste em que os autores
disponham do tal património ou passado das histórias como bem aprouverem,
transformando, por exemplo, os contextos espaciais e temporais das histórias,
alterando as relações ou valores morais adscritos às personagens, mesclando
princípios de géneros incomuns na série, e por aí fora.
L’homme qui tua Lucky
Luke, portanto, inscreve-se plenamente nessa prática de uma “versão”, para
a diferenciar da série normal, que já passou por tantas mãos. Tendo-se iniciado
a solo com Maurice de Bevere “Morris”, em 1946, rapidamente se transformaria
nas mãos de Goscinny. Com a morte deste suceder-se-iam vários escritores e, com
a morte do próprio Morris, o desenho passaria para as mãos de Achdé. Bonhomme
não está a ser convidado, então, para “dar continuidade” à vida da personagem, até
porque o género do humor é abandonado neste título, mas antes a criar uma
situação singular com os mesmos elementos. Até certo ponto, quase se poderia
ler este livro sem qualquer referência à personagem de Morris, que a história
se manteria. Porém, é essa pátina extra que torna a leitura do livro acesa no
sentido do arquivo (e que lhe garante a fortuna comercial, claro está).
Bonhomme, cuja carreira tem sido
feita com conforto no interior da banda desenhada de aventuras, com os novos
fôlegos previstos pelos temas e abordagens culturais da contemporaneidade – a sua
série premiada Le voyage d’Esteban é
mostra disso -, é detentor de um desenho que recorda, acima de tudo, Uderzo. A razão
deve-se à inscrição quase absoluta nos princípios clássicos da linha clara,
onde temos o contraste vincado entre personagens simplificadas e estilizadas e
fundos pormenorizados e realistas. Mas igualmente um traço que pode oscilar
entre uma estilização caricatural (o caso de Astérix no de Uderzo, e Esteban
e Messire Guillaume no de Bonhomme)
ou registos ligeiramente mais naturalistas (Tanguy
& Laverdure e Le Marquis d’Anaon).
Bonhomme já havia trabalhado no género do western,
na série Texas Cowboy, escrita por
Lewis Trondheim, mas que desconhecemos.
L’homme qui tua Lucky Luke recordará de imediato pelo título um dos
clássicos do género no cinema, The Man
who Shot Liberty Valence, de John Ford. Como nesse filme, há uma questão
premente entre a criação de um mito e a confusão de identidades. É nesse filme
que surge a famosa frase, “Quando a lenda se torna facto, imprima-se a lenda”. Ford
não estava a criar um discurso notálgico por um Oeste selvagem e violento, mas a
querer demonstrar a importância da criação de mitos para a inspiração e
processos de cultura. Bonhomme não está senão a cumprir a mesma tarefa,
bastando para isso estar atento à quantidade de momentos em que as várias
personagens tecem comentários que parecem definir Lucky Luke. O álbum permite
ser lido enquanto uma aventura, um mistério “policial/western” que é resolvido
pelo herói – quem roubou o ouro da diligência dos mineiros? Quem é o misterioso
“índio”? – mas é ao mesmo tempo um ensaio que tenta compreender o papel de
Lucky Luke numa paisagem maior. A personagem coadjuvante de Luke, neste livro,
Doc Wednesday, diz a certo momento o seguinte: “Viste como as pessoas têm
necessidade de heróis!.. És ainda perfeito. Não te desgraces!” L’homme qui tua Lucky Luke tenta
compreender em que medida é que esse papel faz sentido e como é que é
construído.
O livro abre de imediato com o
evento-chave: a morte de Lucky Luke, para depois recuar de imediato para o “início
da acção” até chegar a esse ponto. Nesse sentido, o in media res remete a um certo tom épico mas que não é procurado a
todos os passos. Bem pelo contrário, Bonhomme tenta ancorar o mais possível as
acções numa certa realidade histórica, ou pelo menos plausível. Luke não tem
quaisquer características sobre-humanas, nem tampouco as outras personagens:
todas elas são movidas por paixões à escala humana e mostram as suas
imperfeições como tornam claras as suas qualidades. Luke aparece como um homem
cuja heroicidade nasce de uma preocupação genuína pela justiça, que se revela
pela forma desapaixonada como tenta exercer essa mesma justiça: é implacável na
perseguição do transgressor mas protege-o igualmente das paixões sanguinárias
dos que buscam mera vingança. Respeita os outros, sejam “pares” ou “diferentes”
(mulheres, índios, etc.), mas não deixa de querer levar a sua avante.
A estrutura narrativa, ou a
intriga do, livro não é particularmente surpreendente e, até se poderia dizer,
original. Uma dieta substancial de cinema, banda desenhada ou outros meios do
género “cáuboi” ajudará a identificar cada um dos elementos que surgem nas
páginas do livro, mas é isso o que sublinha a escrita “arquivística” de
Bonhomme: a de reaproveitar esses elementos já existentes, e até conhecidos,
para uma nova combinação. O mesmo pode ou deve ser dito em relação à “história
da personagem”. Tal como no caso dos Spirou,
sobretudo aqueles lavrados por Émile Bravo e Yann-Olivier Schwartz,
e, noutra escala, Al Severin, também Bonhomme procura no historial da
personagem de Morris referências que possa usar. Porém, utiliza-as com
parcimónia e até elegância, sem exageros, isto é, sem transformar essa história
numa espécie de “moinho de ideias” (como até certo ponto Yann e Schwartz fazem
com Le groom de vert-de-gris). Jolly
Jumper parece ser um cavalo inteligente, mas é apenas um cavalo. As roupas de
Luke ganham uma naturalidade própria. Aparece Laura Legs, que tinha surgido em Le grand Duc (e que também teve o seu
papel na versão cinematográfica de 1991) e existem referências a vilões que ele
prendeu, mas são apenas matéria de comentário (lá está, parte da “canga” que
pertence à lenda que ele próprio é nesta história). E a famosa desistência do
tabaco pela parte de Luke transforma-se aqui, ao longo da história, num evento
com significado, primeiro num tom humorístico, depois associando-se a um valor
moral (e de saúde). Aliás, sendo esta como que “a razão pela qual Lucky Luke
deixou de fumar”, Bonhomme está a cumprir uma outra dessas “práticas de arquivo
da banda desenhada” que se poderiam identificar como a prática do “Year One”
(v. texto sobre Choc).
O autor permite, porém, que em vez de buscar a mais clássica resolução pela violência, o conflito, se escolha antes um caminho quase redentor (mas que também está previsto em alguns dos filmes).
A compreensão do que se deve ao
cinema neste álbum encontra-se talvez do modo mais nítido na figura da personagem
Doc Wednesday, a qual, é, naturalmente, uma mistura de variadíssimas
personagens mais ou menos centrais na história dos filmes western. O nome
remete à figura história de John Henry Doc Holliday, que tantas versões
cinematográficas teve. O problema com o álcool e o seu papel na economia dos
papéis recordará talvez “Dude”, de Rio
Bravo, protagonizado por Dean Martin. Mas o rosto desenhado por Bonhomme
faz também recordar algo de Robert Mitchum, que entrou em filmes tais como Man with the Gun e El Dorado, cujos elementos também estão presentes no livro. Alguns
desses elementos podem ser transportados para outras personagens (como os
tremores da mão de Luke, que também poderão ser recordados, num registo cómico,
no motivo de Gene Wilder em Blazing
Saddles). Enfim, não se esperaria outra coisa de um álbum que faz o seu papel
de “homenagem” (leiam-se as tabuletas nos cemitérios para ver o seu alcance).
A composição do livro é
absolutamente clássica, tirando partido das estratégias “retóricas” que ela tem
permitido no mainstream francófono,
assegurando total legibilidade. O uso da cor é também notável, menos pela mestria
ou efeitos do que pela segurança das suas escolhas simplificadas, sem
gradações, e por vezes optando por contrastes e complementaridades que,
subtraindo a naturalidade, sublinham o efeito gráfico. Nesse aspecto, o álbum
até recorda práticas já em desuso. Mas o propósito do autor era seguir enfim as
passadas de Morris, Goscinny e todos os outros, criando um enxerto entre a
personagem e todo um outro arquivo do western, de forma descomplicada, para
depois assegurar não apenas a sobrevivência da personagem, como a necessidade
de manter os seus mitos.
Olá Pedro,
ResponderEliminarnão conhecendo as versões do Spirou de que falas, é apetecível sugerir, pela descrição que fazes deste livro, que há aqui a importação do modelo de desconstrução/revitalização/etc. dos super-heróis. A contextualização que fazes sugere que esta abordagem ao Lucky Luke está na continuidade de exemplos francófonos anteriores, como as tais versões do Spirou de que falas, do Asterix, Blake e Mortimer, etc. Mas será que é possível olhar para esses exemplos também como resultado de uma influência cada vez maior da indústria dos super-heróis? (Se é que há uma "influência cada vez maior")
Olá, Hugo.
ResponderEliminarNo artigo no prelo a que me referi não apenas fazemos uma apresentação mais sólida teórica do que pode ser entendido como "arquivo", claro, como abordamos de forma sumária essas questões de contexto cultura-comercial e tradição, ainda que de modo incompleto. No caso do Spirou, sempre tivemos uma personagem que pertencia à editora e que, por isso, passou por vários autores e "personalidades" (independentemente da importância de Franquin, a personagem não era "dele", fê-la "dele", não sei se é claro,e ainda por cima seguindo modelos de Hergé). Estas mais recentes "versões" são, sem dúvida alguma, influenciadas pelo contexto norte-americano e de duas maneiras. Por um lado, precisamente porque as personagens dos super-heróis eram propriedade das companhias, desde a sua fundação que o princípio da "variação" estava a funcionar (Batman e depois o Capitão Marvel/Shazam eram Super-homens alternativos, a Wonder Woman um Super-Homem feminino, etc.). Mas foi preciso chegar a um momento de crise pós-deconstrução que se entrou na roda viva de "Years One", "Elseworlds", apesar de historicamente os "What Ifs?" da Marvel e as "Imaginary Stories" da DC fossem recorrentes.
O que tentamos depois, claro, de forma mais completa e elegante no artigo,de forma mais sumária nestes textos agora, é perceber os mecanismos mais específicos a essa atitude: no caso do Spirou e do Luky Luke há uma re-historicização, uma ancoragem na verdade histórica, num peso consequente das acções à escala humana, etc. O "Spirou" do Bravo é, sem dúvida, um livro maior. O do Yann e Schawrtz, é mais leves, abraçando assumidamente a "cultura bedê". O do Lucky Luke é igualmente leve, mas entende-se o desejo de enxerto noutra tradição (a cinematográfica, mas sem a mesma capacidade nem de epopeia nem dramática). Nesse sentido, nenhum dos projectos abraça a "ética" dos super-heróis, bem pelo contrário a falácia humana está muito presente.
Pedro