Nota inicial: Alguns textos nascem de circunstâncias tão específicas que não ganham o mesmo contorno de perenidade do que quando lavrados com o intuito de serem publicados. Todavia, acreditando que poderá (esperemos) algum mérito num ou outro apontamento, tal como já ocorreu no passado, colocaremos aqui o texto lido por ocasião da mesa-redonda organizada para a última edição do Sci-Fi Lx, anunciado anteriormente.
Fizéramos isto no caso do texto lido na SHOT 50, igualmente em torno da ficção científica, e aproveitando algumas noções pensadas para um texto anterior na Vértice, "A banda desenhada como Gedankexperiement, o
exemplo de Grant Morrison." Mas o pretendido neste outro texto era tão-somente a criação de um substrato sobre o encontro entre a banda desenhada e a ficção científica, e lançar algumas linhas de reflexão que depois seriam discutidas pelos autores presentes, a saber, André Coelho, André Pereira, Carlos Pedro e Sofia Neto, o que foi feito com entusiasmo e desenvoltura intelectual. A versão do texto que apresentamos são apenas as notas mais estruturadas e não correspondem nem à totalidade nem à ordem do que foi dito. (Mais)
Quando escrevi
sobre Terminal Tower, de Manuel Neto e André Coelho, citei L'écriture du désastre, de Maurice Blanchot, em cujo texto lemos o seguinte: “...o desastre é desconhecido; é o nome
desconhecido para aquilo que no próprio pensamento nos dissuade de pensar sobre
ele, deixando-nos sós, ainda que na sua proximidade. Sozinhos, e dessa forma
expostos ao pensamento do desastre que importuna a solidão e faz transbordar
toda a sorte de pensamento, como a intensa, silenciosa e desastrosa afirmação
do exterior”. É sob esse signo, do desastre, que pensei o "buraco negro" do que se poderá instituir em alguma da banda desenhada em relação ao futuro, quando constituído pelo género da ficção científica.
Estabeleceria então, em primeiríssimo lugar, uma distinção necessária, e nem sempre bem discutida, entre género (a ficção científica) e meio (a banda desenhada). Os géneros não são compartimentos estanques passíveis de uma
definição objectiva e incontroversa. São categorias histórica e culturalmente
flexíveis, mas que seguem um número de códigos que vão sendo reformulados e
manipulados, que nos permitem considerar sempre uma ligação a um campo
alargado. A ficção científica é, na verdade, um mega-campo, pela sua
abrangência, um supra-campo, dada as possíveis especializações no seu seio, e
um meta-campo, uma vez que atingiu uma tal desenvoltura que permite igualmente
paródias, desvios conscientes e um pensamento sobre si próprio em exercícios
metaficcionais. O Homem do castelo alto
é um exemplo sobejamente conhecido.
Poderíamos fazer um exercício de eleger quais seriam os
elementos suficientes e os necessários para que um determinado texto se
constituísse “de ficção científica”, mas encontraríamos sempre argumentos nos
mais variados romances, filmes e bandas desenhadas para debater a possibilidade
de outras categorizações. O mais importante, então, é focarmo-nos no tipo de
prioridades da ficção que nos é apresentada, o foco, a atenção, a intensidade,
a distribuição da narrativa, etc.
Se pudermos tentar uma
aproximação, não tanto definicional mas descritiva pelo menos, diríamos que a
ficção científica apresenta-nos realidades alternativas em termos de tecnologia
e sociedade, usualmente projectadas no futuro. Trata-se sempre de uma
especulação que espelha, necessariamente, o estado civilizacional de onde ela
emerge e as suas preocupações ou desejos. E essas alternativas vão imbricar-se
com noções tais como as de identidade, de diferença, o corpo humano, o si, a
relação com o espaço e o tempo, com a biosfera, com as tecnologias, e o
desenvolvimento de sistemas sociais, económicos, militares, de justiça, o controlo
possível da ciência e das autoridades e o caos, as causas externas maravilhosas
(no sentido de incríveis) e a capacidade de resposta, e por aí fora.
É
menos importante, portanto, a meu ver, a discussão formalista da ficção
científica do que a compreensão de como é que esse género corrobora ou subverte
os princípios políticos em vigor, ou como hoje se pode dizer, as
heteronormatividades. É claro que a ontologia do género é multifacetada, e não
podemos esperar que todas e quaisquer instâncias desse mesmo género partilhem
as mesmas características, estruturas ou fitos. Basta pensar na diferença entre
ficções tecnófilas e tecnofóbicas, e penso que alguns dos nossos autores aqui
presentes exploram essas dimensões nas suas obras. Mas nenhum deles cai no fetichismo
a que por vezes a ficção científica se pode abandonar, quando há mais prazer na
identificação e coleccionismo dos objectos (sabres de luz, X-wings, Tardis,
Eagles, Omnitrix, etc.) do que no aproveitamento dos elementos humanos
presentes nas narrativas, ou a desconsideração de ficções que sejam mais
“calmas”, digamos assim, no uso desses elementos objectuais. Aí criar-se-iam
dicotomias, talvez fáceis demais, entre Stalker
e Matrix, eXistenZ e Inception, 2001 e Guerra das Estrelas.
Gostaria de aproveitar o que
Andrei Tarkovsky diz sobre o seu tratamento de Stalker e Solaris, em Esculpir o tempo. Diz o realizador russo
que a base dessas histórias era de facto fantástica (o elemento especulativo),
mas que na verdade poder-se-ão ter revelado factores de distracção ao âmago das
histórias. É isso o que eu quero dizer com o “fetichismo” da fc, em que o
interesse nasce mais pelo desenvolvimento de equipamentos, mecha, paisagens ou
espécies fantasiosas, do que a transformação dessas condições hipotéticas num pasto
para reflectir sobre a condição humana.
Isso
implica uma interpretação polifónica do género, que nos estudos literários tem
tido lugar apenas a tempo recente. Enfim, nada que Robert Heinlein não tenha já
exposto no seu famoso ensaio On the
Writing of Speculative Fiction, quando escreve que “a história não é sobre
a nova situação, mas como solucionar os problemas que surgem com a nova
situação”.
O filósofo norte-americano Noël
Carroll, apesar de estar a discutir o género do horror, discute como “o paradoxo
da ficção”, que se expressa por uma pergunta aparentemente simples: porque é
que sentimos emoções tão fortes em relação àquilo que sabemos, racional,
cognitiva, inteligentemente, não existir? Penso que tem precisamente a ver com
o prazer que sentimos nesse exercício imaginativo de construirmos um problema e
depois tentar solucioná-lo, ou compreender como ele funciona. No fundo, é um
prazer a um só tempo escópico e mental. Enfim,
tem a ver com uma especulação, até no sentido etimológico da palavra, de specere, “olhar, ver”. É uma literatura
conceptual, de ideias. Curiosamente, este conceito, unindo “especulação”,
“observação”, “contemplação” era expresso em grego pela palavra theoria. Portanto, estas considerações
não são de todo desapropriadas.
Desta
forma, a banda desenhada, enquanto meio particularmente visual, vem entrosar-se
neste género de uma maneira vivaz. Por "meio" queremos dar a entender uma interacção
entre elementos tais como as dimensões formais – no caso presente, o
agenciamento de várias imagens cuja articulação mútua é produtora de
significado – mas também a história específica e usos da banda desenhada ao
longo do tempo, e até mesmo as práticas sociais que farão compreender aspectos
mutáveis como a recepção popular e crítica (que não é exclusiva, mas
complementar), as condições de produção, etc. Não podemos, claro está, fazer aqui a
história deste género neste meio, mas que, se partirmos de uma perspectiva conservadora, encontraríamos alianças nos seus desenvolvimentos modernos, com os exemplos óbvios de Buck Rogers e Flash Gordon.
Algumas
referências contemporâneas, que apresentei sumariamente na ocasião da mesa-redonda, surgiam ali somente como uma amostragem heurística
e nada objectiva, já que espelham acima de tudo conhecimentos e inclinações
pessoais (East of West, Supreme: Blue Rose, Prophet, Patience, Distance Mover, Âama, Nu-Men, The Private Eye, Jan's Atomic Heart, Curveball, Powr Mastrs, entre outros). Mais próximo a uma geração de leitores hoje adultos, a diversidade assombrosa do entreleçamento dessas linhas de fuga é conhecido, que tanto bebe da
aventura (pensem em Valérian, de
Christin e Mézières) como do psico-onírico (o Vagabundo dos Limbos, de Godard e Ribera), do sexual-libertino (a Barbarella de Forest) ao
techno-zoomórfico (o Metalzoic de Pat
MIlls e Kevin O’Neill), sem esquecer a space
opera, do Incal a Saga. Há espaço (pun intended) para o épico e o cómico, o violento e o sexualizado,
o dramático e o técnico, etc. Se se posso dizer alguma coisa de características
comuns entre os autores portuguese então convidados, poderíamos mencionar uma espécie de campo do desapaixonado, do melancólico, até do cínico, em alguns casos, em que é mais a vida quotidiana e a os problemas emocionais internos das personagens que contam, do que o tal fetichismo mencionado.
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