8 de julho de 2016

Eu, assassino. Antonio Altarriba e Keko (Arte de Autor)

Depois da recepção significativa de El arte de volar, e a sua integração na exposição sobre autobiografia no FIBDA, é natural que tenha surgido uma atenção maior para com o trabalho de Altarriba, que se havia nutrido sobretudo num círculo mais restrito literário, e no que diz respeito àquele relacionado com a banda desenhada, apenas numa esfera académica (Altarriba é também um investigador do campo) ou de experiências literárias afectas, como foi o caso do livro “proibido” sobre Tintin. A publicação em português deste volume vem juntar-se a dois outros volumes saídos nas duas colecções Novelas Gráficas, da Levoir, com A arte de voar no ano passado e o volume que sairá em Setembro. Todavia, se esses dois outros títulos são estritamente do campo autobiográfico, mesmo que expandido tocando as vidas dos pais, respectivamente, Eu, assassino procura explorar uma outra maneira de fazer implicar o eu, que não através do programa clássico da confusão entre narrador, protagonista e autor. (Mais)
Este álbum, de 130 pranchas, estende-se em torno da prática do assassinato como uma forma de arte, recuperando de forma indelével o famoso ensaio de De Quincey (de 1827). Mas onde o autor inglês procurava inscrever-se numa vetusta tradição do ensaio satírico, à qual se poderia juntar Sterne e Orwell, ou mesmo Sade, de uma forma diferente, Altarriba e Keko criam um mecanismo de maior dramatismo, glauco, e associado de modo directo às práticas contemporâneas das artes visuais (incluindo a performance, a body art, process art, site-specific, as instalações, a land art, etc.). Este livro na primeira pessoa coloca um professor de História de Arte numa universidade basca, Enrique Rodríguez, a relatar a sua vida e trabalho, sublinhando sobretudo as mortes que ele leva a cabo, abrindo-se mesmo o livro com um assassinato improptu, como ele próprio o proclama, de um transeunte. Essa é uma prática que ele leva a cabo de forma secreta, obviamente, e que o próprio considera ter uma dimensão estética acima de tudo. As mortes que ele provoca são, portanto, uma forma de arte. Poder-se-ia dizer então que todo o livro é mais uma espécie de manifesto que tenta explicar como é que essa forma de arte se erige, mais do que uma concentração na intriga narrativa da sua personagem principal.

O fascínio pelos assassinos é algo que se estende na história da modernidade, sobretudo a partir do momento em que uma moralidade subsumida à fé se começa a esboroar, e como o próprio Professor Rodríguez vai explicando nas suas paletras, que mais rapidamente admitem as preocupações absolutas da arte, formal, técnica e sígnica nas grandes telas de um Reubens ou de um Grünewald do que propriamente na pistis desses mesmos autores. Quincey é apenas um desses gestos primários nessa direcção, assim como o será o ensaio sobre o nascimento do século XX com From Hell, de Alan Moore e Eddie Campbell ou da volatilização da empatia em American Psycho, de B. E. Ellis. Eu, assassino vem introduzir-se nessa linha de interrogações sobre a crueldade humana, o sofrimento atroz nas mãos de pessoas sem qualquer empatia, e o desvio das questões centrais em nome de um hipotético “valor superior”. Neste caso, o da arte, entendida, a nosso ver, como um princípio abstracto e desconexo da experiência humana, e que por isso tão bem se coaduna com o estilo “desapaixonado” de Keko neste projecto.

Uma vez que Antonio Altarriba é um professor universitário e um intelectual de primeira craveira, não é de admirar que ele introduza na trama narrativa toda uma série de camadas ou linhas de fugas associadas à vida académica, quer no que ela tem de novelesco e picaresco quer no que ela significa em termos intelectuais. Desta maneira, seguimos Enrique nas funções extra-docentes que tem de cumprir, desde a participação em júris de dissertações, conferências e trabalhos de investigação internacional, a direcção de uma revista científica, mas também as cansativas reuniões de conselhos pedagógicos, administrativos e as sempiternas “guerrinhas intestinas” de qualquer departamento, que neste caso enrola questões quer de proeminência académica, quer ainda de questões políticas (a luta basca) e até de tretas de cama. Além disso, e até pela própria matéria da área de estudos de Enrique e a sua prática de assassino “artístico”, tudo isto leva a que se crie uma rede de citações e intertextualidade clara, a qual é particularmente séria.

São vários os exemplos em que encontraremos alguns livros da cultura popular a tentar citar textos de um certo círculo intelectual, mas muitas vezes são usos superficiais e dramáticos, despojados da seriedade original da fonte e por vezes mesmo revelando uma falta de compreensão desses mesmos gestos. Um exemplo máximo e recorrente é Nietzsche, e o seu “Super-Homem”, mas pode acontecer igualmente com objectos de arte, ficando sempre mais ou menos por um ambiente expectável. No caso de Eu, assassino, temos uma sofisticação maior. Vemos as capas de livros, por exemplo, de Elaine Scarry, Slavoj Zizek, Bruno Bethelheim, o Conde de Lautréamont e o Marquês de Sade, construindo uma complexa malha de discursos efectivamente complexos em torno das questões abordadas ao longo do livro, prometendo ora maior desenvolvimento delas no diálogo com esses autores ora uma plataforma de base de onde emergiram as ideias expostas. Poderia, ou poderá mesmo, ser visto apenas como um carpet bombing de referências mais ou menos coadunadas à natureza do livro (seria assim tão estranho que alguém estivesse a ler algo que nada tivesse a ver com a trama?), mas é uma estratégia de densidade interessante.

O mesmo se pode dizer do acesso que vamos tendo às obras de arte estudadas ou mencionadas por Enrique face ao seu trabalho (Grunewald, Goya, até Lucien Freud e Bacon) ou que ele e a jovem namorada visitam por ocasião de um festival de arte, com artistas reais como Zhang Huan e Lucy Mcrae (e não “Macrae”), mesmo que se usem obras “falsas” (quase como naquela colaboração entre Paul Auster e Sophie Calle, em que o diálogo mútuo conduzia a novos gestos entre os autores), citações a Stelarc, etc. Talvez haja leitores que se recordem do Festival Atlântico, organizado pela galeria zdb, há quase 20 anos, por onde passaram Orlan, Stelarc, Ron Athey, entre outros, abrindo espaço precisamente a uma larga discussão sobre o espaço da arte na sua intersecção com a manipulação do corpo humano, os seus limites e o papel da dor, sofrimento, violência, como reflexo de transformações de outras condições externas (política, economia, etc.). Isto não é um desvio, de forma alguma, de Eu, assassino, uma vez que Enrique vai tecendo sempre considerações sobre o seu papel enquanto promotor destas acções, a seu ver estética, da violência e destruição. No entanto, o autor está menos interessado em questões do cruzamento entre a biologia e tecnologia, o pós-humano, o transhumanismo, a body art, do que um uso do acto de assassinato e da performance para comprovar ideias sobre a crueldade inerente ao seu humano e uma absoluta justificação do supremo acto egotista: tirar a vida a outrem. Arriscar-nos-íamos a dizer mesmo que alguma da arte contemporânea se encontra aqui para ser escarnecida ligeiramente (a piada em torno de um pseudo-Pollock é expectável, se bem que aqui seja mais o embuste do artista hipócrita o que é “castigado” do que a forma da action painting em si).

Podemos imaginar então que Eu, assassino, é uma espécie de cruzamento entre Henry, Retrato de um assassino (de John McNaughton, 1986) e manifesto artístico. Não há uma procura pela obscenidade gratuita dos actos violentos, mas antes uma sua integração na forma como o protagonista os racionaliza (mais do que “justifica”), mas ao mesmo tempo há uma sua colocação num fluxo tranquilo da sua vida pessoal – conjugal, amorosa, profissional, intelectual, etc. - do professor. Uma das estratégias de criação de significado dessa implicação entre distanciamento ficcional e aproximação não se encontra na criação de um domínio de simpatia para com o protagonista, mas sim na forma como o livro roça com a autobiografia. O rosto do assassino é emprestado do próprio escritor, como se ele desejasse demonstrar que as ficções que fazemos aos nos colocarmos do lado do redentor ou do herói são o caminho mais curto para a criação de falsidades dicotómicas e moralizantes. É preciso namorarmos o abismo, por assim dizer, para o melhor evitar, talvez. Daí que ele cite (por título talvez apenas no prefácio português?) a novela de Eça de Queiroz, O Mandarim, na qual se coloca uma questão ética sobre os limites da nossa própria crueldade, ainda que de forma conservadora, moralista e religiosa-por-precaução. Todavia, a verdade é que a questão ética tem de ser colocada antes de tudo. Ela é basilar, tem de ser impenetrável a quaisquer “tentações”: ou se acredita num limite inultrapassável em relação à vida humana ou se aceita que existe um relativismo obsceno. Que é precisamente aquilo que Enrique perpetra sem o compreender como tal.

Apesar das considerações que o próprio Enrique Rodríguez tece sobre os assassinos, não deixam os autores de seguirem algumas ideias costumeiras, começando desde logo pela inteligência e sofisticação cultural da personagem principal. Um pouco como a personagem de Hannibal Lecter (sobretudo na ultra-estilizada série de televisão, Hannibal), Enrique é um homem que jamais perde o controlo das suas acções, planeia tudo e tem conhecimentos quase enciclopédicos que utiliza nas suas acções. Não da forma quase sobrenatural da personagem inventada por Thomas Harris, mas dentro de uma mesma “família”. Além disso, e apesar de algures se falarem dos “finais felizes” necessários nas histórias para assegurar o status quo burguês da justiça que funciona e a manutenção da segurança, esse não é precisamente o mecanismo ficcional dos nossos dias, que prefere antes uma vitória do mal, digamos assim, e que aqui, ainda que modo indeciso, se aventa. Uma das maneiras como a empatia é negada ao leitor não passa somente pelo tratamento de Enrique ele mesmo, mas das outras personagens também, sobretudo das vítimas, retratadas de tal como que encontramos quase justificações para as suas mortes: a arrogância e natureza afectada do comissário artístico Fugain ou o apagamento ontológico da funcionária do museu, ou a total ausência de contextualização do homem degolado na rua ou o idoso nas termas de Budapeste.

Outro aspecto algo menos feliz é a forma como as figuras femininas são tratadas. Se existe alguma diversidade das mulheres da vida do professor, todas elas estão ligadas à sua valência (ou ausência) sexual, não havendo qualquer mulher que lhe seja um verdadeiro par intelectual. E não deixa de, pelo facto do protagonista partilhar o rosto de Altarriba, haver aqui uma dimensão de projecção de desejo masculino eventual do(s) autor(es). Todavia, é preciso ter em mente que esta dimensão pode ter a ver com a contínua construção literalmente “anti-pática” (etim., “contra o sentimento”) do protagonista.

O livro mostrado/citado de E. Scarry, The Body in Pain, explora pelo discurso filosófico como a dimensão da dor é impossível de partilhar, e como o controlo do sofrimento pelo torturador, assassino, etc., tem a ver igualmente com um controlo da voz ou silêncio da vítima, que perde agência nesse mesmo acto. Mas Enrique parece querer, na oclusão da agência das suas vítimas (afinal de contas, ela são mortas por Enrique), que elas mantenham um qualquer grau de criação de significado que remete para eles mesmos, agora objectos de arte, e não para o assassino, isto é, o “autor”. Não é propriamente uma glória pessoal que o assassino deseja, mas antes uma assunção total da importância do seu “objecto” (os corpos mortos). Daí que procure criar um homem-puzzle, que procure incutir uma nova personalidade ou mesmo existência na sua vítima mais “apagada”, etc. Essa inscrição de um novo valor continua a ser um apagamento da vítima “real”, afinal de contas.

O livro cria então uma ficção que, apesar de colocar um “assassino em série” no palco, quer ao mesmo tempo desmontar o fascínio que por eles temos. As legendas que mimam a voz do narrador são as do próprio Enrique, por isso temos sistemicamente um mundo construído de acordo com a sua focalização. Não há uma única passagem que nasça da percepção de outras personagens, com a única aparente excepção quando nos apercebemos que Enrique é seguido pelo detective Quesada, mas mesmo assim podemos ser levados a crer que se trata de algo que ocorre com o conhecimento (e controlo?) do nosso protagonista. Assim sendo, todas e quaisquer discursividades que possam emergir deste livro a Enrique pertencem. Não é procurada qualquer “razão” biográfica, trauma ou segredo, desvendado no momento certo, para os seus assassinatos, sendo estes subsumidos com efeito a um propósito quase supramente estético, sem que haja interesses particulares em ganhos materiais a partir deles. A não ser o da satisfação, quiçá, na construção de um objecto de arte, de uma nova realidade, de uma questão inédita até àquele momento.


É claro que a interpretação de toda a intriga, e da sua “lição principal” dependerá de muitos factores do próprio leitor, e a frase “matar é uma arte” não pode ser entendida como uma verdade absoluta, mas antes aquela que Enrique quer lavrar. Mas falha, claro, por não compreender, mesmo até quando discute as obras de arte que analisa nas conferências, desde a Crucifixação de Grünewald aos Desastres da Guerra de Goya, que a arte se move sobretudo por dois caminhos. O do ser um “jogo livre” das faculdades, como queria Kant, e de ser uma construção de uma futura comunidade A destruição de uma vida, e a “criação” de uma obra não-partilhável, não cria qualquer comunidade, é anti-humana.

Já tínhamos falado de um livro de Keko, curiosamente também sobre arte, há uns anos, mas não prestáramos atenção especial à sua própria tarefa de desenhador. Este livro é necessária e literalmente mais negro que o anterior, uma vez que as linhas dos sólidos contornos das personagens e objectos são grossos como filamentos de vitrais, mas a cor está quase ausente. Quase, pois existem apontamentos de vermelho que se comportam de modos muito distintos. Por vezes, parecem querer sublinhar uma percepção especial de alguma personagem (como ocorria com as cores vivas em Rumble Fish), por outras vezes é apenas um sinal de presença do sangue, para dramatizar os momentos de violência (e vejam-se as duas primeiras páginas para se compreender de chofre essa mecânica de significação). Outras ainda, como é o caso das maçãs, é antes num papel de simbolismo que traz essas linhas todas unidas num outro ponto.

O desenho de Keko tem uma característica entre o estilizado e o empedernido, que recorda um pouco Marc-Antoine Mathieu, se bem que o propósito seja aqui mais ancorado na solidez. Mesmo nos momentos mais dinâmicos, há uma construção preferencialmente estática, que garante alguma gravidade e peso a esses mesmos movimentos. Daí que o desenhador tire partido de muitas das marcas gráficas típicas de uma banda desenhada convencional (linhas de impacto, onomatopeias pop, gotas de surpresa, etc.), que por vezes parecem algo deslocadas em relação ao estilo visual. Essa característica estática é ainda corroborada pelo uso de cenários, sobretudo quando envolvem grandes planos de conjunto de espaços reais, interiores ou exteriores, sob a forma de fotocópias “sobre-expostas”, diminuindo a resolução e aumentando o grão, incutindo uma qualidade sombria, glauca, austera em relação às personagens mais estilizadas mas jamais leves (o que nos parece ser uma técnica muito próxima àquela que é seguida, por exemplo, por Dave Lloyd em V for Vendetta, no original a preto-e-branco).


Livro austero, portanto, na forma e no conteúdo, não criando propriamente um ambiente familiar na forma como trata o seu tema, mas antes de maneira perturbadora, Eu, assassino, contudo, obriga o leitor a perscrutar-se a si mesmo para não cair na simpatia pelo diabo.  

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