Esta
antologia parece pretender tornar-se um gesto anual, uma paragem
única e concentrada que reunirá material de várias fontes, criando
uma imagem agregada mas variada da produção nacional, no Brasil, de
banda desenhada. Não pretende esgotar o assunto, nem trilhar um
caminho único, mas providenciar um público mais generalizado com
instrumentos para poder aceder a alguma produção que, mesmo no
Brasil, poderá eventualmente escapar à atenção mediática mais
usual, presa que estará à exposição a objectos desde logo
familiares. Tendo já neste espaço tecido ideias sobre a natureza
das antologias, o seu gesto de “florilégio” e de “embaixada”,
duas metáforas que funcionam na perfeição aqui, entremos de chofre
no seu trabalho. (Mais)
O
grande modelo deste projecto é a antologia norte-americana The
Best American Comics (BAC),
da Houghton Mifflin Harcourt, que contava igualmente com um editor ou
editores fixos para a série, que faziam uma primeira selecção,
tendo depois a cada ano um editor especial, que tomava as decisões
finais e “assinava” o gesto. Também se poderiam citar as duas
edições de An Anthology of Graphic Fiction, Cartoons, & True Stories,
editada por Ivan Brunetti para a Yale, ou o caso único da
McSweeney's Quarterly Concern, No. 13: An Assorted Sampler of North AmericanComic Drawings, Strips, and Illustrated Stories,
editada por Chris Ware, mas é a BAC
que se manteve ao longo do tempo como o grande modelo. Daí que cada
uma delas se poderão chamar “a antologia de Jeff Smith”, a de
“Neil Gaiman”, a de “Alison Bechdel” e por aí fora. No
caso presente, temos Rafael Coutinho e Clarice Reichstul como
“organizadores”, sendo o “editor convidado” Érico Assis. O
facto de não terem optado por nenhum tipo de nomenclatura imediata
de juízo de valor (“os melhores quadrinhos”) é uma boa
estratégia, que evita desde logo o próprio factor de inclusão como
um desses juízos, responsabilizando e personalizando assim a escolha
e estratégia de comunicação. Eventualmente, poder-se-á imaginar
dizer que esta é a antologia “de Érico Assis”. Ainda assim, é
por demais natural que a própria existência desta antologia seja
vista em sim mesma como um gesto de natureza valorativa (“os
melhores”) e política (“o que merece mais exposição”).
Como
dissemos, o projecto prevê alguma continuidade, em que o título
genérico se manterá, com a excepção do adjectivo que conduzirá o
juízo do editor convidado. Aliás, Érico Assis usa o seu espaço de
expressão precisamente para prever ou projectar outras
possibilidades, como “Excelso”, “Maderfãquin” e
“Laerte-Angeli-Glaucoesco” dos anos vindouros. É muito
interessante que o primeiro adjectivo seja então “fabuloso”, que
o autor explica pelo seu significado de elogioso e hiperbólico, mas
jamais se referindo ao seu sentido primário, o de estar associado a
uma “fábula”, isto é, a algo que se conta, relatável,
transmissível, portanto. Não é esse o propósito de uma antologia
anual, a de servir de uma espécie de embaixada para um determinado
estado de produção? Por outro lado, ”fábula”, enquanto género
particular da literatura, está também ligado a uma camada de lições
morais, fantasia, e até personagens não-humanas. Portanto,
poderíamos entender a antologia como uma ficção, mesmo que
momentânea.
No
caso norte-americano, estaríamos a falar de um território de
produção muito mais alargado, com vários públicos e instrumentos,
em relação ao qual as antologias BAC
têm um propósito de filtro para um público mais adulto, avisado,
politicamente envolvido, colocando de lado a dita produção
mainstream.
Esse princípio geral parece presidir em termos gerais O
fabuloso quadrinho brasileiro,
também, mas com uma matização bem distinta.
Tendo
havido uma particular controvérsia em torno da representação
deficitária de autoras brasileiras – e que estamos em crer
possuíam qualidades suficientes para estarem presentes num gesto
desta natureza -, mas não podendo de forma alguma poder afirmar
conhecer a “cena” de maneira suficiente, remetemos a um artigo ou outro sobre essa questão. Não
deixamos de apreciar, porém, o aparente paradoxo (ou daí, talvez
não) de incluírem uma história como “A sub-representação
feminina no imaginário dos autores” da autora que assina como
LoveLove6, para depois haver precisamente uma sub-representação de
toda uma geração.
De facto, apesar de tentarmos o melhor possível
em acompanhar alguma produção brasileira, o nosso conhecimento é
sempre pautado por limitações óbvias, quer dado o limitado acesso
quer dada a escolha imediatamente ao tipo de material a que prestamos
atenção. Apenas um conhecimento mais engajado e localizado da
produção brasileira poderia ajudar-nos a compreender o alcance do
trabalho editorial, mas conseguimos imaginar um exercício similar se
houvesse algo em Portugal desta natureza, tendo já exercido esse
papel em várias ocasiões (uma exposição, uma lista, uma conversa,
uma aula, etc.). O que achar “mais representativo?”, qual o
contexto de discussão da selecção? Que perspectiva se pretende
criar à partida? Essas perguntas devem estar patentes no processo de
trabalho para depois ter a certeza de se atravessarem os vários
pólos de produção, géneros, estratégias autorais, formatos,
canais de distribuição, etc. Recordemo-nos que antologias tais como
Crumbsou Quadradinhos
são bem distintas entre si, logo terão instrumentos diferentes a
pautá-los. Em que medida é que se publicaria uma antologia que
reunisse um trecho de Pizzaboy
lado a lado com uma curta de Hetamoé? Ou melhor, em que contexto
isso faria sentido e em que sentido se deveria evitar essa situação?
Não há uma fórmula abstracta universal.
Acreditamos
então que os editores terão elegido alguns critérios logo à
partida para fazer a escolha, como por exemplo não incluírem
qualquer tipo de adaptações literárias, mesmo que não neguemos
nós que podem existir prestações nesse campo que avançam a
linguagem de formas mais interessantes do que “trabalho original”.
Ou terem posto de lado projectos mais comerciais e dados a princípios
genéricos mais normalizados, em nome de criações autorais. Ou que
haja mesmo algum trabalho de inclusão ditado por afinidade
electivas, elos de colaboração, estratégias que terão menos a ver
com um suposto olhar objectivo (impossível de atingir).
No
cômputo final, é necessário estar-se ciente de que a
responsabilidade de criar este tipo de embaixadas é sempre muito
grande, e argumentar sobre essas mesmas escolhas ou arcar com as
consequências dos sectores menos representados (como é o caso das
autoras, ou outras áreas temáticas e/ou autorais que possamos
desconhecer). Ainda assim, cumpre-nos dizer que respeitamos mais
aqueles gestos em que há uma clara definição na “assinatura”
das escolhas do que uma tentativa em se ser abrangente, com o risco
de criar uma visão despersonalizada, disforme e incoerente apenas
para agradar a gregos e troianos.
Ainda
assim, não se pode dizer que Fabuloso
Quadrinho
seja um samba de uma nota só, uma vez que existem trabalhos das mais
diversas naturezas em termos de género, humor, ambiente, estrutura e
até de formato (ainda que se procure um denominador comum para se
encaixarem nestas páginas). Existem excertos de obras maiores, como
são os casos de Cumbe,
Talco
de Vidro,
Dois
Irmãos,
de que chegámos a falar, mas também Pigmaleão
de Diego Sanchez ou Maia
de Denny Chang, entre outros. Existem trabalhos de tiras de humor
(mesmo absurdo, surreal) como os casos de Bruno Maron, Ricardo
Coimbra, Alexandre S. Lourenço, Laerte, Odyr, Alexandra Moraes, etc.
Podemos encontrar exemplos de géneros infanto-juvenis (Klaus
de Filipe Nunes, Starmind
de Ryot e Daniel Bretas), aparentes retratos de um quotidiano
melancólico, humor derisório e auto-destrutivo (Fag
de com força,
de Pablo Carranza), modos distorcidos de dar conta da sociedade
contemporânea (Milhões
agora vivendo jamais morrerão de
Diego Gerlach, Cão
cego, rei monstro
de Pedro Franz ou Psicose
de André Kitagawa) e relatos mais poéticos e experimentais (Dentes
de elefante
de Pedro Cobiaco). O espaço é, então, diversificado, e
dificilmente se encontraria um denominador comum para caracterizar a
produção brasileira de banda desenhada, sinal da saúde e
sofisticação de um país, mas igualmente da visão e trabalho dos
editores.
A
distribuição dos trabalhos não é feita por núcleos, havendo
alguns autores que têm trabalho em vários momentos do volume,
nomeadamente Laerte, Alexandra Moraes e Odyr. Se se pode compreender
essa opção como uma forma de não concentrar o humor diverso desses
autores, por outro lado não deixa de exercer uma espécie de
presença reforçada na antologia, como autores de importância
maior, que merecem ser revisitados, e não apenas se confinarem no
seu espaço próprio, como todos os outros.
Uma
última palavra ficaria para a capa. Não deixa de ser curioso que a
escolha tenha sido sobre a utilização de um número de personagens
famosas da banda desenhada infanto-juvenil “clássica” brasileira
(Bidu, Mônica, Magali, o Menino Maluquinho, Zé Carioca, Emília,
etc.), tocando sobretudo num estado associado aos gibis dos anos
1970, e depois submetidos a um tratamento de distorção gráfica
ligeiramente psicadélico, líquido. Poder-se-á entender esta opção
como uma compreensão de um certo “grau zero” da banda desenhada
brasileira? O peso de um passado fantasmático de toda uma geração?
A necessidade de ainda “prestar homenagem” a um momento de maior
massificação e criação de uma imagem identitária do quadrinho
nacional? Talvez seja essa a “estranha selva” a que os editores
se referem e que a antologia pretende “desbravar”. Não deixa de
ser estranho para um projecto que pretende revisitar, celebrar e dar
a conhecer trabalho mais autoral. Estas considerações independentemente da qualidade e pertinência do trabalho de revisitação e remixagem gráficos de Luciano Drehmer. Esperemos que os próximos passos
demonstrem de forma definitiva como os quadrinhos contemporâneos em
nada devem, na verdade, a essa selva antiga.
Nota
final: agradecimentos aos editores, pela oferta do volume, e a P.F. pelo transporte; ainda, a Cecília Silveira, pelas discussões e informação.
É daqueles livros que se compram logo pela capa.
ResponderEliminarCaro anónimo,
ResponderEliminarEu próprio compro (hoje menos) livros "pela capa", parecendo-me uma estratégia tão válida quanto outra. Apenas dizia que o jogo de referências pode é levar a uma interpretação (não é a única, claro) de dependência desnecessária face ao poder das HQ contemporâneas do Brasil.
Pedro Moura
Por acaso não me parece que neste caso isso se arrisque: há ali (des)construção/glitch suficiente nas referências para as neutralizar enquanto limite e colocá-las a favor de um todo múltiplo, ou pelo menos sugerir a presença do seu além. De qualquer maneira estava só mesmo a exclamar dos olhos.
ResponderEliminarjp