26 de julho de 2016

O fabuloso quadrinho brasileiro de 2015 (Narval)

Esta antologia parece pretender tornar-se um gesto anual, uma paragem única e concentrada que reunirá material de várias fontes, criando uma imagem agregada mas variada da produção nacional, no Brasil, de banda desenhada. Não pretende esgotar o assunto, nem trilhar um caminho único, mas providenciar um público mais generalizado com instrumentos para poder aceder a alguma produção que, mesmo no Brasil, poderá eventualmente escapar à atenção mediática mais usual, presa que estará à exposição a objectos desde logo familiares. Tendo já neste espaço tecido ideias sobre a natureza das antologias, o seu gesto de “florilégio” e de “embaixada”, duas metáforas que funcionam na perfeição aqui, entremos de chofre no seu trabalho. (Mais) 

O grande modelo deste projecto é a antologia norte-americana The Best American Comics (BAC), da Houghton Mifflin Harcourt, que contava igualmente com um editor ou editores fixos para a série, que faziam uma primeira selecção, tendo depois a cada ano um editor especial, que tomava as decisões finais e “assinava” o gesto. Também se poderiam citar as duas edições de An Anthology of Graphic Fiction, Cartoons, & True Stories, editada por Ivan Brunetti para a Yale, ou o caso único da McSweeney's Quarterly Concern, No. 13: An Assorted Sampler of North AmericanComic Drawings, Strips, and Illustrated Stories, editada por Chris Ware, mas é a BAC que se manteve ao longo do tempo como o grande modelo. Daí que cada uma delas se poderão chamar “a antologia de Jeff Smith”, a de “Neil Gaiman”, a de “Alison Bechdel” e por aí fora. No caso presente, temos Rafael Coutinho e Clarice Reichstul como “organizadores”, sendo o “editor convidado” Érico Assis. O facto de não terem optado por nenhum tipo de nomenclatura imediata de juízo de valor (“os melhores quadrinhos”) é uma boa estratégia, que evita desde logo o próprio factor de inclusão como um desses juízos, responsabilizando e personalizando assim a escolha e estratégia de comunicação. Eventualmente, poder-se-á imaginar dizer que esta é a antologia “de Érico Assis”. Ainda assim, é por demais natural que a própria existência desta antologia seja vista em sim mesma como um gesto de natureza valorativa (“os melhores”) e política (“o que merece mais exposição”).

Como dissemos, o projecto prevê alguma continuidade, em que o título genérico se manterá, com a excepção do adjectivo que conduzirá o juízo do editor convidado. Aliás, Érico Assis usa o seu espaço de expressão precisamente para prever ou projectar outras possibilidades, como “Excelso”, “Maderfãquin” e “Laerte-Angeli-Glaucoesco” dos anos vindouros. É muito interessante que o primeiro adjectivo seja então “fabuloso”, que o autor explica pelo seu significado de elogioso e hiperbólico, mas jamais se referindo ao seu sentido primário, o de estar associado a uma “fábula”, isto é, a algo que se conta, relatável, transmissível, portanto. Não é esse o propósito de uma antologia anual, a de servir de uma espécie de embaixada para um determinado estado de produção? Por outro lado, ”fábula”, enquanto género particular da literatura, está também ligado a uma camada de lições morais, fantasia, e até personagens não-humanas. Portanto, poderíamos entender a antologia como uma ficção, mesmo que momentânea.

No caso norte-americano, estaríamos a falar de um território de produção muito mais alargado, com vários públicos e instrumentos, em relação ao qual as antologias BAC têm um propósito de filtro para um público mais adulto, avisado, politicamente envolvido, colocando de lado a dita produção mainstream. Esse princípio geral parece presidir em termos gerais O fabuloso quadrinho brasileiro, também, mas com uma matização bem distinta.

Tendo havido uma particular controvérsia em torno da representação deficitária de autoras brasileiras – e que estamos em crer possuíam qualidades suficientes para estarem presentes num gesto desta natureza -, mas não podendo de forma alguma poder afirmar conhecer a “cena” de maneira suficiente, remetemos a um artigo ou outro sobre essa questão. Não deixamos de apreciar, porém, o aparente paradoxo (ou daí, talvez não) de incluírem uma história como “A sub-representação feminina no imaginário dos autores” da autora que assina como LoveLove6, para depois haver precisamente uma sub-representação de toda uma geração.

De facto, apesar de tentarmos o melhor possível em acompanhar alguma produção brasileira, o nosso conhecimento é sempre pautado por limitações óbvias, quer dado o limitado acesso quer dada a escolha imediatamente ao tipo de material a que prestamos atenção. Apenas um conhecimento mais engajado e localizado da produção brasileira poderia ajudar-nos a compreender o alcance do trabalho editorial, mas conseguimos imaginar um exercício similar se houvesse algo em Portugal desta natureza, tendo já exercido esse papel em várias ocasiões (uma exposição, uma lista, uma conversa, uma aula, etc.). O que achar “mais representativo?”, qual o contexto de discussão da selecção? Que perspectiva se pretende criar à partida? Essas perguntas devem estar patentes no processo de trabalho para depois ter a certeza de se atravessarem os vários pólos de produção, géneros, estratégias autorais, formatos, canais de distribuição, etc. Recordemo-nos que antologias tais como Crumbsou Quadradinhos são bem distintas entre si, logo terão instrumentos diferentes a pautá-los. Em que medida é que se publicaria uma antologia que reunisse um trecho de Pizzaboy lado a lado com uma curta de Hetamoé? Ou melhor, em que contexto isso faria sentido e em que sentido se deveria evitar essa situação? Não há uma fórmula abstracta universal.

Acreditamos então que os editores terão elegido alguns critérios logo à partida para fazer a escolha, como por exemplo não incluírem qualquer tipo de adaptações literárias, mesmo que não neguemos nós que podem existir prestações nesse campo que avançam a linguagem de formas mais interessantes do que “trabalho original”. Ou terem posto de lado projectos mais comerciais e dados a princípios genéricos mais normalizados, em nome de criações autorais. Ou que haja mesmo algum trabalho de inclusão ditado por afinidade electivas, elos de colaboração, estratégias que terão menos a ver com um suposto olhar objectivo (impossível de atingir).

No cômputo final, é necessário estar-se ciente de que a responsabilidade de criar este tipo de embaixadas é sempre muito grande, e argumentar sobre essas mesmas escolhas ou arcar com as consequências dos sectores menos representados (como é o caso das autoras, ou outras áreas temáticas e/ou autorais que possamos desconhecer). Ainda assim, cumpre-nos dizer que respeitamos mais aqueles gestos em que há uma clara definição na “assinatura” das escolhas do que uma tentativa em se ser abrangente, com o risco de criar uma visão despersonalizada, disforme e incoerente apenas para agradar a gregos e troianos.

Ainda assim, não se pode dizer que Fabuloso Quadrinho seja um samba de uma nota só, uma vez que existem trabalhos das mais diversas naturezas em termos de género, humor, ambiente, estrutura e até de formato (ainda que se procure um denominador comum para se encaixarem nestas páginas). Existem excertos de obras maiores, como são os casos de Cumbe, Talco de Vidro, Dois Irmãos, de que chegámos a falar, mas também Pigmaleão de Diego Sanchez ou Maia de Denny Chang, entre outros. Existem trabalhos de tiras de humor (mesmo absurdo, surreal) como os casos de Bruno Maron, Ricardo Coimbra, Alexandre S. Lourenço, Laerte, Odyr, Alexandra Moraes, etc. Podemos encontrar exemplos de géneros infanto-juvenis (Klaus de Filipe Nunes, Starmind de Ryot e Daniel Bretas), aparentes retratos de um quotidiano melancólico, humor derisório e auto-destrutivo (Fag de com força, de Pablo Carranza), modos distorcidos de dar conta da sociedade contemporânea (Milhões agora vivendo jamais morrerão de Diego Gerlach, Cão cego, rei monstro de Pedro Franz ou Psicose de André Kitagawa) e relatos mais poéticos e experimentais (Dentes de elefante de Pedro Cobiaco). O espaço é, então, diversificado, e dificilmente se encontraria um denominador comum para caracterizar a produção brasileira de banda desenhada, sinal da saúde e sofisticação de um país, mas igualmente da visão e trabalho dos editores.

A distribuição dos trabalhos não é feita por núcleos, havendo alguns autores que têm trabalho em vários momentos do volume, nomeadamente Laerte, Alexandra Moraes e Odyr. Se se pode compreender essa opção como uma forma de não concentrar o humor diverso desses autores, por outro lado não deixa de exercer uma espécie de presença reforçada na antologia, como autores de importância maior, que merecem ser revisitados, e não apenas se confinarem no seu espaço próprio, como todos os outros.

Uma última palavra ficaria para a capa. Não deixa de ser curioso que a escolha tenha sido sobre a utilização de um número de personagens famosas da banda desenhada infanto-juvenil “clássica” brasileira (Bidu, Mônica, Magali, o Menino Maluquinho, Zé Carioca, Emília, etc.), tocando sobretudo num estado associado aos gibis dos anos 1970, e depois submetidos a um tratamento de distorção gráfica ligeiramente psicadélico, líquido. Poder-se-á entender esta opção como uma compreensão de um certo “grau zero” da banda desenhada brasileira? O peso de um passado fantasmático de toda uma geração? A necessidade de ainda “prestar homenagem” a um momento de maior massificação e criação de uma imagem identitária do quadrinho nacional? Talvez seja essa a “estranha selva” a que os editores se referem e que a antologia pretende “desbravar”. Não deixa de ser estranho para um projecto que pretende revisitar, celebrar e dar a conhecer trabalho mais autoral. Estas considerações independentemente da qualidade e pertinência do trabalho de revisitação e remixagem gráficos de Luciano Drehmer. Esperemos que os próximos passos demonstrem de forma definitiva como os quadrinhos contemporâneos em nada devem, na verdade, a essa selva antiga.

Nota final: agradecimentos aos editores, pela oferta do volume, e a P.F. pelo transporte; ainda, a Cecília Silveira, pelas discussões e informação.

3 comentários:

  1. É daqueles livros que se compram logo pela capa.

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  2. Caro anónimo,
    Eu próprio compro (hoje menos) livros "pela capa", parecendo-me uma estratégia tão válida quanto outra. Apenas dizia que o jogo de referências pode é levar a uma interpretação (não é a única, claro) de dependência desnecessária face ao poder das HQ contemporâneas do Brasil.
    Pedro Moura

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  3. Por acaso não me parece que neste caso isso se arrisque: há ali (des)construção/glitch suficiente nas referências para as neutralizar enquanto limite e colocá-las a favor de um todo múltiplo, ou pelo menos sugerir a presença do seu além. De qualquer maneira estava só mesmo a exclamar dos olhos.

    jp



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