14 de julho de 2016

Os Vampiros. Filipe Melo e Juan Cavia (Tinta da China)

Nota inicial: O texto seguinte é algo distinto da prática deste espaço. Não sendo a primeira vez que escrevemos um texto a meias, ou contamos com uma presença "de fora" do lerbd, a estrutura deste post é inédita aqui. O que se segue é uma crítica sob a forma de um diálogo entre nós e Gabriel Martins, que alimenta o seu próprio blog, Alternative Prison, e escreve regularmente para a deusmelivro.com. Apesar de ter sido um diálogo levado a cabo durante algum tempo ao vivo, não estávamos a encontrar forma de dar a lume a sua estrutura, pelo que se resolveu reconstruir as mesmas ideias esgrimidas numa forma textual, entre o discurso costumeiro deste espaço e uma abordagem mais espontânea. (Mais) 

Pedro Moura: Não é a melhor ideia começarmos uma leitura de um livro por simples comparações, mas tendo em vista a atenção desproporcionada que a série anterior teve, é natural que o façamos. Considero Os Vampiros um livro que mantém uma  natureza dual com o trabalho anterior da mesma equipa de Filipe Melo e Juan Cavia. Por um lado, este volume intenta um género bem diferente, um tom mais grave e um tratamento mais sério do seu tema e personagens, que não é de admirar. Mas por outro, não deixa ainda de demonstrar dever muito às estruturas cinematográficas. Se Pizzaboy era uma espécie de colagem de referências, com um intuito de humor e pastiche, temos aqui a articulação de uma intriga centralizada quase que pré-preparada e implantada num contexto realista e histórico. Em termos de estrutura narrativa, seja como for, é um projecto mais sólido.

Gabriel Martins: A bd enquanto ofício é ainda algo recente na vida do autor Filipe Melo. Ao olharmos para o seu corpo de trabalho compreendemos que o cinema sempre foi uma influência superior. Nesse sentido não surge como uma surpresa que a estrutura de Vampiros ainda deva muito à estrutura de um filme de acção/horror, indo beber aos géneros de predilecção deste autor. De qualquer das formas, importa notar a ambição desta dupla em avançar para um projecto de maior envergadura, seja pela seriedade do tema ou pela contextualização histórica. No final temos um livro mais maduro, o que se traduz numa evolução para a dupla Melo e Cavia.

PM: Sim, mas não deixa de haver precisamente uma estrutura que está demasiado presa, a meu ver, a algumas fórmulas consabidas. A ideia de um comando numa missão arriscada e que depois, paulatinamente, vai sofrendo. Temos em Portugal o exemplo do Mamassuma, de Vassalo Miranda (de 1977, e ao qual gostaria de regressar a propósito da contextualização na Guerra Colonial); a estrutura de "subida" do Apocalipse Now, etc. Além do mais, o cruzamento da ficção militar com o terror ou o fantástico foi também experimentado algumas vezes. Lembro-me de uma bd algo obscura e negligenciável intitulada The Lost Squad, de C. Kirby e A. Robinson, ou do magnífico filme R-Point, de Kong Su-Chang (2004), sobre um comando coreano no Vietname em busca de um outro esquadrão, etc. Isto não diminui de forma alguma as especificidades de Vampiros, mas contextualiza-o numa linha bastante mais alargada de referências irmanáveis, que não tenho visto sequer aventado noutras abordagens a este livro. Por outras palavras, é menos surpreendente a estrutura geral em si do que os pequenos tratamentos individuais das personagens.



Claro que, ao contrário de Pizzaboy, que é antes uma espécie de colagem de citações e pastiche, Vampiros não cai nos géneros patéticos de "horror exploitation". Há um claro desejo em criar uma atitude séria e elaborada sobre a guerra, por exemplo, ainda que pelo filtro do fantástico (daí a referência a R-Point). Dito isto, poderíamos desde já considerar as personagens elas mesmas, que são todas alvo de uma construção psicológica "problemática", como se fosse necessário para tornar a história mais empolgante serem todos meio-chanfrados.



GM: A estrutura da narrativa une, a meu ver, dois modelos. O primeiro é o do grupo de personagens que é mais numeroso no início da narrativa do que no final - vamos perdendo-os à medida que o enredo avança -, enquanto o outro é o do cerco, ou seja, quando temos os protagonistas confinados num determinado espaço a serem atacados. Estes modelos são tipicamente usados nos géneros que mencionas e têm sido especialmente populares no cinema. Aliás, quando falei em influências cinematográficas, estava a considerar algo mais generalista e não só a ficção militar. O Rio Bravo e o Assalto à 13º Esquadra são dois bons exemplos do filme de cerco, enquanto filmes como Predador ou Alien 2 seguem o primeiro modelo que descrevi. Nada disto tem, como bem disseste, de diminuir as especificidades desta história.



PM: Eu até diria que a escrita dos Vampiros, assim como a do Pizzaboy, segue o “método Tarantino”. O conhecimento enciclopédico e entusiasta de toda uma série de filmes de determinados géneros leva a que se criem ideias concretas de “cenas”, que também vivem da sua natureza de citações, mecânicas, estruturas narrativas, etc., e depois são ligadas entre si numa estrutura maior. É um método válido, como é óbvio, mas quando essa estrutura se torna clara, a organicidade do todo começa a sofrer. O facto de que estamos a insistir na esfera cinematográfica, mais do que na da banda desenhada, pode igualmente sublinhar a ausência de especificidades deste território.

GM: É verdade e, curiosamente, o Tarantino também tem fantasiado com a História nos seus mais recentes projectos, no caso do Inglorious Basterds até chega a criar um universo paralelo para os eventos da 2ª Guerra Mundial.



Porém, mais interessante que a estrutura elaborada, são de facto os tratamentos individuais dados às personagens e nota-se que existiu atenção à construção psicológica de cada uma. Em relação a essa construção uma das ideias que os autores parecem querer demonstrar é a de que existe um grau de loucura associado a cada personagem que é directamente proporcional ao tempo de serviço que têm na guerra. Por isso não diria que todas as personagens são, pelo menos a início, meio-chanfradas, como é o caso do médico, a personagem mais inocente na história que vai tendo dificuldades em suportar tudo aquilo a que assiste. No final podemos dizer que sim, acabam todos diferentes, mas esse é o grande tema do livro, o de que a pessoa que entra numa guerra, nunca é a mesma que a que sai.



PM: Certo, mas parece-me que essa dimensão é posta de chapa. É esse o tema afinal do livro. Nada de surpresas. O facto de ser a época festiva de Natal e final do ano, para depois erguer aí este “inferno privado” ou “apocalipse” apenas reforça essa mesma ideia. Há uma tentativa, até certo ponto curiosa e bem gerida, de ter vários representantes, digamos assim, de personagens-tipo dos portugueses, para depois explorar esses graus de exposição, sofrimento e trauma, mas não deixa de estar tudo subsumido a essa fórmula narrativa em que estamos a insistir. Além do mais, a ideia de que a redenção não é possível resulta em algo muito dramático, é verdade, mas não permite uma saída. Não espero de forma algum um elogio à guerra ou ao militarismo (e ainda bem), mas gostava de compreender que existiria um espectro mais complexo de envolvimento nessas acções. Enfim, Os Vampiros não deixa de apresentar uma natureza linear e plenamente integrada num programa narrativo, em que o excesso da expressão não está presente, ou foi excisado em nome de uma intriga, um propósito.

GM: De acordo, o tema central do livro é claro desde o início e a trama trabalha-o de forma linear. Mais do que mergulhar nos meandros psicológicos da guerra o que o livro faz melhor é criar situações de suspense, apoiadas em algum misticismo, o que vai de acordo com a criação do ambiente empolgante que mencionaste. No fundo Vampiros não deixa de ser um livro de aventuras, simplesmente um que tem como pano de fundo a guerra colonial. Para quem procura uma história mais multidimensional ou até realista sobre diferentes facetas da guerra não a vai encontrar, no entanto, os autores parecem-me triunfantes naquilo a que se propuseram fazer, esta não deixa de ser uma das melhores propostas que temos tido dentro do género de acção. Ainda que este não seja um livro com uma grande dimensão histórica da guerra colonial, aproveito para constatar o facto de que este fantasma do passado é um ainda pouco confrontado, no campo da bd: devem-se contar pelos dedos de uma mão os livros que abordem esta parte da nossa história. Se falássemos da guerra em geral, já não seria o caso, ainda no ano passado o David Soares criou uma narrativa muito densa sobre os efeitos deste “monstro” em O poema morre, mas estando a falar de histórias tão distintas, não faz sentido estar a compará-las. Mesmo assim, ainda que seja óbvia e até clássica (no sentido que é tão comum quando se aborda a guerra), não deixa de existir uma mensagem que tem a sua relevância e discordo que a redenção não seja apresentada como algo possível. Não é a última página uma imagem de redenção? Em relação às personagens, parecem-me adequadas para o tipo de narrativa criado aqui. São indivíduos bem distintos, focam diferentes características psicológicas e sentem-se como personagens portuguesas.



PM: Não estou seguro se essa última imagem é de redenção. Essa interpretação é perfeitamente possível, ao percebemos a identidade entre ambas as personagens, como se representassem dois lados opostos, de forma absoluta, dicotómica e maniqueísta - isso é sublinhado, ao mesmo tempo que os seus traços de comunidade possíveis, claro -, o gosto que os une, etc. Mas acima de tudo, a mim parece-me ser tão-somente uma fuga em frente na irresolução dos eventos, o que é perfeita e precisamente apropriado num livro de contornos de fantasia, horror, etc.  



Quanto à questão da Guerra Colonial, também não compreendo algumas ideias que vi veiculadas na sua recepção. Não é, de facto, um contexto suficientemente importante ou explorado na banda desenhada portuguesa para pensar nele como um “campo temático”. Logo, não há grandes termos de comparação. Com a excepção do trabalho de Vassalo Miranda, a solo ou em companhia, que trabalha sobre um fundo mais realista e politicamente mais comprometido com uma perspectiva problemática (não iria ao ponto de chamar “colonialista” tout court, mas pelo menos afecta a uma ideia de império nacional, unido na comunidade linguística, nacional, cultural, etc.), há apenas um punhado de histórias curtas ou menções de raspão em obras maiores na contemporaneidade. O caso mais recente foi o Cinzas da Revolta, de Miguel Peres e João Amaral, mas que tomba na mesma problemática de ser um “filme à americana” transposto de forma superficial para o contexto histórico. Vampiros, nesse aspecto, é mais ancorado e narrativamente mais coeso, coerente e concentrado. Seria mais interessante pensar num contexto mais alargado de bandas desenhadas portuguesas que são capazes de repensar a história e o nosso papel de leitores, espectadores e “participantes por delegação” desses episódios: As pombinhas do Senhor Leitão, de Miguel Rocha, Salazar, de João Paulo Cotrim e Rocha, As paredes têm ouvidos, de G. Fratini, entre uns quantos outros. Pergunto-me se Vampiros cumpre esse papel.



Esta não é necessariamente uma dimensão empobrecedora do livro. O que penso é que apresentá-lo como sendo um livro “sobre a Guerra Colonial” apenas aponta para a sua contextualização e elementos mecânicos de referencialidade. Se nos abstrairmos de questões superficiais de fardas, armas, equipamento e a mão-cheia de referências que vão sendo espalhadas ao longo do texto, para recordar de quando e de onde se está a falar, Vampiros poderia ser transposto para outro qualquer contexto com cosméticas simples (uma operação que, de resto, é costumeira num certo patamar de produção cinematográfica, em que as reescritas estão à mercê de decisões de produção, e menos de criação). Quero dizer com isto que gostaria de ter visto especificidades culturais mais profundas a operarem nesta história, sem ser as alcunhas (“Totobola” é particularmente divertido), as insígnias, o equipamento, etc. Mas lá está, o propósito de Vampiros é o de contar esta história, não o de repensar a nossa relação com a Guerra Colonial. Todavia, parece-me que a sua recepção insiste mais nessa dimensão sem a problematizar, contextualizar (mormente no mundo da banda desenhada, e já nem falo de pensar na sua coordenação com os romances, poesia, cinema, teatro, televisão em torno da matéria) ou sequer compreender. O “pacto de silêncio” que apenas agora se começa a quebrar, sobretudo os diálogos intergeracionais entre quem fez a guerra e os seus filhos (a minha geração), demora quase sempre umas décadas, e chegámos ao momento.



Dito isto, compreendo a necessidade de ficcionalizar a nossa história, tornando-a matéria passível de transformações subsumidas a géneros, a emoções fortes pelo “manto diáfano da fantasia”, e nesse aspecto Os Vampiros cumpre tal papel de modo preciso.



GM: Não estou de acordo que a última página seja uma fuga, é certo que uma reconciliação entre aquelas personagens não funcionará como uma reconciliação na guerra, mas é apresentada essa dinâmica. Claro que é sublinhado que as personagens representam os lados opostos, ao mesmo tempo que nos mostram que os soldados de cada lado não são assim tão diferentes uns dos outros. É precisamente por teres isso tão vincado que me parece muito propositado mostrar a possibilidade de encerrar esse ciclo de violência que é continuamente perpetuado.



Mas concordo que é uma história que poderia facilmente decorrer durante uma outra guerra qualquer, o tema é abrangente o suficiente e não apresenta uma contextualização que o prenda muito a este período, ainda que a escolha seja perfeitamente legítima e até lógica. Claro que, neste sentido, estamos a falar de um livro que se situa num campo oposto de um Salazar, em que Cotrim e Rocha desmistificaram o mito da personalidade do ditador, numa abordagem realista, e o Vampiros não é isso, entra noutra categoria. Em relação à forma como tem sido vendido, estás a referir-te à comunicação social?



PM: Sim, por isso falei de desproporcionalidade no início. A forma hiperbólica como os livros têm sido recebidos não se podem explicar somente pela “qualidade” dos livros, mas antes por uma gestão eficiente da projecção mediática, que é tão válida como outra estratégia qualquer. O que mais me surpreende é que haja um meio supostamente conhecedor da banda desenhada que leve as coisas a face value, e não as integre em contextos mais alargados para tentar compreender com efeito o que haveria de específico nessa obra, e depois afirmem que “a banda desenhada portuguesa nunca mais será a mesma”. Em que sentido é que isso ocorre? As formas de produção? Não me parece que tenha havido transformações. Em termos de abertura da parte de editoras literárias e/ou generalistas a mais projectos de banda desenhada? Penso que a ignorância nesse campo se manterá por mais tempo. Pela bitola da qualidade artística e literária das obras que vieram mostrar novos caminhos? Isso teriam que me explicar por miúdos... Ou será apenas porque é uma obra que satisfaz uma expécie de expectativa juvenil e preenche esses pontos todos?



Repare-se que se Pizzaboy tivesse saído de facto pela Dark Horse e não fosse por um autor português, provavelmente diluír-se-ia (pela parte de Portugal, digo) em toda uma série de outras produções mais ou menos análogas (monstros e nazis, afinal, há bastantes, começando em Hellboy, bitola máxima). É claro que a projecção internacional de um projecto português é sempre uma boa notícia em termos gerais, mas não vi nenhuma comparação, por exemplo, com autores que haviam conquistado espaços dessa natureza, como o Rui Lacas, o André Lima Araújo, o Filipe Abranches, o Pedro Brito e o João Fazenda, etc., por mérito próprio, convites directos, pelo esforço dos editores ou até graças a políticas de divulgação internacional da parte do estado, como os apoios da DGLB, que ajudou à publicação norte-americana. Ou seja, não posso deixar de compreender que parte do “sucesso” se deve à fasquia “média” e costumeira da banda desenhada de haver mais entusiasmo por projectos comerciais do mainstream do que por obras que são ligeiramente mais desenvoltas no que diz à linguagem da banda desenhada, ou a temas mais fracturantes, difíceis e maduros. Mas, repito, estou aqui a falar da recepção mediática, que é um factor importantíssimo para a projecção de um livro. Nesse campo, Filipe Melo é um profissional como poucos. Penso é que devemos usar os instrumentos críticos de forma equilibrada, e não suspendê-los só para sustentar o “gosto médio”.



GM: Se não estou errado a razão principal para termos esta conversa prende-se com o interesse que ambos partilhamos em falar deste livro por aquilo que realmente é, enquanto um produto artístico de BD, tentando afastar-nos deste manto de mediatismo que o persegue, seja positivo ou negativo. Dito isto, é algo que também merece ser discutido. Concordando com a tua primeira frase, vou começar por dizer que é igualmente válido o contrário, ou seja, é certo que a projecção que o Filipe Melo tem ajuda na promoção do livro, porém, seria suficiente para sustentar um livro que não tivesse qualidades? Neste caso acho que não, que a boa recepção ao livro também se deve a uma genuína apreciação por parte do público. Em relação ao Filipe Melo, de facto, considero-o um orador nato, ao assistirmos às suas apresentações é fácil perceber que é alguém que cativa, é um mérito seu, aliás se ele se tornou uma figura conhecida o mérito é inteiramente dele e não deve ser penalizado por isso. O problema maior na frase que citas é que sem qualquer justificação apenas demonstra uma enorme falta de conhecimento em torno da banda desenhada nacional, seja em termos de trabalhos ou editoriais, ou seja, o problema aqui nem está relacionado com as qualidades ou defeitos do Vampiros. Estamos a falar de uma suposta crítica especializada, que se não tem conhecimentos mínimos sobre os nossos autores então não deve tecer afirmações tão absolutas. Claro que estou a assumir que existe esse desconhecimento, aliás prefiro que se trate disso ao invés de um outro cenário possível que é o do desprezo consciente pelo trabalho de tantos autores como o João Paulo Cotrim, o Miguel Rocha, a Ana Cortesão, o Filipe Abranches ou o José Carlos Fernandes, entre tantos outros. Mesmo focando-nos em autores da actualidade, o Francisco Sousa Lobo é um autor que tem tido uma boa projecção internacional, com o seu Desenhador Defunto a ser considerado um dos melhores livros de 2013 pelo crítico Paul Gravett. Claro que estamos a falar de trabalhos mais densos e complexos, o que parecem tornar Sousa Lobo um autor mais esquecido pela crítica em geral. Concluindo esta parte, não me faz sentido tecer comparações exacerbadas ou injustificadas, quando a amostragem de livros nacionais à qual se devem estar a referenciar não é significativa ou então estão só a cingir-se a um determinado género (seria mais compreensível), mas nesse caso há que especificar, há que explicar tamanhas afirmações e não escrevê-las só porque causam um forte impacto sonoro. Ainda em relação à produção nacional não prevejo alterações significativas, pelo menos, relacionadas com um aumento de publicação de outros autores.



Quanto à projecção de autores publicados internacionalmente, acho que aqueles que têm vindo a desenvolver trabalhos para editoras norte-americanas têm tido bastante, já os outros não tanto. Só que no caso de um Filipe Andrade, André Lima Araújo ou Jorge Coelho, a projecção é muito direccionada ao público que lê bd, enquanto o Filipe Melo, graças ao seu currículo, consegue alcançar uma fatia maior de pessoas. É também verdade que livros mais desenvoltos podem não cativar tanto público, não é nenhuma novidade nem tão pouco algo específico da bd, só que em relação à comunicação social, pelo menos à componente crítica, esperaria mais.



Passando agora para a componente visual, trata-se de um livro que à semelhança do Dog Mendonça volta a optar por uma capa simples, neste caso até pode não ser tão minimalista, pois contém um desenho, mas não deixa de ser uma capa contida, misteriosa. O que me parece que funciona bastante bem, fica sempre uma aura de curiosidade quando o livro nos é apresentado pela primeira vez. No interior, a maior mudança está na cor, uma vez que o Juan Cavia mantém o mesmo estilo que lhe conhecemos dos seus trabalhos anteriores com o Filipe Melo, ou seja, aquele traço muito recto e bem carregado. Desta vez temos Juan Cavia e Sandro Pacucci em vez de Santiago Villa a colorir esta história, que nos trouxeram uma paleta de cores mais terrenas e menos brilhantes do que em Dog Mendonça, uma escolha que faz mais sentido aqui, tendo em conta o cenário de guerra. Em termos de planificação temos alguns momentos bem geridos, nomeadamente em torno da utilização dos “vampiros”, no entanto, é uma planificação cuja influência do cinema se volta a sentir, no sentido em que ao lermos este livro podíamos estar perante um storyboard de um futuro filme, existe até uma certa linearidade na sua composição, onde as ferramentas da linguagem da bd podiam ser melhor exploradas. Aliás, se mencionámos as influências cinematográficas do argumentista, a verdade é que Juan Cavia não lhe fica atrás, contando no seu currículo com o oscarizado O Segredo Dos Seus Olhos, filme no qual trabalhou no departamento de arte, entre outros. É muito plausível que estes dois autores tenham encontrado na bd um outro veículo para contar as suas histórias, um que certamente apresentará orçamentos mais simpáticos, infelizmente a mesma simpatia não se manterá é nas receitas.



PM: Em termos visuais, não fico particularmente surpreendido. A figuração de Cavia é algo angulosa, exagerada e melodramática para sustentar a parte de leão desta narrativa. Se o seu estilo caricaturizado e hiperbólico funciona melhor num propósito cómico como Pizzaboy, parece-me algo deslocado aqui. Por vezes, parecem devedoras do catálogo de expressões faciais da Pixar. O desenho, digamos assim, é “suficiente”, representando aquilo que é necessário mostrar na acção, mas por isso mesmo nunca alcança aquele excesso estético que esperamos em abordagens mais desenvoltas. Quanto às cores, entendo o que dizes, e até concordaria até certo ponto, compreendendo a natureza do projecto, mas na minha opinião a colorização vem “apagar” até alguma da clareza dos traços. Uma vez que tive oportunidade de ver a arte original no Festival de Beja, podemos igualmente constatar que a cor é menos empregue para salientar as qualidades do desenho, salientar objectos ou tornar algumas acções claras, mas apenas criar uma patina homogénea ao longo da história. E se a “escuridão” faz sentido nos momentos mais dramáticos, noutros é menos feliz. Basta comparar a luz das cenas diurnas e exteriores com aquelas iluminadas no interior (a luzes fluorescentes), ou entender que a escolha de fundos negros para as pranchas é contínua.

É como se em vez de se gerir uma modelação das emoções, tensões, inclusive visuais e compositivas (com a excepção de uma cena “cinematográfica” ou outra, sobretudo as partes não-naturais, a composição de página é muito elementar, evidente), se carregasse sempre num efeito, o que lhe retirará a eficácia óptima.

Mas enquanto "livro de aventuras", como disseste, essa optimização dos elementos é eficiente. 
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume; a Gabriel Martins, por ter aceite esta colaboração, e aos três As., pelas várias discussões. 

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