Ainda
há pouco havíamos emergido de uma obra de longo fôlego que
pretendia, de uma forma ou outra, devolver, pela e na banda
desenhada, a vida e obra de Fernando Pessoa, na sua mais complexa
estratificação, sem abdicar, no entanto dessa mesma complexa rede
de travessias. Enfrentar a vida de um homem já é tarefa árdua,
quanto mais a de tentar ainda responder, de alguma forma, com uma
(só) forma, com distância, a sua obra literária. Sobretudo se ela
própria é variegada e complexa. Há outros métodos, todavia,
aparentados com o corte de Alexandre do nó górdio. A vida oculta
de Fernando Pessoa é, de certo modo, o uso de uma célere e
certeira lâmina nessa matéria vasta. (Mais)
Este
livro subsume toda a vida e mesmo a obra literária de Pessoa a uma
aventura centralizada num género muito em voga. Descobrimos que
Pessoa não é mais do que um fumador e caçador de zombies, e
o qual tenta amenizar a mágoa de matar estas pessoas escrevendo, a
cada passo mimando uma voz que corresponderia, em personalidade e
nome, a essas mesmas vítimas de uma tarefa sem fim. Integrando numa
hipotética sociedade secreta, o livro quer dar a entender que
existirá um universo maior de referências fantásticas nas quais
Pessoa é somente o protagonista deste volume, mas sem que essa rede
se torne explícita, ou sequer segura.
No
fundo, este Fernando Pessoa acaba por se inscrever naquele
género a que Dog Mendonça & Pizzaboy pertencem, a da
mistura entre o género do horror, um tratamento de aventuras
adolescentes, jogos de citações que ganham uma dimensão anedótica
e humorística, e uma qualquer dinâmica rápida. Porém, onde a obra
de Filipe Melo tira partido de toda uma bateria de elementos
consabidos e leves, criando uma opereta juvenil consistente no seu
propósito de entretenimento e escapismo, Fernando Pessoa
parece querer revestir-se de uma intenção mais grave, soturna e
significativa para com a vida real do poeta e até mesmo a sua obra.
O problema é se consegue atingir esse fim.
Quase
todos os diálogos são tecidos utilizando citações dos escritos de
Pessoa, com o cuidado de “atribuir” a cada personagem separada,
como se os heterónimos correspondessem a pessoas reais, textos de
proveniências específicas. Se há momentos em que as personagens
parecem poder, num texto realista, tecer axiomas ou tiradas poéticas,
tornando assim a poesia num tipo de discurso em que a prosódia e o
ritmo escapariam a uma “representação diária”, a verdade é
que os autores optam por utilizar os escritos de Pessoa como campo
para colher toda e qualquer situação. Até mesmo quando uma
personagem implora de joelhos pela vida, como é o caso de Álvaro de
Campos, as palavras que lhe saem são as das composições poéticas.
Em
termos de construção emocional, há igualmente alguns
desequilíbrios. Fernando Pessoa, nem nenhum das outras personagens,
é particularmente simpática e merecedora da preocupação dos
leitores, e são bastos os momentos em que as relações entre as
personagens não são exploradas de maneira a que compreendamos as
atitude entre uns e outros, como a tal sociedade secreta e o próprio
Pessoa, ou a necessidade que ele tem de matar os homens infectados, a
razão pela qual acaba por simpatizar mais com um do que outro, e, a
cena final, toda a relação com Ofélia, que menos do que
“ambivalente” (uma virtude) é antes “vaga e incompleta” (um
problema de estrutura narrativa, a nosso ver). Há como que
episódios que ficaram por contar que poderiam ter providenciado a
argamassa a ligar os episódios desconjuntos que se sucedem.
Assim,
o divertimento da obra mantém-se, na sua permanente fuga para a
frente com a anedota de termos um Pessoa caçador de zombies, mas
rapidamente esse humor se dissipa na falta de uma estrutura mais
sólida e que sustentasse um universo de referências mais marcante.
Além disso, mesmo aceitando as regras do género popular, fica a
sensação de que não vem iluminar particularmente uma hipótese
diferente (e quão diferente!) de ler Pessoa.
O
desenho de Alexandre Leoni é de uma abordagem entre o legível
gráfico, o desenho de animação digital e a modelação 3D. Os
instrumentos de expressão são relativamente simples mas
suficientemente claros, e revelam, pelo menos, um bom sentido de
caracterização de personagens, na noção mais clássica de design
em territórios de gaming, por exemplo. Mas a composição de
página relativamente simplista, a gestão enfraquecida das acções
entre si, o que dificulta mais claras relações entre essas acções,
e a escolha de colorir tudo sob uma densa pátina escurecida que
ainda dificulta mais a visualidade geral (problemas muito semelhantes
aos que ocorrem em relação a Os Vampiros, na verdade, até
no uso de fundos negros e a fraca distinção entre cenas diurnas e
nocturnas), torna o conjunto menos feliz do que poderia ser.
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