Permitam-nos começar com uma impressão
totalmente superficial e que o mais certo é não ter grande
sustentação real. Estamos em crer que a recepção deste livro
poderá vir a ser dividida em quase dois pólos opostos e contrários.
Por um lado, a esmagadora maioria das pessoas que medeiam a recepção
e discussão da banda desenhada, de várias gerações, estará
demasiado familiarizada com muitas das peças capturadas nesta
antologia para serem por elas surpreendidas ou então julgarão de
imediato estar em falta algo (uma outra peça, um outro autor, uma
outra natureza de trabalhos, etc.). Se nos permitem, graças ao
desenvolvimento de trabalhos como o documentário VerBd, a
exposição Tinta nos Nervos e uma colaboração de uma mostra de trabalhos de Carlos Zíngaro, ganhámos um conhecimento de alguns
destes autores mais profundo do que a mera leitura da própria
revista Visão e outras publicações que aqui se juntam. Não
tendo sido aquela revista, publicada entre 1975 e 1976, algo que
lemos nessa mesma época (até pela idade, seria impossível), a
circulação do seu nome era já mítica quando nos tornámos
leitores mais intensos de banda desenhada, e era com facilidade que
se encontravam exemplares em segunda mão. Ou seja, a Visão,
em si mesma, era até certo ponto uma referência “viva” nas
discussões sobre história da banda desenhada portuguesa, ao
contrário de algumas outras revistas da mesma época, como a Jacaré
ou a Audácia, etc. (Mais)
Por outro lado, há toda uma geração
(ou várias) que, por uma razão de falta de exposição, de
curiosidade ou até mesmo de contínua distracção com as
“novidades” que “apagam” produções sólidas anteriores –
um jogo favorito parece ser o de se esquecer imediatamente qualquer
autor que não publique há menos de dois, três anos – pura e
simplesmente desconhecem na totalidade grande parte da produção de
banda desenhada nacional, se ela não estiver no interior de
determinados parâmetros que sigam (que são variados em si mesmos,
mas mais do que bitolas se tornam canais exclusivos). Aqui também
deixaríamos uma nota pessoal, uma vez que o nosso contacto com
aspirantes a ilustradores e banda desenhistas um pouco por todo o
lado, em contextos escolares, surpreende pela falta de contacto com a
memória nacional (et c'est pas sa faute).
Dessa maneira, o surgimento deste
volume, Revisão, vem possivelmente colmatar uma falha em
relação ao segundo grupo, e em relação ao primeiro vem trazer uma
assinatura de escolhas. Com efeito, apesar do sub-título
explicativo, “bandas desenhadas dos anos 70”, Revisão não
tem a veleidade de querer surgir como um compêndio de “tudo”,
uma vez que há material à partida logo posto de parte – material
infantil, aquele subsumido a géneros usuais e compartimentados,
obras de cariz pedagógico, material demasiado atreito à imediata
crítica política. Conforme a política editorial da Chili Com
Carne, e respeitando perfeitamente aquele ponto que bastas vezes
discutimos sob a ideia da “recuperação da memória”, de que as
editoras recuperam/re-publicam aquele material da tradição na qual
se querem inscrever (ou na verdade, criando a tradição na qual
depois se inscrevem) – fenómeno observável com particular força
nos anos 1990 em casas tais como L'Association, ego comme x,
Amok/Fréon, etc. – este volume assenta sobre a ideia de uma banda
desenhada de autor, individual, estilisticamente arrojada,
politicamente responsável, com verve, pêlo na venta, livre, capaz
de criar brechas nos métodos de fazer e pensar a banda desenhada, e
despreocupadas sobre a ideia da “consequência”, se isso for
entendido como deixar herdeiros bem-comportados e epígonos. Com
efeito, a revista Visão foi uma experiência fulgurante e
única, uma bateria que agregou de modo súbito e quase por acaso
todo um grupo de autores num espaço, não se podendo afirmar que
todos os autores continuariam a trabalhar na banda desenhada de modo
sustentado (alguns autores, como Nuno Amorim e Zepe, singrariam antes
pela animação, onde são reconhecidos profissionais auteurs).
E nada mais se poderia comparar a essa experiência colectiva em
quase vinte anos. Não será certamente a Flecha 2000 que
contribuiu para a consolidação de uma prática nacional desta
disciplina. O editor indica a Lx Comics, surgida em 1989, como
a única experiência comparável. Mas isso já nos lança a um novo
contexto histórico, económico e cultural do país.
Os textos de introdução e
contextualização de Marcos Farrajota, mesmo que sucintos, são
perfeitamente esclarecedores e completos em todos os aspectos, nas
três dimensões importantes: a contextualização de produção, a
descrição dos trabalhos, e as justificações do trabalho
editorial. No que diz respeito ao primeiro ponto, esclarecem-se os
ímpetos que levaram estes autores a convergirem num determinado
momento para a criação de bandas desenhadas totalmente livres de
preocupações de género, programas de leitura balizadas por
interesses de moralização e educação, mas não de forma alguma de
uma clara responsabilidade em tornar o mais visível esse próprio
acto de liberdade. Se até aos anos 1970-1980 existia um “mercado”
de banda desenhada, a Visão (mas também as outras
publicações que serviram de fonte à antologia, tal qual a Evaristo
e O Estripador) é um dos primeiros projectos que, sejamos
honestos, não estariam muito preocupados com uma perspectiva
comercial (quer dizer, talvez até pensassem que seria um sucesso
comercial, mas não o foi por várias razões; não esqueçamos que a
revista era um luxo na altura, pela qualidade do papel, da impressão,
da cor, cujo formato e qualidade desta edição melhora mas ao mesmo
tempo respeita). Bem vistas as coisas, afinal, não deixa de ser
surpreendente a diversidade de naturezas dos trabalhos reunidos
nestas páginas, que Farrajota bem identifica como pertencendo a dois
grandes grupos principais. Por um lado, as bandas desenhadas de claro
intuito de crítica social e política, em que se desmontam certos
princípios do capitalismo, do colonialismo (passado e então
presente), da guerra, mas também da forma tímida como a revolução
de Abril avançava, em que tantas das promessas acabariam por se
tornar em frases ocas e sem implementação real. Mesmo que haja
trabalhos com personagens e/ou contextos específicos (Spínola, a
CIA), muitas outras abordam antes instituições mais abstractas (o
trabalho assalariado, o Natal, a família). E se há trabalhos aqui
com humor derisório ou negro (Pedro Massano, J.L. Duarte, Carlos
Soares e Carlos Barradas), há outras que pretendem conter alguma
gravitas (Zepe, Nuno Amorim). É ainda nesse campo que encontramos
uma história curta sobre a guerra colonial por Pedro Massano que se
centra de uma forma tão brutal numa constatação de factos que
dificilmente se pode compreender agora a sua ousadia e carácter
inédito à época.
Por outro, surgem aquelas páginas que
merecem de um modo correctíssimo o apodo de “psicadélico”, quer
pelas formas de linhas flutuantes e coloridas que assumiam quer pelas
narrativas algo aquosas, vagas e oníricas, senão mesmo devedoras de
um imaginário influenciado por toda uma cultural beatnik-hippie
que se ia herdando desde o final dos anos 1960, mas lentamente.
Recordemo-nos de que antes do 25 de Abril, a abertura de Portugal ao
mundo era tímida (o Maio de 1968 chegou cá com seis anos de
atraso), e apenas uma elite cultural tinha acesso a outras paragens
do espírito, cultura e instrumentos de pensamento político, ora nas
frentes comunistas ora numa nata cultural. Depois de 1974, as portas
escancararam-se e a experimentação e até o “excesso” foi
bem-vindo (mesmo que tenha sido sol de pouca dura). Seria
interessante fazer as ligações e influências? Talvez, mas isso
diria pouco de um trânsito e não permitiria que se olhasse a obra
dos autores individuais como sendo fortíssimas. Poderíamos dizer
que, mais um passo de abstracção no desenho do título
(contemporâneo, por João Maio Pinto) e que estaríamos com uma capa
dos Grateful Dead na mão? Talvez, mas isso apagaria a possibilidade
de compreender a forma como Isabel Lobinho trabalha na mais aberta
das liberdades em beber de várias fontes (inclusive as históricas,
como as volutas floridas da Art Nouveau, as cores de Peter Max, e
acima de tudo a doidice iconoclasta e textualmente proteica de um
Mário Henrique-Leiria, que a artista tão bem “vestia”. E que
dizer das peças de Pedro Poitier, de Paralta e Zé Baganha, de Tito,
de Gracinda, algumas de Nuno Amorim e de Carlos Barradas, que
amalgamam onirismo, psicadelismo, ficção científica, fantasia, em
jogos visuais dramáticos e espectaculares? (e que nos leva a pensar
que La planète sauvage, de Laloux e Topor, poderá ter sido
decisivo). As comparações directas entre nomes portugueses e
estrangeiros é marca de provincianismo, é certo, mas vistamos a
carapuça ao pensar nesse nome maior da nossa literatura,
Henrique-Leiria, digno de um Fénéon ou Quenau, votado à nota de
rodapé nos nossos dias. Tal como muitos destes autores poderiam
estar lado a lado àqueles nomes que estavam a surgir na Charlie
Mensuel ou na Métal Hurlant.
As escolhas do editor procuraram então
aqueles nomes que seriam mais desconhecidos aos “novos” leitores,
pelo que se explica a ausência de um nome sonante da época, o
demiurgo-mor, Vitor Mesquita. Mas de facto o trabalho de Mesquita tem
sido alvo de revisitações e reedições, colocando-o numa atenção
desligada dos demais, o que justifica esta estratégia. Mais urgente
seria com efeito reunir a obra de Carlos Zíngaro, cuja obra viril,
plástica, material e tematicamente perturbante, o torna um autor
único, mas algo esquecido, ou a de Lobinho, artista maior e de uma
inventabilidade gráfica magnífica mas afastada por um meio fechado
e mais interessado em repetir as mesmas fórmulas, ou dar a conhecer
Zé Paulo, cuja bílis seria seguida por poucos e cuja rocambolesca,
cruel e jocosa “A família Slacqç”, tivesse existido em livro,
teria criado raízes mais perenes na memória da banda desenhada
portuguesa... E a junção da banda desenhada de rétournement
que o compositor e teórico musical Jorge Lima Barreto operou sobre
umas tiras de Tarzan para o seu livro sobre jazz, Grande
música negra, de 1975, é justa. Quatro páginas em que, avant
la lettre, Barreto faz um exercício oubapiano de substituição
dos textos para criar uma diatribe contra o racismo e o colonialismo
em África (e da própria banda desenhada, até certo ponto); se bem
que não se possa dizer tratar-se dos exercícios mais geniais alguma
vez construídos nesta disciplina, é algo que espelha muito bem o
seu tempo, tal qual alguns contornos das restantes bandas desenhadas,
que até nos podem parecer algo ingénuas, inconsequentes,
incompletas, mas conquistam esses gestos no seu conjunto.
Revisão não pretende
reinventar a história, nem reescrevê-la, mas pretende sim que se a
repense, num contexto em que há sempre tão pouco pensar.
«Revisão não pretende reinventar a história, nem reescrevê-la, mas pretende sim que se a repense, num contexto em que há sempre tão pouco pensar.»... know what? melhor coisa que alguma vez escreveste!
ResponderEliminar:)
abraços
M