Este livro não tem como seus autores
somente a investigadora e argumentista Barbosa e o artista Pinheiro.
Sendo um livro que coloca a vida e a obra da escritora Carolina Maria
de Jesus na superfície de um novo papel, conta em primeiro lugar com
a autoria dela mesma, mas também de todos os factores que foram
necessários para que a sua obra se formasse e ganhasse corpo
público, sobretudo com o seu primeiro livro, Quarto de despejo,
lançado em 1960 com projecção e sucesso nacional e, depois,
internacional. A um só tempo biografia, exploração das condições
de produção e auscultação da literatura de Carolina, o livro em
si é uma pesquisa, (re)descoberta e interrogação, assim como uma
possibilidade de colocar novas perguntas no tempo presente. (Mais)
Munido de vários elementos
paratextuais que contextualizam concreta e solidamente Carolina Maria
de Jesus, este livro introduzirá, para aqueles que, como nós,
desconheciam a autora. Mulher pobre nascida em Minas Gerais em 1914,
a mulher conhecida por Bitita mudar-se-ia para as favelas de São
Paulo no final dos anos 1940, quer por necessidade e condição
social quer pelas obrigações políticas a que na época a votaram,
não havendo apoios sociais condignos desse nome. É assim que a vida
a apanha na Favela do Canindé, aparentemente uma das mais
problemáticas e pobres desses bairros de lata brasileiros na altura.
Esmagada pela pobreza, e sem qualquer
laivo de romantismo que pudesse existir nessa condição – mito
alimentado quer no Brasil quer também em Portugal durante largos
anos -, Carolina alentava um sonho que era corroborado pela prática:
a da escrita. Mas esta não era uma fantasia da boca para fora, louca
e inconsequente. Catadora de papel e outros detritos que venderia ao
quilo para poder ir (mal) sobrevivendo, ela e os seus três filhos,
Carolina escrevia sempre que podia, em pedaços de papel mais ou
menos organizados, com o que apanhava, chegando a escrever milhares
de páginas, mais ou menos organizadas em núcleos que poderiam ser
descritos por géneros distintos: “diário”, “ensaio”,
“romance”, e por aí adiante. O seu conhecimento da leitura e da
escrita eram alimentados pela força das circunstâncias mais
esquálidas que se possam imaginar, mas encontravam com efeito
elementos suficientes para serem alimentados. Um romance jogado fora
aqui, um caderno ali, e sempre seria possível uma biblioteca,
conduzida por uma indómita e férrea vontade desse fito.
Por um acaso, o jornalista Audálio
Dantas, ao fazer uma peça de “jornalismo de investigação” em
torno da vida nas favelas, tentando corrigir a tal ideia romântica e
honrada que se fazia da pobreza (que na banda desenhada, ou noutras
esferas da cultura popular, ainda continuaria, até aos dias de hoje
mesmo, ao se retratar os favelados como gente apesar de tudo feliz,
solidária e capaz de enfrentar problemas, sem olhar os problemas
sistemáticos e de injustiça que sustentam essa mesma condição)
encontra Carolina. Lê os seus escritos e dá início aos mecanismos
que levariam a várias peças sobre ela, entrevistas e o lançamento
do livro Quarto de despejo. Seguir-se-ia um grande momento de
sucesso, ascensão social, exposição cultural e financeira,
encontros mesmo internacionais, e a publicação de outros volumes,
entre a ficção, a poesia, letras de canções, diários e outros
escritos, mas já com um impacto menor, e até mesmo um certo grau de
esquecimento ou apagamento (sobretudo, claro, durante a ditadura
militar).
É nesse sentido, então, que afirmámos
que os autores deste Carolina são mais, uma vez que se
compreender através da leitura deste livro que nem sempre a
emergência de um escritos se deve tão-somente ao “génio” e
“força anímica” (ou outras terríveis expressões quejandas) do
próprio autor. Há todo um rol de circunstâncias, algumas das quais
circunstanciais ao máximo, injustas até, por acaso, tropeções na
sorte, que poderão quebrar ou levar um autor a ganhar circulação.
E este livro, aquele escrito por Sirlene Barbosa e desenhado
por João Pinheiro, foca precisamente esses factores.
Afinal de contas, não se trata de uma
biografia completa, nem um ensaio sobre a literatura de Carolina. Mas
tampouco é uma pesquisa pela sua “psicologia”, que tem tanto de
falhado como de frustante. Carolina não é retratada como génio oculto, nem como santa. Não se trata de uma mulher com uma
capacidade maior de observação ou de justiça social. É
simplesmente uma voz, de uma classe subalterna (ou várias classes,
imbricadas entre si) que acabou por conquistar “um direito à
esfera pública”. Nem mais nem menos.
Escolhem os autores do Carolina,
portanto, um momento imediatamente anterior à sua “descoberta”,
de forma a criar a imagem da preta pobre favelada e sonhadora de
actos literários, o momento do seu encontro e lançamento, a
transformação a que isso leva no interior do Canindé (que não é,
de forma alguma, bem recebida pelas pessoas que a rodeiam, as quais
já antes eram desconfiadas da “intelectual”), e a leve e pequena
queda. O livro parece mesmo querer antes perde-se nos momentos de
observação quotidianos de Carolina.
Em muitos aspectos, este livro
recordará algumas leituras da gekigá de um Tatsumi ou do
Tsuge mais novo, em que a acção se passa naqueles espaços mais
dramáticos e menos apelativos da pobreza humana. Até mesmo pela
abordagem algo sumária, quase tosca, em algumas das páginas, em que
a figuração empresta expressões duras e violentas às personagens,
e os cenários são reduzidos aos esquálidos objectos que se fazem
passar por moradias. Não há qualquer sinal de redenção entre
estas pessoas que se maltratam mutuamente e não parecem ter qualquer
poder de fugir às suas condições de dejectos sociais. A própria
escritora não é apresentada como uma santa que quer regressar a
essa condição: ela vê mesmo esse mundo como o pasto horrendo do
qual quer escapar rapidamente. O seu sonho literário une não apenas
uma vaga ambição romântica pelo acto da criação literária como
também pelo que significa em termos de condições a oferecer aos
seus filhos, levando-os a entrar na desejada classe média.
A escrita de Carolina parece ter sido
rude, bruta, pouco burilada pelas regras académicas, mas robusta a
angulosa como uma pedra que se carrega nos bolsos todos os dias para
servir de instrumento de papel vário. Ferramenta de corte, de
alisamento, de cerzir, de furar, e quando necessário de arremesso
mesmo. Por isso, a própria estruturação das páginas do livro é
clássica, sem grandes dislates ou desvios de espectacularidade,
mantendo uma forma sólida onde decorrem as acções previstas.
Dividida em três partes, relativamente idênticas em termos de
largueza e atenção dadas às “fases” contíguas escolhidas, o
livro apresenta-nos uma leitura simples e directa destes
acontecimentos, não nos parecendo que pretenda trazer formas de
contestar, pelo menos explicitamente, a forma canónica como a
literatura se constrói, mas compreendem-se farpas ao longo do relato
que poderão contribuir para isso.
Afinal de contas, a “pátina” da
condição social de Carlona Maria de Jesus é, num primeiro momento,
o húmus que a lançam para um estrelato, como forma de surpresa,
levando-a a destronar Jorge Amado nos tops e a conhecer Clarice
Lispector. Mas é também essa mesma condição que a torna difícil
de ombrear, a longo prazo e de forma perene, os “grandes nomes das
letras”. Em que medida é ela merecedora de ganhar esse espaço
novamente? Em que medida deve ser recordada na mesma plataforma que
outros escritores? Não é que Carolina responda cabalmente a
isso, mas colocando a questão, tratando a sua vida e obra como
passível desta revisitação, tantas vezes subsumida à partida ao
cânone, já se tenta aproximar.
Nota final: agradecimentos à editora,
pelo envio do livro.
Olá, Pedro Moura. Achei incrível a sua resenha sobre nossa "Carolina". Você consegue esmiuçar muitos detalhes do livro que ninguém ainda havia apontado. Achei especialmente interessante sua citação dos mestres Tatsumi e Tsuge, pois este último, em especial, é um dos meus autores preferidos - lidos e relidos por mim nos últimos tempos. Fiquei contente por você ter notado essa influência. No mais, sempre leio o seu blog e aprecio em demasia.
ResponderEliminarAbraço grande!
João Pinheiro.
Caro João Pinheiro,
ResponderEliminarEu é que agradeço a atenção dada. Infelizmente, os meus textos têm sido até mais curtos nos últimos tempos, por várias razões, todas de trabalho. Todavia, penso que é talvez uma boa mudança dos intermináveis tratados anteriores, quem sabe?
Espero ver coisas vossas novas no futuro em breve!
Pedro