14 de setembro de 2016

Carolina. Sirlene Barbosa e João Pinheiro (Veneta)

Este livro não tem como seus autores somente a investigadora e argumentista Barbosa e o artista Pinheiro. Sendo um livro que coloca a vida e a obra da escritora Carolina Maria de Jesus na superfície de um novo papel, conta em primeiro lugar com a autoria dela mesma, mas também de todos os factores que foram necessários para que a sua obra se formasse e ganhasse corpo público, sobretudo com o seu primeiro livro, Quarto de despejo, lançado em 1960 com projecção e sucesso nacional e, depois, internacional. A um só tempo biografia, exploração das condições de produção e auscultação da literatura de Carolina, o livro em si é uma pesquisa, (re)descoberta e interrogação, assim como uma possibilidade de colocar novas perguntas no tempo presente. (Mais) 

Munido de vários elementos paratextuais que contextualizam concreta e solidamente Carolina Maria de Jesus, este livro introduzirá, para aqueles que, como nós, desconheciam a autora. Mulher pobre nascida em Minas Gerais em 1914, a mulher conhecida por Bitita mudar-se-ia para as favelas de São Paulo no final dos anos 1940, quer por necessidade e condição social quer pelas obrigações políticas a que na época a votaram, não havendo apoios sociais condignos desse nome. É assim que a vida a apanha na Favela do Canindé, aparentemente uma das mais problemáticas e pobres desses bairros de lata brasileiros na altura.

Esmagada pela pobreza, e sem qualquer laivo de romantismo que pudesse existir nessa condição – mito alimentado quer no Brasil quer também em Portugal durante largos anos -, Carolina alentava um sonho que era corroborado pela prática: a da escrita. Mas esta não era uma fantasia da boca para fora, louca e inconsequente. Catadora de papel e outros detritos que venderia ao quilo para poder ir (mal) sobrevivendo, ela e os seus três filhos, Carolina escrevia sempre que podia, em pedaços de papel mais ou menos organizados, com o que apanhava, chegando a escrever milhares de páginas, mais ou menos organizadas em núcleos que poderiam ser descritos por géneros distintos: “diário”, “ensaio”, “romance”, e por aí adiante. O seu conhecimento da leitura e da escrita eram alimentados pela força das circunstâncias mais esquálidas que se possam imaginar, mas encontravam com efeito elementos suficientes para serem alimentados. Um romance jogado fora aqui, um caderno ali, e sempre seria possível uma biblioteca, conduzida por uma indómita e férrea vontade desse fito.

Por um acaso, o jornalista Audálio Dantas, ao fazer uma peça de “jornalismo de investigação” em torno da vida nas favelas, tentando corrigir a tal ideia romântica e honrada que se fazia da pobreza (que na banda desenhada, ou noutras esferas da cultura popular, ainda continuaria, até aos dias de hoje mesmo, ao se retratar os favelados como gente apesar de tudo feliz, solidária e capaz de enfrentar problemas, sem olhar os problemas sistemáticos e de injustiça que sustentam essa mesma condição) encontra Carolina. Lê os seus escritos e dá início aos mecanismos que levariam a várias peças sobre ela, entrevistas e o lançamento do livro Quarto de despejo. Seguir-se-ia um grande momento de sucesso, ascensão social, exposição cultural e financeira, encontros mesmo internacionais, e a publicação de outros volumes, entre a ficção, a poesia, letras de canções, diários e outros escritos, mas já com um impacto menor, e até mesmo um certo grau de esquecimento ou apagamento (sobretudo, claro, durante a ditadura militar).

É nesse sentido, então, que afirmámos que os autores deste Carolina são mais, uma vez que se compreender através da leitura deste livro que nem sempre a emergência de um escritos se deve tão-somente ao “génio” e “força anímica” (ou outras terríveis expressões quejandas) do próprio autor. Há todo um rol de circunstâncias, algumas das quais circunstanciais ao máximo, injustas até, por acaso, tropeções na sorte, que poderão quebrar ou levar um autor a ganhar circulação. E este livro, aquele escrito por Sirlene Barbosa e desenhado por João Pinheiro, foca precisamente esses factores.

Afinal de contas, não se trata de uma biografia completa, nem um ensaio sobre a literatura de Carolina. Mas tampouco é uma pesquisa pela sua “psicologia”, que tem tanto de falhado como de frustante. Carolina não é retratada como génio oculto, nem como santa. Não se trata de uma mulher com uma capacidade maior de observação ou de justiça social. É simplesmente uma voz, de uma classe subalterna (ou várias classes, imbricadas entre si) que acabou por conquistar “um direito à esfera pública”. Nem mais nem menos.

Escolhem os autores do Carolina, portanto, um momento imediatamente anterior à sua “descoberta”, de forma a criar a imagem da preta pobre favelada e sonhadora de actos literários, o momento do seu encontro e lançamento, a transformação a que isso leva no interior do Canindé (que não é, de forma alguma, bem recebida pelas pessoas que a rodeiam, as quais já antes eram desconfiadas da “intelectual”), e a leve e pequena queda. O livro parece mesmo querer antes perde-se nos momentos de observação quotidianos de Carolina.

Em muitos aspectos, este livro recordará algumas leituras da gekigá de um Tatsumi ou do Tsuge mais novo, em que a acção se passa naqueles espaços mais dramáticos e menos apelativos da pobreza humana. Até mesmo pela abordagem algo sumária, quase tosca, em algumas das páginas, em que a figuração empresta expressões duras e violentas às personagens, e os cenários são reduzidos aos esquálidos objectos que se fazem passar por moradias. Não há qualquer sinal de redenção entre estas pessoas que se maltratam mutuamente e não parecem ter qualquer poder de fugir às suas condições de dejectos sociais. A própria escritora não é apresentada como uma santa que quer regressar a essa condição: ela vê mesmo esse mundo como o pasto horrendo do qual quer escapar rapidamente. O seu sonho literário une não apenas uma vaga ambição romântica pelo acto da criação literária como também pelo que significa em termos de condições a oferecer aos seus filhos, levando-os a entrar na desejada classe média.

A escrita de Carolina parece ter sido rude, bruta, pouco burilada pelas regras académicas, mas robusta a angulosa como uma pedra que se carrega nos bolsos todos os dias para servir de instrumento de papel vário. Ferramenta de corte, de alisamento, de cerzir, de furar, e quando necessário de arremesso mesmo. Por isso, a própria estruturação das páginas do livro é clássica, sem grandes dislates ou desvios de espectacularidade, mantendo uma forma sólida onde decorrem as acções previstas. Dividida em três partes, relativamente idênticas em termos de largueza e atenção dadas às “fases” contíguas escolhidas, o livro apresenta-nos uma leitura simples e directa destes acontecimentos, não nos parecendo que pretenda trazer formas de contestar, pelo menos explicitamente, a forma canónica como a literatura se constrói, mas compreendem-se farpas ao longo do relato que poderão contribuir para isso.

Afinal de contas, a “pátina” da condição social de Carlona Maria de Jesus é, num primeiro momento, o húmus que a lançam para um estrelato, como forma de surpresa, levando-a a destronar Jorge Amado nos tops e a conhecer Clarice Lispector. Mas é também essa mesma condição que a torna difícil de ombrear, a longo prazo e de forma perene, os “grandes nomes das letras”. Em que medida é ela merecedora de ganhar esse espaço novamente? Em que medida deve ser recordada na mesma plataforma que outros escritores? Não é que Carolina responda cabalmente a isso, mas colocando a questão, tratando a sua vida e obra como passível desta revisitação, tantas vezes subsumida à partida ao cânone, já se tenta aproximar.

Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.  

2 comentários:

  1. Olá, Pedro Moura. Achei incrível a sua resenha sobre nossa "Carolina". Você consegue esmiuçar muitos detalhes do livro que ninguém ainda havia apontado. Achei especialmente interessante sua citação dos mestres Tatsumi e Tsuge, pois este último, em especial, é um dos meus autores preferidos - lidos e relidos por mim nos últimos tempos. Fiquei contente por você ter notado essa influência. No mais, sempre leio o seu blog e aprecio em demasia.

    Abraço grande!

    João Pinheiro.

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  2. Caro João Pinheiro,
    Eu é que agradeço a atenção dada. Infelizmente, os meus textos têm sido até mais curtos nos últimos tempos, por várias razões, todas de trabalho. Todavia, penso que é talvez uma boa mudança dos intermináveis tratados anteriores, quem sabe?
    Espero ver coisas vossas novas no futuro em breve!
    Pedro

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