15 de outubro de 2016

Bad Little Children's Books. Arthur C. Gackley (Abrams)

A existência, esforço de escolha e condução da leitura de livros infantis pautar-se-á por toda uma série de premissas, sendo as principais aquelas que advém da posição dos progenitores face ao mundo e que pretendem transmitir à sua prole, se os educarem. Os valores e conhecimentos passam-se sobretudo através do exemplo e do diálogo, pela presença, mas os livros talvez continuem a ser um dos melhores instrumentos de delegação desses valores que existem. Muitas vezes também poderão servir de contra-exemplo, e necessitam por isso de um maior esforço dos pais em criarem um espaço que discuta esses mesmos textos. Julgar portanto qualquer “livro infantil ilustrado” desprovido da transmissão de valores imbuídos de características ideológicas e políticas é não apenas ingénuo como perigoso, como já o havíamos discutido em ocasiões anteriores. Dito isto, é por vezes um esforço aborrecido da parte dos pais tentarem criar uma visão do mundo através de metáforas suavizantes ou, pior, delicodoces, ou de simplificações de enquadramentos que sabemos serem mais matizados, subtis e complexos. (Mais)

Ora, é como antídoto dessas sensações de fastio que surgem projectos como este. Pequenas pílulas breves de piadas breijeiras, brutas, violentas que são um bálsamo à candura que tentas vezes se tem de mimetizar junto aos mais pequenos. Nem sempre se poderá mesmo falar de bons trocadilhos, por vezes é mesmo bruto. Fantasias que nos ocorrem ao ler a história dos três porquinhos e salivamos junto com o lobo, ou ao pensar na canção da Capuchinho Vermelho e nos fazem salivar com o lobo, ou ao ver o filme das princesas e nos fazem salivar com o lobo. “Salivar com o lobo” poderia muito bem ser um título ou descritor para descrever estes objectos. Bad Little Children’s Books é um livro supostamente constituído por capas alternativas de vários livros infantis criadas por Arthur C. Gackley, que teria vivido na década de 1960 e 1970 fechado numa cave a burilar pacientemente estes desvios. Munido de instrumentos como tesoura e cola (ou mais provavelmente, o Photoshop), reconhecem-se as matérias-primas originais que foram por ele conspurcadas para criar promessas de histórias em que todas as personagens de crianças delicadas, animais respeitosos e projectos didácticos eram raptadas para territórios mais… perigosos. Grande parte do humor destas imagens parte do lado negro da correcção, naturalmente, do choque, do limite do decoro transposto, do prazer malévolo em destruir um brinquedo. Se dar um pontapé num castelo de areia ou esmagar uma torre de legos ou esborrachar um boneco de chantili num bolo é uma atitude infantil, não deixa de ser o prazer que com isso se sente da mesma natureza dos sorrisos que cada uma destas capas libertará.

Aparentado como livro de Adam Mansbach, Go the F**k to sleep, traduzido entre nós como Vai dormir, f*da-se, de que falámos a propósito do La famille de Vivès [e também com o Gémeas marotas, ver secção de comentários], Bad Little Children’s Books é uma espécie de détournement dos textos originais mas que pouca intenção tem em que se ponderem os problemas inerentes deles para chegar a um sentido mais iluminado. Não quer isto dizer que não se possam “descobrir” significados ocultos que estavam desde logo previstos nos textos originais, sobretudo aqueles que escondiam uma certa ambivalência racial, a violência social, as discrepâncias entre os sexos, etc., que se verificariam nas sociedades que deram origem a esses livros, mas isso quase que ocorre por acaso. É uma mais-valia de um gesto que apenas quer atirar lama, senão coisa pior, á cara dos leitores.

Todavia, é mesmo essa libertação da canga social, uma espécie de regresso (regressão) enfática a uma expressividade bruta, que encerra o divertimento que ele tem.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

3 comentários:

  1. não te esqueças das Gémeas marotas, publicadas em Portugal sabe-se lá por quem...
    :)

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  2. http://chilicomcarne.blogspot.pt/2015/12/as-gemeas-marotas.html

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  3. Na verdade, lembrei-me imediatamente desse livro, mas como estupidamente o não comprei na altura, não tenho a certeza se o conseguirei caçar novamente (presumo que sim). Mas é verdade que pertence à mesma família... uma badalhoquice!

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