18 de dezembro de 2016

Apocalipse Nau. Eloar Guazzelli (Editora Nós)

Este volume de Guazzelli é marcado pela sombra das asas da morte. Na verdade, são três mortes que aqui se agregam como fantasma, sendo uma delas colectiva e outra “familiar”. Cada uma dessas mortes relaciona-se com o autor de forma autobiográfica, em vários graus de inscrição social, círculos concêntricos e complexos de identidade que muito dificilmente se destrinçam entre si e também difíceis são de tornar hierárquicos. Sem a ordem pela qual são apresentados, a primeira morte é a dos artistas e companheiros da redacção do Charlie Hebdo, que serve de espoletador ao gesto do autor brasileiro para esta mesma obra. É esse o tema central, temático, que faz arrolar várias dimensões políticas contemporâneas que se encontram antes e depois do ataque, e nas áreas contíguas, como as de liberdade de expressão e pensamento, de circulação de informação, de canais de divulgação e discussão dos temas ditos públicos, etc. Outra das mortes é de Marco Archer, o cidadão brasileiro que foi condenado à morte na Indonésia também em Janeiro de 2015 por tráfico de droga. E a última a do pai de Guazzelli, que morrera anos antes, mas cujo impacto chegaria mais tarde, com a da mãe. Temos portanto uma morte de cartoonistas, de um brasileiro, e de um pai, remetendo, já na esfera da pessoa de Guazzelli, da sua condição de artista de quadrinhos, brasileiro, filho e homem. (Mais)

Apesar de não ser tema explícito, a desculpa de passar férias em Florianópolis, fora de São Paulo, e das tarefas domésticas e profissionais, lança o autor numa interrogação de si mesmo que vai mergulhando fora e dentro daqueles papéis sociais e identitários, em que cada nova pergunta vai lançando dendrites cada vez mais alongadas e agudas. Num registo de diário, rápido, presencial, de flânerie e observação dos dias, essa temporada “na praia” torna-se desculpa para jogar no papel impressões visuais momentâneas mas igualmente prender alguns dos pensamentos e associações que essas mortes desencadeiam.

O livro avança por “núcleos”. Algumas sequências, de uma página somente, ou duas, ou uma mão-cheia, apresenta-se com um título individual, um tema, um foco, e até mesmo uma dedicatória, permitindo que a sua leitura seja rápida e concentrada, sem que se integre no restante projecto. Mas a verdade é que há um fluir de preocupações e assinaturas que obriga a uma leitura completa do volume e a uma sua compreensão como um todo. Alguns dos títulos até criam uma espécie de respiração, em que os ciclos temáticos se vão retroalimentando entre si: “de onde vêm as ideias?”, “o tadã dos mortos”, “a paz na minha sombra”, etc. Outros trechos, como a carta aberta a Julian Assange, que nada nos faz crer de se tratar de uma correspondência falsa, mas antes verdadeira, mesmo que não na forma que nos é apresentada, tornam-se baterias concentradoras de muitas das questões esgrimadas ao longo de todo o volume.

O livro é, portanto, a um só tempo, fragmentário, flutuante e coerente. Não há propriamente uma voz narradora que una de forma explícita, explicadinha, melhor dizendo, o propósito e processo de escrita, mas pertencendo à mesma consciência criativa e responsiva face aos acontecimentos citados, essa coerência emerge de forma natural, holística. Este não é de forma alguma um “livro aos quadrinhos” com uma bela história, passível de ser categorizada nas prateleiras e pronta a ser consumida no conforto dessas expectativas, mas um ensaio onde o diálogo exigente feito com o leitor fá-lo-á atravessar questões difíceis, nem sempre pacíficas, o que apenas abona a favor da inteligência de ambos, obra e leitor.

Guazzelli pretende que aproveita estes momentos de lazer veraneante mas igualmente de confronto com uma nova realidade mundial e política que se lança à aprendizagem de uma nova forma de trabalho, que diz respeito a tecnologias obsoletas, ou aparentemente obsoletas. No caso, trata-se escrever cartas à mão. Ao mesmo tempo dá aos filhos acesso a magia antiga de escrever em máquinas de escrever. E essas duas linhas de tecnologias antigas remete igualmente para o registo visual deste livro, que é célere, nascida mais do apontamento e do rabisco, do que sequer do esboço preparatório. Mas a dimensão de suspensão do talento do desenho cuidado e esculpido, a abertura à mais imediata e acelerada apreensão do pensamento, a aliança da observação no momento exacto e presente à captura das ideias, o esquisso local ao apanhar da resposta às reflexões que vão passando tal qual as nuvens no céu ou as marés nas praias são igualmente resultado desses encontros, ou então até condições dessa disponibilidade mental. Em termos de processo de trabalho, então, e mesclado nas condições biográficas, podemos apelidar este livro de “diário gráfico de férias”.

Essas características materiais são reproduzidas a jusante e para o leitor, na medida em que o livro tem o formato de um caderno Moleskine, e com as pranchas avermelhadas-ocre, o que poder querer atingir certos simbolismos associados aos seus temas, ou é tão-somente uma marca dessa materialidade original. Ele foi debuxado e estruturado quando da estadia do autor em Florianópolis, mas pela sua vertente de pensamentos sobre as situações políticas, ganha igualmente o contorno de “ensaio”.

O título, que é idêntico ao de um romance de Rui Zink, mas nada partilha com esse romance contemporâneo a trama narrativa, remete à ideia, espalhada noutros autores, de que jamais devemos esperar um cataclismo final, derradeiro e absoluto, mas antes estarmos atentos à derrocada diária, contínua, sempiterna, de todo o mundo a toda a hora. Não deixa de ser irónico, ou perspicaz talvez, que seja no momento de “férias” que essa observação se torna mais imediata. Mas é na junção de todas aquelas mortes indicadas que se criaram, pelo menos para o Guazzelli deste livro, as condições de observação para isso.

Apesar da associação ao episódio do Charlie Hebdo, o que aliaria Apocalipse Nau a muitas outras obras irmanáveis, compreende-se porém que aquilo que se torna o coração emotivo do livro é a relação com o pai, transformando o volume numa espécie de despedida condigna e artística do autor. Em alguns aspectos, este é um daqueles livros que, como os de tantos outros autores, se tornam diálogos com os progenitores, em que é na passagem inevitável do tempo, a instalação de uma distância ou intransponível barragem (a morte) que surge a violenta compreensão da dívida intelectual, cultural e emocional para com o pai ou a mãe. Spiegelman, Bechdel, Tyler, Altarriba, Caeto, são apenas alguns dos comparsas de Guazzelli nessa aprendizagem, quiçá tardia.

 É possível que este seja um daqueles livros que a esmagadora maioria do público, mesmo leitores dos trabalhos de Guazzelli, ficção ou adaptações, coloque de lado como “exercício de descontracção”, ou “momentâneo desvio” de trabalhos mais, bem, trabalhados, numa perspectiva conservadora dos caminhos da banda desenhada. É possível, mas haverá uma perda de ritmos de pensamento e expressão a que esta arte se presta, e à exigência, e até responsabilidade, do diálogo que o autor nos pede. De forma a, pelo menos durante a leitura do livro, como deseja Kant quando este diz que a única comunidade possível entre os homens é a comunidade estética, adiar os apocalipses.

Nota final: agradecimentos a Pedro Franz e ao autor, pela obtenção do livro em formato pdf. 

5 comentários:

  1. Caro Pedro Moura, o título «não é idêntico». É meu. Se este senhor chegou a ele por plágio voluntário ou involuntário, ou porque as ideias ou julgando genuinamente que tinha tido uma grande ideia, é outra questão. Acredito que não tenha sido malícia. Mas o achado achei-o há mais de vinte anos. E não é o nome de uma terra ou de uma coisa, é uma criação. Seja como for, é embaraçoso e feio.

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  2. Caro Rui Zink,
    Mesmo antes de ler o livro, a primeira coisa que me veio à cabeça foi isso, com efeito. Não posso acreditar que seja um "plágio directo" com "dolo", mas existem mecanismos para evitar estas coincidências, e concordo que um título é desde logo um acto criativo que deve ser respeitado. Espero que existam formas de resolver isto da melhor forma.
    Pedro Moura

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  3. Caro Pedro Moura, cheguei à fala com o autor, indirectamente, ou seja, fiz um post no FB e amigos dele informaram-no, e ele pediu desculpas e disse que, a haver futuras alterações, iria alterar. A editora não teve a mesma cortesia ou, pelo menos, celeridade, o que vai a dar na mesma coisa. O que me chateia é o dizer-se «têm o mesmo título». Não têm - um tem o título do outro. Senão címos no cada vez mais habitual nivelamento em que é tudo relativo. Não é, há uma ordem temporal, neste momento com 20 anos de separação. E suponho que o autor terá pensado feito um achado originalérrimo. Mais um motivo para se perceber o meu choque. Hoje há um instrumento chamado google...

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  4. Na verdade, não fazendo nenhuma análise disso, o romance do Rui Zink não apenas tem esse achado como o trabalha por dentro, isto é, bate a bota com a perdigota do mote e glosa. Por mais interpelante que o livro do Guazzelli seja, o título "tomado" (vamos dizer assim) não estabelece uma relação tão forte em termos temáticos.
    Bom, espero que pelo menos entre os autores as coisas fiquem correctas.
    Obrigado,
    pedro

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  5. Há que se considerar, como catalisador do "plágio" sem dolo, o fato de que "Apocalipse Nau" nada mais é do que a grafia da pronuncia do clássico "Apocalypse Now", de Coppolla. Sob a mesma influência cultural, os dois autores, Zink e Guazzelli, acabariam chegando ao mesmo lugar.
    Isso sem considerar que Rui Zink não é um autor muito lido no Brasil.
    Evidentemente, não se tratam de justificativas, mas de ponderações.

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