O problema muitas vezes do sucesso e do apoio vocal e numeroso
de certos autores é que abre oportunidades de publicação de trabalho que
mereceria um outro tipo de filtro ou esforço. Gaiman atingiu um tal nível de estrelato
que até surge como personagem de “autor com conselhos para novos escritores” em
séries de animação (The Simpsons, Arthur) e já há muito tempo que qualquer recado ou notinha acaba
por ser antologiada, coligida ou adaptada a outro meio. O problema não está,
naturalmente, no facto de ser publicado. Isso é até positivo. O problema está
em que tem mais um efeito cumulativo do que de relatividade da qualidade de
escrita. (Mais)
Gaiman tem qualidades insuperáveis, sobretudo no que diz
respeito à banda desenhada, inclusive a mais mainstream, se bem que nos trabalhos mais antigos, Signal to Noise e Violente Cases, ambos com Dave McKean, as explorasse de uma forma
mais sustentada por toda a restante matéria. A expressividade localizada e pessoal
de cada personagem, a atenção multissensorial para com os mundos narrativos que
usa, e a qualidade poética das suas vozes narradoras em criar uma dimensão
extraordinária, “estranha familiar”, à mais banal das realidades é, com efeito,
uma assinatura particularmente notável. O conto que deu origem a esta adaptação
tem precisamente esses traços. Começando no que parece a mais trivial das
existências, e com laivos suficientemente nostálgicos para aumentar a benesse
com que o leitor se introduz nessa história passada no início da década de
1970, com todas as cores ansiosas da adolescência, espraia-se uma armadilha
para um mundo bem mais vasto, colossal e cósmico mesmo, de uma intensidade
quase insuportável.
“How to Talk to Girls At Parties” é um conto em que dois
jovens procuram uma festa de adolescentes, e onde esperam vir a encontrar-se
com raparigas, as criaturas mais estranhas que conhecem e pelas quais se sentem
atraídos, se bem que com dúvidas e incertezas. Sobretudo o protagonista, Enn,
que como quase sempre as personagens principais de Gaiman, não tem a autoconfiança
dos heróis mas acaba empurrado pela força das circunstâncias que o rodeiam,
como o vento ou a chuva. E para que isso fique ainda mais claro, ele é
acompanhado por Vic, mais próximo do macho alfa e com uma lábia para meter
conversa. O foco da história é, portanto, a aprendizagem lenta e dolorosa de
Enn em como iniciar conversas e, quem sabe, mais do que isso, com miúdas. Nesse
aspecto, a trivialidade e normalidade do desejo é perfeita e espelha as
experiências de milhares de adolescentes nos mesmos campos. O desconforto,
titubeações, diferenças de maturidade aparente entre os sexos, e os passos
falsos ou mesmo patetas da parte do rapaz apenas reforçam essa mesma noção.
Porém, se a um determinado momento inicial a conversa estranha
das três jovens mulheres que Enn vai conhecendo sucessivamente na festa parecem
ser apenas um sinal da tal distância entre as raparigas que crescem mais rápido
e os rapazes que ficam para trás, aos poucos os discursos tecidos por elas
ganham um contorno mais misterioso, estranho, algo afastado da expectativa
humana, até se revelar algo bem mais sinistro. Essa natureza, como veremos, é
expressa visualmente nesta adaptação, o que no conto não acontecia, existindo
tão-somente nos interstícios que serão criados pelos leitores.
Mas há uma limitação natural nos contos, sobretudos estes
tão-curtos. Não havendo espaço para criar uma personagem mais complexa, nem um
arco de aprendizagem mais apropriado ao romance, há uma centralização sobretudo
na intriga. Gaiman é um autor imaginativo e muito acima dos que tentam criar
formas literárias no território do fantástico, e até tem uma abordagem “simpática”,
pouco grotesca, das personagens, mas há uma certa leveza neste conto que não
contaria com uma adaptação tão alongada. Não se podem esperar aqui personagens
memoráveis mas antes cifras em torno das quais se ancoram os eventos.
Os autores brasileiros, por outro lado, seguem também as
mesmas passadas que o escritor britânico, no sentido em que todo e qualquer
projecto receberá luz verde, mas ao mesmo tempo um desimpedimento de obstáculos
que pode levar a menos explorações internas. Com efeito, a abordagem deste
livro segue os movimentos expectáveis de um livro mainstream, de quase obrigatoriedade comercial, do que propriamente
de um projecto em que se pretendesse reinventar a assinatura dos autores. Apesar
dos contornos delicodoces de Daytripper
e a solidez história e localizada de Dois irmãos, os cenários neste volume são
menos naturalistas e sumários (com a excepção da cena introdutória e a fuga
final, toda a narrativa se passa num interior), as próprias personagens mais simplificadas
para uma legibilidade mais célere, mas perdendo alguma coerência na
continuidade,as cores aplicadas mais gestuais mas sem que isso signifique maior
expressividade ou pertinência.
A esmagadora maioria das cenas propostas pelos gémeos seguem
as pisadas do texto de uma forma confortável e relativamente expectável. Não há
alterações de maior em relação às falas e até mesmo às legendas do narrador,
quase como se o conto fosse tratado como um argumento completo. Para além da
questão óbvia da figuração (que mostra mais jovens homens do que os
adolescentes do conto, retirando parte da possibilidade da falta de suavidade social
típica prevista originalmente, mas oferece-nos figuras femininas um nadinha no
limite da humanidade), da estruturação das páginas que incute os ritmos
específicos da banda desenhada e as opções cromáticas – a nosso ver, com uma
certa ambiência luminosa e quente demais para uma história passada em Londres
ao fim do dia e nas primeiras horas da noite -, há apontamentos que trazem uma
mais-valia nas emoções e caracterização das personagens: a mão da segunda rapariga
na perna de um outro jovem, a distribuição do texto de uma forma visual que
traz uma dimensão temporal à leitura do texto e, claro, a “tradução” do mundo
fantástico da qual terão emergido estas mulheres, que são uma perspectiva dos
desenhadores a partir do que não é dito
no texto original. É aí que eles poderiam ter fugido ao texto e ter criado uma
garantia própria da banda desenhada, acrescentando, digamos assim, pela
presença visual, uma promessa maior do que estava no texto. Contudo, talvez
devido a uma limitação do formato, de decisões editoriais ou de “respeito” e “distância”
para com o escritor, os artistas acabam por se manter numa abordagem tímida e underwhelming.
Há uma ideia de estarmos perante uma adaptação que tem menos
de inspiração do que de necessidade de alimentar a constância da presença de
produtos. Mais um livro de Gaiman, mais um livro dos gémeos, então se forem todos juntos, milk the cash cow.
Nota final: agradecimentos a W.T. pelo empréstimo do volume.
os desenhos são mesmo feios!
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