13 de janeiro de 2017

Pandora # 2. AAVV (Casterman)


Se em Portugal estamos a seco há décadas em relação a títulos regulares de banda desenhada cujas narrativas sejam publicadas em capítulos, ou que mesmo antologias de histórias curtas saiam somente de quando em vez e usualmente como gestos únicos ou limitados, o mesmo não pode ser dito de outros mercados mais consistentes financeiramente. Esta é apenas uma constatação de factos, não um juízo de valor, já que se tentam várias vezes reatar essas chamas por cá, com fortunas díspares mas quase sempre sol de pouca dura (mas trabalhos em si de qualidade). Em França, por exemplo, ainda há vários títulos que garantem a chamada “pré-publicação”, um pouco para todos os gostos, desde o mais mainstream (a Bodoï, depois transformada em webmag, a Lanfeust) às mais clássicas (Spirou) até mesmo às que servem o círculo independente (a Lapin, agora transformada em jornal). Mesmo assim, no panorama actual mais empobrecido na abordagem convencional – já que em termos de “reportagem em bd” a existência da Révue XXI e La Révue Dessinée apenas nos fará sonhar num mundo mais perfeito -, o surgimento de um título como Pandora encaixa-se num contexto de maior diversidade, mas terá certamente o seu papel. (Mais) 

Antes de mais, indiquemos que nos referiremos sobretudo ao segundo número, que é o que lemos, apesar de algumas imagens pertencerem ao primeiro. Basicamente, o princípio desta revista é a de coleccionar histórias curtas, completas e (mais ou menos) independentes de uma constelação diversificada de autores, não necessariamente associados à casa Casterman. Se bem que a esmagadora maioria dos criadores são publicados por esta editora, existem alguns casos de autores de outras casas ou até de quadrantes fora dessa mesma esfera. Um caso gritante é o de Jean-Christophe Menu, que havia sido tão crítico da Casterman a propósito do “aproveitamento” do embalo das tendência criadas pela L'association pela colecção Écritures (cf. Plates-bandes e depois a tese dele), mas também se poderia citar Art Spiegelman, que participa com uma página de um cartoon ou curto gag, pertencendo a um ciclo ao qual chama “one-page graphic novels”.

Seja como for, o ecletismo está garantido nestas páginas, em termos de humor, géneros, estilos, forças, formas de entender a banda desenhada, se bem que mais ou menos confinados à ideia de banda desenhada narrativa ou de legibilidade clássica, assim como de um público-alvo maduro e interessado em temas diversos. A Spirou, por exemplo, que continua na mó de cima nas vendas, é uma revista “para todas as idades” (leia-se, humor infanto-juvenil, ainda que os adultos a possam ler). A Pandora já prevê outras exigências e cuidados, sem se tornar na Ferraille.

Este não será um laboratório de estéticas experimentais, apesar de uma peça semi- ou não-narrativa de Victor Hussenot, uma história poética de Marc Villard desenhada por Jacques de Loustal, a série semi-oubapiana de Gilles Dal com Johan de Moor, um conto de Vincent Cuvellier ilustrado por René Follet, e uma série de gags em torno do mundo da arte visual por Jean-Luc Coudray e Isabelle Merlet. Há também surpresas, como a adaptação, pela parte de Jean Harambat, de um episódio da vida do artista Ronald Searle, retirada da sua autobiografia de guerra ilustrada, To the Kwai – And Back.

Dirigida por Benoît Mouchart (“rédacteur en chef”) e Néjib Belhadj Kacem (“directeur artistique”), a Pandora não apresenta de maneira alguma uma homogeneidade a qualquer nível, mas isso é o que a torna um projecto muito interessante e estimulante. É certo que não será um filtro tão decisivo como o terá sido, na sua época, a Charlie Mensuel, (A Suivre) – à qual o projecto se deseja ligar por questões históricas editoriais, mas sem conseguir atingir o mesmo efeito, julgamos nós - , ou até mesmo a Métal Hurlant, mas ainda assim cria um corpo agregador de franca qualidade (titubetante aqui e ali, talvez, mas na média, sólida). Encontraremos aqui um equilíbrio muito salutar de alguns autores clássicos e veteranos, autores mais jovens e que têm uma carreira a arrancar e outros mesmos que se estreiam aqui em absoluto (advindos de concursos ou até de primeiros passos profissionais).

Não se pode chamá-la de “conservadora” nem de “de vanguarda”, mas algo que mostra uma certa comunidade aberta de interesses. É verdade que ao mesmo tempo essa diversidade pode ser vista de um ponto de vista negativo, dando uma no cravo e outra na ferradura, mas a verdade é que não se pode dizer que mesmo os trabalhos mais “clássicos” ou “convencionais” - por hipótese, a alucinação new age de Jean Pleyers, a rábula em alguma continuidade de ficção científica de Katsuhiro Otomo, o conto tradicional de Frank Giroud e Andrea Gucchi, a breve memória da Guerra Civil espanhola de Vittorio Giardino, a reutilização de personagens de Grégory Panaccione (que faz uma adaptação e variação brutal de The Shining, Jiro Taniguchi, Aapo Rapi ou de Michel Pirus) - sejam “chover no molhado”. São histórias dignas, de leitura curta e satisfatória. Sobretudo tendo em conta que essa dimensão curta (duas

Se existem tratamentos que não estão a colocar em causa os ingredientes tradicionais da banda desenhada em termos gerais, a sua convivência com abordagens mais livres e poéticas (destacando-se a peça de Aseyn e o pesadelo de Killoffer, por exemplo), torna esta navegação interna tão verdadeira quanto a da leitura livre de um leitor médio desta disciplina pelos quadrantes dela.
Precisamente como esperamos que sejam as antologias.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta da publicação.

7 comentários:

  1. Confesso que a leitura do primeiro número (nunca peguei no segundo) foi uma desilusão profunda. A revista tinha uma série de histórias, de géneros diversos, mas sempre (com algumas excepções) à volta daquele estilo gráfico mais "feio", e sobretudo muitas delas pareciam não ter nenhum argumento que se conseguisse adivinhar - a do Otomo era tal e qual isso. Na revista toda encontrei exactamente UMA história que tinha um argumento com alguma compreensibilidade, e duas cujo desenho NÃO me ofenderam. Pareceu-me quase um catálogo de "aspirantes a autores da Association", e não digo isto como um elogio. Os nomes são conhecidos, às vezes impressionantes e com obra feita, as histórias que eles assinam no número um bem medíocres, no geral.

    Além disso, não há pontos de contacto entre as histórias, não há verdadeiramente nenhuma linha editorial, nenhuma "explicação", nenhum compromisso editorial de qualquer tipo, recebemos duas dúzias de histórias assim, à balda, sem mais. Parece-me que não existe qualquer identidade e que a revista acaba por ser só uma espécie de catálogo (e não muito bom, mas aqui o meu gosto de BD pode zser um obstáculo...) de autores que trabalham com a Casterman.

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  2. Não tendo lido o primeiro número, não me posso pronunciar. Compreendo o que dizes de não haver "uma linha editorial", mas presumo que coloque o ónus no "uma", mais do que na "linha". Como sabes, sou um leitor da L'Association e afins, havendo muitos autores diversos, alguns dos quais poderão não ser os mais significativos em termos visuais, mas está longe de ser um catálogo dos horrores (a menos que aches o Menu, o Killoffer, o Stanilas, maus artistas, mas duvido, ou assim o espero). O facto de haver aqui ideias plurais da banda desenhada parece-me interessante, cansado de projectos temáticos, de escolas e passados a ferro pelas mesmas bitolas. Mas do ponto de vista de um mercado como o francês haveria, sim, espaço para projectos mais "controlados". Pode é ser menos satisfatório por serem coisas muito curtas e obrigar a passar a outro humor passado duas páginas, mas essas são as vicissitudes das antologias. É brilhante? Não. Mas não vejo assim como algo de tenebroso. Hei-de procurar o primeiro número, porém, e lerás este segundo, e continuaremos o diálogo.
    Até breve,
    pedro

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  3. Freitas, um editor do seu calibre não deveria deixar comentários de "loonie" e inconsequentes como este. Não seja Trump, sff...

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  4. O que eu sinto é que a maioria dos autores presentes no primeiro número estavam a fazer muito abaixo do que era o seu normal. Não sou fã de muitos deles, como deves depreender, embora não ao ponto de os achar 'maus artistas', pelo menos os que citaste (haverá outros nomes que não conheço e cujo restante da obra não conheço, pelo que não me pronuncio) mas neste número as coisas deles estão num estilo assim a modos que "brouillon". Talvez estas histórias curtas não sejam o forte deles. Mas não gosto de ler uma revista que parece uma espécie de catálogo de exposição retrospectiva dos últimos tantos anos de edição de um certo número de autores, cujos grandes trabalhos não eram nenhum daqueles. Mas vou ver se cravo o volume dois a alguém e ver se continuo com a mesma opinião.

    Se fosse Trump doava já uma parte da minha fortuna para pagar a uma série de autores portugueses para pdoerem estar uns anos só a produzir BD.

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  5. Acrescento que acho a capa do #2 particularmente fraquita (ie. "repelente", mas enfim, thou shalt not Trump be etc...), mais c'est un genre, et il faut de tout pour faire un monde. ;-)

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  6. Geraldes Lino1:28 da manhã

    Tem piada, José de Freitas, a coincidência com o pormenor de eu já ter pensado muitas vezes que, se por hipótese quimérica tivesse de repente uma fortuna, faria exactamente isso que dizes que farias: ser o mecenas de uns tantos autores/as de grande talento que há por aí!

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  7. António Carvalho9:59 da tarde

    Adquiri o primeiro número desta antologia ( o Nº2 nunca o vi cá a venda...) á largos meses atras e, de facto, ficou-me a sensação de que há aqui uma lacuna grave, a ausência de uma linha orientadora para a publicação. Isto apesar de estar associada a nomes sonantes e de qualidade. Pessoalmente julgo que o último projecto entusiasmente desta natureza, vindo do mercado franco-belga, foi a revista AAARG! (a 1ª série - 11 números) nunca distribuída por cá. Projecto, infelizmente, votado com fracasso devido aos custo de edição, quase luxo e |à falta, penso, de uma distribuição adequada. A versão que se distribui agora é apenas uma pálida imagem da original. Um abraço.

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