3 de fevereiro de 2017

A minha casa não tem dentro. António Jorge Gonçalves (Abysmo)

No final do volume, o autor explica como o título deste livro é retirado de uma “estiga”, que neste caso se refere a uma forma ritualística e lúdica de Luanda de criar narrativas trocadas com interlocutores, com direito a resposta. Usualmente, e mesmo em Portugal, são jogos de insultos mútuos, com ataques e ripostas, uma espécie de rap battle, mas onde o objectivo é o divertimento de todos (às custas dos que se propõem a jogar). É portanto uma forma de exposição, franca, directa, bruta, e em grande medida é isso o que se passa neste livro. Mas é no início que está a nota que explica a razão de ser deste projecto. António Jorge Gonçalves teve um acidente gravíssimo médico que o colocou à beira da morte, ou mesmo para além dessa hipotética fronteira (ele escreve “morri e regressei à vida”). E este acto criativo é uma resposta. Se essa reposta é à aproximação dessa fronteira, à sua travessia, ou ao seu regresso, não sabemos. Sabemos é que deve ser lido. (Mais) 
Incorrendo numa primeira familiaridade abusiva, tivemos o privilégio de ter conhecido uma versão primitiva deste projecto, podendo assim afirmar que o livro atravessou várias formas, sendo moldado à medida do que o autor procuraria. Um melhor modo não tanto de “representar” o que queria mostrar, mas de dar corpo e signo à ideação da sua experiência. Mas esta informação em nada invalida a leitura original, primeira, deste livro que se apresenta. Dada a existência de suficientes elementos narratológicos coesos – a presença de personagens recorrentes, de repetição de espaços, de linhas visuais de acção, de transformações internas -, A minha casa não tem dentro é composto de uma sequência de imagens, quase todas organizadas em páginas duplas pintadas a marcador e aguarelas. Se a base dessas imagens, preto no branco, imitam os padrões materiais que adviriam da linogravura, por exemplo, com figurações simplificadas, plásticas, moldáveis mas solidamente representativas, as cores predominantes são azuis e vermelhos densos (e os resultados do seu cruzamento, sobretudo no fim). É quase impossível não ler nessa opção uma circulação dos sangues venoso e arterial pelo corpo. E esse corpo, na veia autobiográfica que se compulsa nestas páginas, é aquele exposto do próprio autor. O livro é, portanto, um corpo aberto.

O autor joga com toda uma série de imagens que podem ser descritas como simbólicas, tanto de memórias pessoais como de sistemas de representação mais colectivos, senão mesmo universais. Apesar da aparente conjunção heteróclita de elementos e origens das imagens, uma sua leitura narrativa não é de todo difícil. Bem pelo contrário, há um agenciamento desses mesmos elementos para criar uma “história” num sentido bastante claro, linear até, se bem que revestido de uma estrutura quase clássica, da catábase, isto é, a descida ao mundo dos mortos.

Há, portanto, um ritmo claro na construção, densa, dos significados. Uma situação inicial – que descreveremos como sendo a de um pai desenhando com a filha – leva a uma brutal separação – a ambulância do INEM levando o pai, a filha sozinha no quarto, depois a visitar o pai no hospital, este ligado aos tubos que o sustentam, como uma marioneta desmaiada –, a qual instilará o início de uma viagem da protagonista feminina por paisagens variadas mas que nascerão das projecções do “pai” desmaiado, do outro lado da vida. Sendo um acto autobiográfico, não deixa de ser revelador de que a história é menos contada (na camada visual, como veremos) na perspectiva do personagem masculino, o pai, o sofredor, por hipótese imagem do autor, do que a filha que fica para trás e persegue as paisagens que se lhe apresentam na busca do pai.



E o que vemos nessas paisagens cambiantes? Vemos anjos (também desmaiados?) no tecto do quarto, vemos várias águas penetrando ou atravessando os espaços, vemos um médico de máscara de pássaro (da peste), cenas de espaços teatrais, um circo horrível, uma dança macabra, paisagens urbanas ora desoladas ora cheias demais, florestas de pernas, rostos múltiplos. A leitura de todas estas cenas como “positivas” ou “negativas” tanto pode ser feita de acordo com as interpretações mais usuais – uma cena violenta como negativa, a chegada de amigos como positiva – mas ao mesmo tempo, se se as considerar de um ponto de vista alquímico ou outro (e o Sol-Lua ou as Mãos da Glória permitiriam uma abordagem esotérica), é possível que se pudessem tentar outros sistemas de interpretação. Que permitirão desalojar níveis mais complexos, profundos e duradouros.

Em termos de formato, o livro poderá surgir como um objecto autónomo e de difícil categorização. Não se trata de um projecto “claro” de colecção e foco de trabalho como Subway Life. A sua estrutura basilar, aliás, poderá mesmo recordar os leitores de António Jorge Gonçalves dos seus últimos projectos infantis. Não é que o autor seja cultor, desde logo, de um estilo ou de uma aproximação a esses objectos que o enclausure numa natureza simplista do que os álbuns ilustrados possam ser, não sendo portanto surpresa que muito dos seus elementos recorrentes estejam aqui de novo. Há uma convergência de gestos materialistas e processuais, mas numa direcção e ontologia bem distintas. Afinal, a protagonista poderá ser lida como eco das anteriores personagens de Barriga da Baleia e Quero a minha cabeça!, onde também existem viagens iniciáticas, possivelmente ecos elas mesmas, e esta agora ainda mais próxima, da filha real do autor, reforçando a leitura autobiográfica, mas que obrigaria a abusos de familiaridade. Evitá-los-emos.  

Algo que reforça ainda o programa narrativo de A minha casa não tem dentro são as “interrupções” do fluxo das imagens por “bandas escritas”, estruturas aparentes à banda desenhada, com duas páginas com grelhas de 2 x 3 vinhetas, preenchidas somente com material textual. Existem 7. Escritas na primeira pessoa e seguramente ligando-se à “voz autoral” e empírica de António Jorge Gonçalves, a primeira aponta para ainda um outro sub-tema, ou melhor, o filtro principal pelo qual também o livro pode ser lido, transformando toda a sua natureza: a da própria noção de desenho como extensão natural da expressão do (deste) autor, logo, considerando o desenho como a única forma de desejo exposto desta carta aberta “após a morte”. O desenho ganha um direito de cidadania ao nível narratológico (vemos as personagens a desenhar, inclusive a menina numa das paisagens “baixas”), a nível textual (fala-se do desenho e é nele que se instala a identidade do autor), ao nível das representações (dando a ver os vários “mundos simbólicos” que ajudarão à leitura e interpretação), e ao nível material e superficial destas páginas (estamos afinal a ver desenhos que criam estas paisagens e argumentação).


Quase todas as “histórias” de cada uma dessas unidades textuais apontam para experiências do passado, mesmo que este seja ora elíptico ora que escape das mãos do narrador... Há mesmo uma sequência breve que apresenta imagens bem distintas das demais, como se fossem “traduções” ou “transcrições gráficas” de fotografias, mas onde os rostos estão apagados. António Jorge Gonçalves apresenta aqui uma espécie de Valsa Lenta, para citar o livro de José Cardoso Pires com os quais teria esta afinidade de testemunho de uma experiência liminar, e onde o confronto com a identidade, aquela tecida no passado e aquela permitida no presente, se torna o cerne do gesto. E se se pode dizer que há ângulos pessoais (uma hipotética paisagem diária experienciada pelo autor, a filha, memórias específicas), é o próprio desenho que estará presente como substrato principal. Essas histórias incluem sonhos, diálogos com a madrinha, sofredora de um AVC que a irmana ao autor no binómio doença-recuperação, fragmentações físicas e sexuais, espectáculos de equilíbrio incompletos... Uma última história, já sem molduras das vinhetas, e num campo branco, aberto, de páginas onde se poderão continuar ainda outras histórias, a voz narradora promete regressar ao parque para repetir as brincadeiras com a filha. Não poderia ser mais claro o desejo de repetir os gestos, inclusive o do próprio desenho.

A minha casa não tem dentro não deixa de ser um título enigmático, já que o que o livro revela, se for visto como casa, ou mesmo que se entenda essa metáfora como sendo o “corpo vazio” que se visita na hora de uma morte suspensa (o corpo na cama de hospital, a filha abrindo o peito, as mãos mostrando-se, as janelas do quarto abertas, as águas atravessando lugares), estar cheia afinal, de objectos, vida, imagens, ângulos de entrada e travessia. Este livro vem unir-se a toda uma tradição de objectos gráficos em que os desenhadores constroem reflexões muito pessoais sobre o acto criativo, sobre o desenho em particular, mesmo que essas considerações tomem a forma de segredos que nem sempre sejam claros da forma mais imediata. Porém, a beleza do enigma não está em descobrir uma resposta final (esperando que dessa forma a esfinge, isto é, a morte, se afaste de vez), mas antes em dar início ao jogo mental, emocional e até ontológico da adivinha, tal qual o convite da estiga. É um jogo a repetir.


Se não estamos em erro, existe igualmente em Angola uma tradição oral em que o recontar se inicia pela fórmula “tirei do fogo” para terminar com “volta ao fogo”, convidando a essa ideia de um fundo informe, universal, de onde tudo é retirado e para o qual retorna. Se se conhecer o final magnífico de A morte de Virgílio, de Hermann Broch, conhecer-se-á também esse além informe onde tudo se comuta entre si. É tentador compreender esse limbo como aquele que o autor visitou, e do qual retirou este tremendo exercício de recuperação da memória pessoal. E não deixa de fazer sentido pensar no desenho como instrumento optimizado dessa recuperação. Como escreve Pedro A. H. Paixão em Desenho. A transparência dos signos, o desenho pode ser visto como “um meio de intensificação do elemento perceptivo-sensível (activo-passivo) a ponto de advir, no desenhador, um anúncio inteligível – o limbo entre o eterno e o perecível” (itálicos no original).

Anúncio de regresso, de vida, de que o desenho tem um valor salvífico. Esse salvamento é protagonizado pela filha, que não desiste de desenhar mesmo na paisagem dos mortos, e talvez por esse acto faz regressar o pai (um dos desenhos mostra a sombra imensa da menina baloiçando nas mãos o pequeno corpo do pai, regressado ao quarto). Ou então é ela que é salva, pelo próprio acto da sua viagem, descida, regresso? Não poderá haver dúvida, todavia, de que o carácter soteriológico do desenho está presente sob a aparente “novela” entre a figura paternal e a figura da filha.


Uma das histórias textuais é a de um malabarista que não consegue, no fim, controlar um mesmo truque quando o tenta com sete bolas. O leitor também terá de equilibrar essas histórias com as várias sequências, interpretando-as quer como unidades autónomas ou como um fluxo ininterrupto, uma viagem contínua da protagonista, ao mesmo tempo que, nos bastidores, o corpo inerte do pai exerce a sua magia pela ausência. Quem manipula e controla este equilíbrio? O autor ou os leitores? A própria obra? Se assim for, pelo menos ajudar-nos-á a escaparmos à gravidade e perigo de nos prendermos às “intenções” do primeiro (que apenas a ele lhe pertencem e não devem exercer autoridade na leitura livre do livro) ou dos segundos (que poderão trazem enquadramentos abusivos, erros de associação, uma multidão de interpretações idiossincráticas). Não entenda porém esta “falta de equilíbrio” como um juízo negativo. Deve ler-se sob a égide da frase famosa de Beckett, de Worstword Ho: “falhar melhor”.

A história final da filha que quer repetir o passeio ao parque infantil parece-nos precisamente a exigência que o livro fará junto ao seu leitor. Ler outra e outra vez, mesmo que se “falhe”. Pois tentá-lo não é falhar, e como ao malabarista obrigado a apanhar as bolas do chão à frente dos espectadores, só nos resta bater palmas.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Ao autor, pelo privilégio mas não só, um "saúde!". 

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