21 de fevereiro de 2017

Três títulos da colecção Écritures (Casterman)


Como manda a lei das editoras comerciais, chegará um momento em que se faz não apenas uma reestruturação gráfica e formal das suas colecções, como um balanço interno da sua produção. A colecção Écritures foi alvo precisamente de um redesign, em que as capas passam a ser tratadas a preto com uma segunda cor e os títulos a dourado, criando uma coerência gráfica distinta daquela verificada até agora. Não só foram relançados alguns títulos antigos neste packaging como os novos seguem agora esta linha. Além disso, há um lançamento e abertura de vários novos gestos criativos que estendem os supostos objectivos originais da colecção. Não é que não houvesse colaborações anteriormente, mas o lançamento de La cire moderne, colaboração entre o escritor Vincent Cuvellier e o artista Max Radiguès, e Je viens de m'échapper du ciel, adaptação das novelas policiais coordenadas de Carlos Salem por Laureline Mattiussi parecem confirmar a insistência desse tipo de possibilidades “literárias”. Adicionalmente, o lançamento de Salles d'attente, de Charles Masson, que recupera Soupe Froide e outros relatos, mostra a possibilidade dos tais balanços internos. (Mais)

La cire moderne (Vincent Cuvellier e Max de Radiguès) segue a vida de um trio de slackers que são confrontados com uma nova experiência de vida. O protagonista é Manu, que se torna herdeiro de uma fábrica de velas de um tio de que mal se lembra, mas com o qual passara uma parte ínfima da sua infância. Em seu torno estão a namorada, Sam, e o meio-irmão desta, Jordan. A vida deles vive num limbo de indecisão, tempo livre, e uma rebeldia contra uma ideia vaga de autoridade, idade adulta e, em termos gerais, qualquer existência que não seja igual à que vão levando.

A herança da fábrica de velas não apenas força Manu a compreender uma nova direcção na sua vida, como a confrontar-se com o seu passado, mesmo que essas memórias tenham apenas lugar fora de campo e se notem somente nos resultados que operam sobre a sua personalidade, e as novas formas de enfrentar os desafios do presente. E esses desafios multiplicam-se em várias dimensões, desde a redescoberta do catolicismo, dado a proximidade a que é obrigado pela entrega das encomendas de velas votivas ao longo de uma série de mosteiros e igrejas, a relação tensa com a namorada, e ainda mais com o irmão, um punk sem tino. La cire moderne é uma espécie de road movie, sem dúvida alguma, e como todos os textos desse género, são apenas metáforas claras para viagens interiores bem mais complexas.

O livro tem uma forma algo contraditória, começando pelos desenhos leves e esquemáticos de Radiguès para as personagens, recordando uma espécie de John Porcellino que tivesse crescido alimentado pela linha clara. A leveza desses desenhos em certa medida não corresponde à gravidade das transformações que se exploram. Mas se num momento o road movie mantém-se nos seus contornos habituais, há um episódio ou outro que quase parece escorregar para um território de road comedy, até mesmo num registo slapstick, com uma força secreta de padres que os persegue... Porém, o tom final é de uma estranha conciliação com as dúvidas advindas da redescoberta de um mundo mais complexo, pondo de lado as certezas do antagonismo primário da juventude. Dessa forma, a “cera” ganha a noção de algo moldável, tal como Manu.

(Je viens de m'échapper du ciel, Laureline Mattiussi) Carlos Salem chama às suas pequenas novelas policiais de “relatos de cerveja ficção”, tendo-as reunidas numa antologia intitulada Relatos negros, cerveza rubia. Não as conhecendo directamente, não podemos confirmar que o(s) protagonista(s) sejam os mesmos ou as atravessem, mas neste volume, que adapta quatro dessas novelas, a autora de banda desenhada junta-os numa fiada que se torna uma coerência maior. Na verdade, cria mesmo um prólogo e epílogo que servem de book ends aos restantes relatos. Outros críticos comparam Salem a Bukowski, no sentido em que estes textos deambulam pelos corredores nocturnos mais sórdidos e os crimes apenas existem, não tanto para nos preocuparmos com eles, as suas consequências, vítimas e resolução, do que criarem um portal para um ambiente de derrotados da vida. Fumos, álcoois, fúrias, sexo, e relações humanas expostas sob a forma de ossos calcinados são as essências que alimentam essa prosa e, agora, estes desenhos.

Mattiussi tem um desenho fluido, pincelado, que fará recordar sobremaneira a destreza de um José Muñoz, não só pela matéria plástica, como a temática (na companhia de Sampayo, naturalmente). Mas Mattiussi é mais delicada na sua abordagem, menos angular, preocupada, talvez excessivamente, com a legibilidade e a delicadeza e o simbolismo. Uma vez que as novelas de Salam se prestam ainda a uma dimensão fantástica, na qual têm lugar anjos e pelo menos a sombra de Deus, elevando o nível da rua à abertura do céu, existem momentos dessa fuga transcendental. Não compreendemos totalmente se essa oportunidade soteriológica e divina é melhor para o protagonista, Poe (um criminoso de uma categoria pífia), ou se torna ainda mais insuportável o estar preso à terra, mas ele surge como uma dessas criaturas que retira prazer precisamente de ser feito de carne e sangue e dias mortais, tendo ainda tempo de garantir a redenção aos demais, menos afortunados do que ele. Nesse aspecto, não deixam estas histórias de serem clássicas nessa moralidade: o protagonista é sempre o “bom ladrão”, que tem um “código” que jamais ultrapassa, e está apto a ser justiceiro quando os seus companheiros (“malvados”) pisam o risco. Dito isto, existe abertura suficiente para ler as novelas como uma espécie de ode precisamente a essa mesma vida, com um peso carnal e humano.

Salles d'attente é, como dissemos acima, uma antologia que reúne os livros anteriores de Charles Masson (havíamos falado do primeiro), e ainda um bom número de relatos curtos, tornando este um volume de 400 páginas. Para além de Soupe froide, que pode ser lido ou relido como um poema livre em nome da dignidade humana, o livro reúne outros relatos autobiográficos ou auto-ficcionais da vida de Masson como médico, explorando a sua experiência como especialista de otorrinolaringologia oncológica, quer em França quer em missões noutros países, sobretudo atendendo pessoas com necessidades económicas, tornando o interesse das suas histórias particularmente centrado menos nos aspectos cirúrgicos e técnicos do que na vertente humana e política.

Isto permite, ou exige, a Masson explorar vários registos, alguns dos quais se pretendem mais realistas, com os desenhos burilados da sua forma expressiva ainda que simples (a sofisticação gráfica do autor é limitada, mas eficiente), e outros apresentam abordagens mais imediatas e esquemáticas, informativas ou enciclopédicas mesmo. Enquanto médico e autor de banda desenhada, Masson sabe estar a coordenar duas actividades aparentemente paradoxais. Se a classe médica (pense-se nas Letras portuguesas) sempre se prestou a uma sofisticação e abertura cultural para o romance de interesse humano, a banda desenhada seria vista antes como meio, de tanto, de comunicação informativa. A sua transformação em canal de expressão pessoal leva a algumas concessões e explorações, como a do humor negro que ocorre nos blocos operatórios ou a uma auto-derisão da parte do autor. Mesmo quando as histórias parecem focar antes episódios pessoais como uma confissão em torno de uma amante, e da “necessidade” de mentir, essa experiência é explorada como sendo uma plataforma para pensar na sua actividade médica.

Mas a maioria dos relatos, mesmo os mais pequenos, tem a ver com a descoberta das experiências distintas dos seus pacientes. Mesmo que os sintomas e as intervenções sejam as “mesmas”, a sua vivência não o é, e dessa forma é que emerge a dignidade humana nas suas mais diversas faces. Esse, pensamos, é o verdadeiro fito do trabalho de Masson.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta dos livros.  

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