25 de março de 2017

Bruma. Amanda Baeza (Chili Com Carne)

Quando falámos atempadamente do trabalho de Amanda Baeza, ainda no interior de uma lógica de pequenos fanzines ou edições independentes de uma circulação limitada, tínhamos perfeita noção de que mais tarde ou mais cedo a acumulação desses trabalhos emergiria num corpo maior. Se ainda não é o momento, talvez, de uma obra maior em si mesma, pelo menos a sua colação permitirá chegar a um público mais alargado e, de resto, tem sido essa a missão da colecção Mercantologia, da Chili Com Carne, nos últimos anos: a de re-oferecer alguns dos melhores gestos da comunidade zinesca a uma circulação mais lata.  (Mais)

Bruma reúne então 18 histórias, algumas das quais inéditas, e apenas duas tendo sido publicadas antes em língua portuguesa (como aqui), e outra, de que devemos declarar ter sido o argumentista, saíra em língua inglesa na The Lisbon Studio Mag no. 6. Não é todo o material de Baeza, é certo, mas são os objectos passíveis de criarem um corpo coeso. A edição da Chili Com Carne junta peças curtas que haviam saído em outras antologias, como a Volcan e a Kovra, até a monografias como Our Library.


Aquilo que é salientado, em primeiro lugar, é o campo magnífico visual em que Amanda Baeza trabalha. Há aqui um felicíssimo encontro entre uma figuração ultra-estilizada e uma liberdade dos espartilhos estruturais mais clássicos da banda desenhada que a lança a vários experimentos de organização do campo visual, da estruturação narrativa, da concatenação de linhas divergentes, modos de atenção, etc. Além da esperada variedade gráfica, advinda ora das circunstâncias de cada publicação ora de preocupações momentâneas da autora: lápis de grafite versus trabalho de linha de tinta-da-China, preto-e-branco versus cor, cores planas versus gradientes suaves digitais, composições ortogonais versus contaminações em espiral, etc.

Esta variedade tem, todavia, reverberações nos pontos comuns, que são temáticos. Se se ler com cuidado, aperceber-se-á o leitor atento dos contornos autobiográficos das histórias, preocupadas com questões de identidade, não apenas do Si mesmo (essas histórias são muitas vezes contadas na primeira pessoa, e quando o não fazem referem-se a uma “Amanda”) mas dos Outros com que a protagonista contacta. Assim, “Nuvens de talco” aborda a religiosidade e o isolamento num colégio, “As crianças revelam o que os adultos escondem” é a mais directa peça autobiográfica e que expõe a percepção da cor da pele como estigma social assim como uma lição terrível e verdadeira da expressão dos preconceitos, “Bilbao” é sobre uma integração problemática no País Basco, território ele mesmo pejado de tensões identitárias, e quer “A minha cara, por fora/A minha cara, por dentro”, “Uma cara perdida ouvindo a Fuller” e, mais obliquamente, “Uma caixa”, parecem ser variações das histórias da infância.


Curiosamente, se algumas histórias parecem expor de forma directa citações ou ideias em torno do acto criativo, artístico, da formação as imagens, há recorrentemente cenas das personagens a moldarem matérias em várias formas. A concentração na manipulação e metamorfose das matérias, inclusive a do corpo humano, parece ser um baixo-contínuo nas suas histórias (e que se mantém na sua colaboração de “7 dias de assombro”, connosco, apesar de não ter havido esse desígnio de modo consciente ou programático.

A re-descobrir de um modo sustentado ou como primeira apresentação, Bruma, esperemos, será um gesto de introdução de uma autora com uma voz particularmente original.

Nota final: a edição a que nos referimos é a em língua portuguesa, que é a mais completa, em relação àquela em língua inglesa (da Kus, da Látvia), o que é natural, uma vez que duas das histórias foram por eles publicadas. É de anotar igualmente que este é apenas o segundo volume da colecção Mono dessa editora, um privilégio especial. Há ainda uma edição em língua espanhola, que não vimos. Agradecimentos à Chili Com Carne e à autora, pela oferta dos volumes e pelas imagens. 

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