13 de março de 2017

Unfinished Mandarin. Gonçalo Pena (Mousse)

Segundo volume de recolha de desenhos avulsos de Gonçalo Pena, seguem-se aqui as mesmas aporias do anterior, em que a aparente ausência de um princípio organizativo ou classificativo dos desenhos obrigará os leitores a criarem eles mesmos as formas de associação interna. Pela sua existência somente, todavia, o volume convida desde logo à consideração da indisciplina do desenho como passível de ser repensada enquanto modo de estabelecer um modo prático do pensamento. Franqueando talvez de forma perigosa algumas questões da filosofia da arte, com as quais seguramente Pena se digladia, é possível que estejamos a incorrer numa interpretação vulgar de Hegel, ao crer na arte como ideia demonstrável, mesmo que apenas enquanto aparência. Nesse caso então, o “mandarim inacabado”, rosto pincelado com uma dezena de traços, à la René Gruau, aponta de imediato às ideias apresentadas ao longo destas centenas de páginas, todas elas sempre com uma sombra de ilusão: “inacabado” porquê, afinal? Isto permitir-nos-ia encetar uma discussão sobre a incompletude como forma moderna do desenho (sob os auspícios de um estudo sobre os "interrupted sketches" de Joeph Pennell), mas ficaremos por uma abordagem mais superficial. (Mais)

O volume é acompanhado por quatro ensaios (em português e inglês) que lançam algumas pistas de interpretação e catalogação destes desenhos de Pena, mesmo que a conclusão seja sempre, e é possível que seja esse sempre o fito primeiro, anómica. Aliás, se um dos textos, pelo crítico de arte Chris Fitzpatrick procura navegar pelas imagens precisas de Pena, identificando-as, os dos artistas João Gusmão (co-editor deste projecto) e dos Post Brothers lançam-se em exercícios para-ficcionais que, na verdade, acabam por providenciar com territórios temáticos igualmente próximos de uma sombra da colecção: a história dos Descobrimentos portugueses, o fundo cultural e matricial religioso, o encontro de “civilizações”, por exemplo, todos eles transformando-se, nos desenhos, num permanente questionamento da relação com a memória cultura e política das várias unidades identitárias a que podemos aceder (portugueses, europeus, liberais, democratas, indo-europeus, de matriz judaico-cristã, positivistas, etc.). E essas questões imbricam-se entre si, já que estas linhas possíveis de identificar vão surgindo, em variações ou facetas diferenciadas, naquelas outras. Quase se poderia imaginar que o desenho aqui é explorado sob o princípio goetheano da metamorfose, cujas leis demonstram que “a natureza produz uma parte através de outra”.

Se alguns dos desenhos são como que “endereçados”, no sentido das figuras, histórias ou fictícias, serem identificáveis (Heidegger, Marx, Platão, Nit, o próprio autor), há menos uma preocupação em tornar essas imagens em meros exercícios de ilustração ou comentário sobre a História do que uma espécie de olhar benjaminiano, salvífico na medida do possível, das ruínas daquela, recombinados como matéria passível de reinvenção. Fictícia, naturalmente, mas que não deixará de evidenciar alguma pressão sobre a sua “verdade”.
Alguns dos desenhos possuem títulos, inscritos no próprio plano visual, manuscritos de forma variada, ou então essa matéria verbal poderá ser vista como apenas uma camada de comentário ou adição de significados ao que é representado (mantendo-nos naquela percepção da ideia visível). A panóplia de temas lança-nos para o campo da História da Arte e das Civilizações, da flutuação dos estilos do desenho e caricatura, da Filosofia e da Literatura da Música, mas a cultura popular tem igualmente o seu lugar. As próprias composições, nascendo talvez ao sabor do desejo paralelo a preocupações programáticas, lançam mão de categorias sem fim. Não é que não seja possível identificar campos recorrentes (a mitologia egípcia, ideias míticas sobre o início da civilização humana, os corpos nubentes de mulheres, criaturas fantásticas, a teatralidade de figuras de filósofos, e há mesmo uma coordenação clara dos desenhos com cavalos ou dos de temática Nazi, mostrando que há alguma tentativa de editing), mas seria algo temerário querer fechar os desenhos numa hipotética lista enciclopédica e organizada. Seria sempre demais. Não será melhor tão-somente compreender que o tema mais recorrente é o próprio acto de desenhar?

O texto dos Post Brothers apresenta mesmo uma espécie de novela condensada de viagem, em que atravessam uma fiada de ilhas num encadeamento aditivo e linear (“e... e... e...”), que não deixa de rimar com a sucessão de desenhos sem uma supra-estrutura livresca. Essas ilhas são cada qual habitada por criaturas mais fantásticas que as anteriores, numa espécie de amálgama de literatura fantástica, bestiário medieval, navegação catabásica à la René Daumal ou antropologia mágica à la Henri Michaux. Ou à la John Mandeville, citado textualmente num dos desenhos. O desenho como navegação (à vista).


Encontraremos o que parecem ser emblemas medievais e provérbios visuais, paisagens desenhadas à vista e “bonecos” rabiscados talvez na distracção, o que parecem ser cenas de ilustração de leituras específicas e respostas a objectos de arte, e o que poderiam ser esboços de trabalhos maiores (as telas “cheias” do autor). Já em ocasiões anteriores, apontámos as afinidades que o trabalho de Pena tem com o de Mattia Denisse, até mesmo pelas circunstâncias de trabalho, de presença e de elos comuns, e através dessa associação chegar-se-ia a outro tipo de referências, todas elas no campo do desenho livre, da pesquisa mental pelo desenho, alimentada por uma carga erótica, senão carnal ou pornográfica mesmo, de um Pascin, Klossowski, Topor ou Stu Mead. Todos estes autores são bem distintos em termos de proficuidade, elegância, domínio, estratégias de circulação e até de campo de legalidade, se quiserem. Mas a diversidade interna de Unfinished Mandarin convida a essa ampla rede.

Aliás, é pelos mesmos instrumentos gráficos de condensação, simplificação e um trabalho nervoso da linha que a esmagadora maioria dos desenhos se pautam, se bem que há que alertar para a diversidade dos materiais riscadores também. Já para não falar da flutuação entre o rabisco mais célere e gestual ao burilar mais cuidado de regras naturalistas de luz, perspectiva e textura.


Mas quais serão então as tais Ideias tornadas visíveis? Será possível enclausurar essa busca numa fórmula? Numa “explicação”? Vejamos. Um desenho reza, “Eu li Burke e não concordo”, mostrando-se uma paisagem a grafite, com uma montanha escarpada, as breves ruínas do que poderia ser um passadiço de madeira e o que parece ser um diabo alado levando pela mão uma mulher nua. Qual das dimensões da obra de Burke com que não se concordará? Estará a referir-se aos pensamentos abstractos em torno do sublime, e quererá este casal, aparentemente tranquilo, caminhando em direcção ao céu carregado, demonstrar que nada há a temer e que é a distracção a nossa maior qualidade? Ou terá antes a ver com as controvérsias religiosas, cujos dogmas esta união “não-natural” desmontaria desde logo? Ou antes ainda as questões políticas, vendo-se nesta derrota da obra humana (o passadiço) e a união do demoníaco e do feminil noutro caminho? Ou será outro Burke que não o filósofo? E que fazem Marx e (provavelmente, mas não estamos seguros) Engels com Cleópatra, num cabeço perto do mar? Tratar-se-á de uma oportunidade para discutir formas de distribuir a força do trabalho em nome de um futuro para além da experiência humana? Ou tão somente falinhas mansas a ver se pinga alguma coisa?

O envelope carnal – aqui de grafite, tintas, linhas e cor – não é um obstáculo a derrotar ou a destruir, mas o canal pelo qual se exprime o que nele reside de eterno e de visual, pois é na própria aparência e a imagem visível que se encontra expresso o sentido. Como escrevera Warburg, “dar forma visível à presença psíquica e ao movimento da alma”.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

1 comentário:

  1. O desenho do Marx, Engels e Cleopatra remete-se ao estádio marxista da acomulação primitiva. A corte terá a ver com a vontade de desvelar os segredos da origem do capital, não sem alguma violência. Bom texto. Abraço
    G

    ResponderEliminar