Segundo volume de recolha de desenhos
avulsos de Gonçalo Pena, seguem-se aqui as mesmas aporias do
anterior, em que a aparente ausência de um princípio organizativo
ou classificativo dos desenhos obrigará os leitores a criarem eles
mesmos as formas de associação interna. Pela sua existência
somente, todavia, o volume convida desde logo à consideração da
indisciplina do desenho como passível de ser repensada enquanto modo
de estabelecer um modo prático do pensamento. Franqueando
talvez de forma perigosa algumas questões da filosofia da arte, com
as quais seguramente Pena se digladia, é possível que estejamos a
incorrer numa interpretação vulgar de Hegel, ao crer na arte como
ideia demonstrável, mesmo que apenas enquanto aparência. Nesse caso
então, o “mandarim inacabado”, rosto pincelado com uma dezena de
traços, à la René Gruau, aponta de imediato às ideias
apresentadas ao longo destas centenas de páginas, todas elas sempre
com uma sombra de ilusão: “inacabado” porquê, afinal? Isto permitir-nos-ia encetar uma discussão sobre a incompletude como forma moderna do desenho (sob os auspícios de um estudo sobre os "interrupted sketches" de Joeph Pennell), mas ficaremos por uma abordagem mais superficial. (Mais)
O volume é acompanhado por quatro
ensaios (em português e inglês) que lançam algumas pistas de
interpretação e catalogação destes desenhos de Pena, mesmo que a
conclusão seja sempre, e é possível que seja esse sempre o fito
primeiro, anómica. Aliás, se um dos textos, pelo crítico de arte
Chris Fitzpatrick procura navegar pelas imagens precisas de Pena,
identificando-as, os dos artistas João Gusmão (co-editor deste
projecto) e dos Post Brothers lançam-se em exercícios
para-ficcionais que, na verdade, acabam por providenciar com
territórios temáticos igualmente próximos de uma sombra da
colecção: a história dos Descobrimentos portugueses, o fundo
cultural e matricial religioso, o encontro de “civilizações”,
por exemplo, todos eles transformando-se, nos desenhos, num
permanente questionamento da relação com a memória cultura e
política das várias unidades identitárias a que podemos aceder
(portugueses, europeus, liberais, democratas, indo-europeus, de
matriz judaico-cristã, positivistas, etc.). E essas questões
imbricam-se entre si, já que estas linhas possíveis de identificar
vão surgindo, em variações ou facetas diferenciadas, naquelas
outras. Quase se poderia imaginar que o desenho aqui é explorado sob
o princípio goetheano da metamorfose, cujas leis demonstram que “a
natureza produz uma parte através de outra”.
Se alguns dos desenhos são como que
“endereçados”, no sentido das figuras, histórias ou fictícias,
serem identificáveis (Heidegger, Marx, Platão, Nit, o próprio
autor), há menos uma preocupação em tornar essas imagens em meros
exercícios de ilustração ou comentário sobre a História do que
uma espécie de olhar benjaminiano, salvífico na medida do possível,
das ruínas daquela, recombinados como matéria passível de
reinvenção. Fictícia, naturalmente, mas que não deixará de
evidenciar alguma pressão sobre a sua “verdade”.
Alguns dos desenhos possuem títulos,
inscritos no próprio plano visual, manuscritos de forma variada, ou
então essa matéria verbal poderá ser vista como apenas uma camada
de comentário ou adição de significados ao que é representado
(mantendo-nos naquela percepção da ideia visível). A panóplia de
temas lança-nos para o campo da História da Arte e das
Civilizações, da flutuação dos estilos do desenho e caricatura,
da Filosofia e da Literatura da Música, mas a cultura popular tem
igualmente o seu lugar. As próprias composições, nascendo talvez
ao sabor do desejo paralelo a preocupações programáticas, lançam
mão de categorias sem fim. Não é que não seja possível
identificar campos recorrentes (a mitologia egípcia, ideias míticas
sobre o início da civilização humana, os corpos nubentes de
mulheres, criaturas fantásticas, a teatralidade de figuras de
filósofos, e há mesmo uma coordenação clara dos desenhos com
cavalos ou dos de temática Nazi, mostrando que há alguma tentativa
de editing), mas seria algo temerário querer fechar os
desenhos numa hipotética lista enciclopédica e organizada. Seria
sempre demais. Não será melhor tão-somente compreender que
o tema mais recorrente é o próprio acto de desenhar?
O texto dos Post Brothers apresenta
mesmo uma espécie de novela condensada de viagem, em que atravessam
uma fiada de ilhas num encadeamento aditivo e linear (“e... e...
e...”), que não deixa de rimar com a sucessão de desenhos sem uma
supra-estrutura livresca. Essas ilhas são cada qual habitada por
criaturas mais fantásticas que as anteriores, numa espécie de
amálgama de literatura fantástica, bestiário medieval, navegação
catabásica à la René Daumal ou antropologia mágica à la Henri
Michaux. Ou à la John Mandeville, citado textualmente num dos
desenhos. O desenho como navegação (à vista).
Encontraremos o que parecem ser
emblemas medievais e provérbios visuais, paisagens desenhadas à
vista e “bonecos” rabiscados talvez na distracção, o que
parecem ser cenas de ilustração de leituras específicas e
respostas a objectos de arte, e o que poderiam ser esboços de
trabalhos maiores (as telas “cheias” do autor). Já em ocasiões
anteriores, apontámos as afinidades que o trabalho de Pena tem com o
de Mattia Denisse, até mesmo pelas circunstâncias de trabalho, de
presença e de elos comuns, e através dessa associação
chegar-se-ia a outro tipo de referências, todas elas no campo do
desenho livre, da pesquisa mental pelo desenho, alimentada por uma
carga erótica, senão carnal ou pornográfica mesmo, de um Pascin,
Klossowski, Topor ou Stu Mead. Todos estes autores são bem distintos
em termos de proficuidade, elegância, domínio, estratégias de
circulação e até de campo de legalidade, se quiserem. Mas a
diversidade interna de Unfinished Mandarin convida a
essa ampla rede.
Aliás, é pelos mesmos instrumentos
gráficos de condensação, simplificação e um trabalho nervoso da
linha que a esmagadora maioria dos desenhos se pautam, se bem que há
que alertar para a diversidade dos materiais riscadores também. Já
para não falar da flutuação entre o rabisco mais célere e gestual
ao burilar mais cuidado de regras naturalistas de luz, perspectiva e
textura.
Mas quais serão então as tais Ideias
tornadas visíveis? Será possível enclausurar essa busca numa
fórmula? Numa “explicação”? Vejamos. Um desenho reza, “Eu li
Burke e não concordo”, mostrando-se uma paisagem a grafite, com
uma montanha escarpada, as breves ruínas do que poderia ser um
passadiço de madeira e o que parece ser um diabo alado levando pela
mão uma mulher nua. Qual das dimensões da obra de Burke com que não
se concordará? Estará a referir-se aos pensamentos abstractos em
torno do sublime, e quererá este casal, aparentemente tranquilo,
caminhando em direcção ao céu carregado, demonstrar que nada há a
temer e que é a distracção a nossa maior qualidade? Ou terá antes
a ver com as controvérsias religiosas, cujos dogmas esta união
“não-natural” desmontaria desde logo? Ou antes ainda as questões
políticas, vendo-se nesta derrota da obra humana (o passadiço) e a
união do demoníaco e do feminil noutro caminho? Ou será outro
Burke que não o filósofo? E que fazem Marx e (provavelmente, mas
não estamos seguros) Engels com Cleópatra, num cabeço perto do
mar? Tratar-se-á de uma oportunidade para discutir formas de
distribuir a força do trabalho em nome de um futuro para além da
experiência humana? Ou tão somente falinhas mansas a ver se pinga
alguma coisa?
O envelope carnal – aqui de grafite,
tintas, linhas e cor – não é um obstáculo a derrotar ou a
destruir, mas o canal pelo qual se exprime o que nele reside de
eterno e de visual, pois é na própria aparência e a imagem visível
que se encontra expresso o sentido. Como escrevera Warburg, “dar
forma visível à presença psíquica e ao movimento da alma”.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do volume.
O desenho do Marx, Engels e Cleopatra remete-se ao estádio marxista da acomulação primitiva. A corte terá a ver com a vontade de desvelar os segredos da origem do capital, não sem alguma violência. Bom texto. Abraço
ResponderEliminarG