Pensamos que este é o projecto narrativo mais longo do
autor, se bem que ele não se apresente com uma estrutura tipificada de livro. Afinal
de contas, trata-se de uma tira semanal (irregular, porém) publicada online ao longo de quase um ano (e ainda
disponível aqui). E se existe uma história central unificada e quase-coerente,
ao mesmo tempo existem consideráveis desvios, ”excreções” ou alterações do
ponto de vista que permitem expandir a perspectiva sobre as situações graças a
outras personagens que não a protagonista, Sticks Angelica, ou desarrumar a
organização temporal. Seja como for, a forma como a “história” é fechada, com
uma prolepse já depois da morte da personagem, torna todo o material numa
unidade fechada e coesa. (Mais)
O autor não abandona de maneira nenhuma a sua capacidade de
uma associação livre e selvagem de noções, ideais ou na criação inusitada de
personagens, cuja descrição é em si mesma logo um projecto completo: um ganso
que vive com um insecto-parasita dentro da cabeça, uma alce que se torna
advogada na cidade, um urso aparentemente feito de tecido que se torna o
cronista da vida na floresta, e um jornalista de segunda categoria chamado
Michael DeForge que é depois transformado numa pele flutuante, esvaziada de
conteúdo… Ainda assim, há um esforço de manter a coesão narrativa, a qual, não
sento tão concentrada quanto na novela Big Kids, permite aos leitores uma navegação descomplicada.
A razão de se apresentar a protagonista como uma “folk hero”
deve-se ao facto dela ter abandonado a sua vida urbana, confortável a até
luxuosa, graças ao seu papel social (filha de um político da sua
localidade),para os bosques selvagens do Canadá (um Canadá que mais terá de
simbólico e generalista de que real). É nessas paragens que ela estabelece
novas relações com a fauna local, procurando novas dinâmicas sociais mas também
políticas. Naturalmente que o envolvimento dos animais, falantes e agentes,
remete toda a narrativa para o campo da fábula, mas Sticks Angelica, Folk Hero acumula ainda ingredientes provindos de
outras áreas, tais como o fantástico, o Surrealismo e o absurdo. Ainda que
fosse possível destrinçar cada um desses elementos e procurar as suas filiações
históricas e mais usuais, a forma como DeForge os explora e torna contaminantes
numa fiada contínua é o mais importante.
O resultado dessas misturas é a de um humor desarmante,
muitas vezes inesperado e desconcertante, mas que consegue cumprir a sua
eficácia precisamente pela falta de familiaridade que consegue instilar em
princípios que, à partida, deveriam ser compreensíveis. Há sempre uma surpresa
no efeito. Se por um lado poderíamos comparar este projecto com as tiras do Pogo de Walt Kelly – também essa uma
rábula das situações políticas hodiernas através das dinâmicas do pântano -, a
verdade é que os endereçamentos políticos deste livro contemporâneo são mais
generalistas, menos dirigidos, e por isso mais abrangentes na forma como
retratam os comportamentos humanos. De resto, a força de DeForge está menos na
pesquisa e articulação da “faixa literária”, digamos assim, insistindo numa
violência para com a banda desenhada como um todo, do que na inventabilidade
gráfica e estrutural e os pequenos pormenores de eventos, acontecimentos, formas
de construção das personagens, morais imediatas, e curvas abruptas nos
desenvolvimentos.
Se houver um âmago neste título de interesse mais
transversal – para além do “mero” (importantíssimo!) prazer de “ler a história”
-, estará na maneira como cada personagem se procura construir em termos de
identidade. Realmente, talvez na verdade seja essa antes a força mais oculta do
autor, a de inquirir de uma maneira surpreendente, aparentemente jocosa e leve,
questões de uma profundidade fulcral: o que faz de nós mesmos “nós”? As
memórias que tecem uma narrativa anterior? As acções a que nos predispomos? A maneira
como respondemos aos outros e nos colocamos face às situações e circunstâncias?
Em que medida conseguiremos alterar quem nós somos, para melhor, se formos
confrontados com a ideia de que tal é necessário? Que devemos mudar para que
criemos redes de relações com os demais? Em que formas é que o espaço e tempo
que nos circunda dita os contornos do nosso ser? Como é que impomos a nossa
vontade sobre o mundo? No fundo, são essas perguntas que são colocadas por todas
e cada uma destas personagens e, acima de tudo, na complexa rede que
estabelecem umas com as outras.
Todas estas estratégias são reforçadas, claro, pela possibilidade de ler cada
página/tira como uma unidade quase fechada. É necessário “seguir a história”
para compreender as dinâmicas entre as personagens, claro, mas há ao mesmo
tempo uma concentração em “episódios”. Portanto, em termos formais, recordará
as meias-páginas de Domingo de tiras clássicas como Peanuts, por exemplo. Impresso com uma segunda cor, um rosa baço,
DeForge tira partido de toda uma série de variações em termos de composição,
efeitos de preenchimento, grau de pormenor, ângulos e campos de visão sobre os
espaços e personagens, organização narrativa, focalização da narrativa, etc.,
criando uma surpreendente rede densa de polifonia que pareceria uma economia
simples e linear. Um outro aspecto curioso de design é a forma como DeForge
reinventa o título da tira a cada prestação, uma multiplicidade de escolhas que
recordará outro clássico da banda desenhada de tiras dos jornais norte-americanos,
nomeadamente Gasoline Alley, de Frank
King.
A um só tempo uma revisitação de formas antigas de agenciar
a narrativa e uma experimentação da escrita automática, Sticks Angelica é um
objecto que estará menos preocupado na abertura de uma linha de pesquisa nova
do que na da consolidação dessas mesmas experiências.
Nota final: agradecimentos a The Comics Alternative, pelo
acesso ao livro em formato digital.
É Sticks Angelica, não Angelica Sticks.
ResponderEliminarAss.: Mao, the Michael DeForge fanboy
Como é possível ter-me enganado desta maneira? É a idade... Corrigido. Obrigado!
ResponderEliminarAss: P.M., the Mao fanboy.