3 de maio de 2017

Heavy Metal, l'autre Métal Hurlant. Nicolas Labarre (Presses Universitaires de Bordeaux) & entrevista no The Comics Alternative.

Por ocasião da leitura deste livro, entrevistámos o seu autor, na nossa colaboração com The Comics Alternative. A entrevista está disponível aqui. Uma vez que nesse outro texto tecemos outras considerações e a própria entrevista sublinha aspectos do livro de Labarre, ficam aqui apenas alguns outros apontamentos complementares. O foco deste livro são os primeiros anos da revista norte-americana Heavy Metal (HM), no quadro da sua relação directa com a influente publicação francesa Métal Hurlant (MH). Com efeito, a HM nasceu como um projecto editorial afecto à plataforma que publicava a National Lampoon, até certo ponto uma herdeira mas igualmente desvio da Mad magazine, e que tinha como objectivo a divulgação desse material europeu nos Estados Unidos. Todavia, até hoje a HM é vista como uma versão deslavada, necessariamente inferior, da Métal Hurlant: menos experimental, menos influente, mais atreita a géneros de pouca intensidade criativa (ficção científica e high fantasy “clássicas”) e um claríssimo propósito machista, com as suas capas de pinups. Não é que essa imagem seja totalmente injusta, mas o grande objectivo de Labarre neste volume é corrigir a exatidão histórica das relações entre as revistas e uma mediascape mais alargada e, de certa forma, matizar o juízo sobre a revista americana, a qual criou “uma forma inédita nos Estados Unidos de negociar a articulação entre o underground e a banda desenhada de grande público” (207). (Mais)
Como indica Gilles Poussin, autor de Métal Hurlant 1975-1987. La machine à rêver (2005), até à data o livro mais abrangente sobre a origem e desenvolvimento da publicação francesa, no seu prefácio, este livro é um acto equilibrado entre as disciplinas da sociologia e da história, e o autor não deixa de lançar mão de outros métodos – nomeadamente os da leitura analítica e estética em relação a alguns textos exemplares – para reforçar a sua perspectiva. Com efeito, Labarre constrói cuidadosamente uma paisagem editorial variegada, complexa e perfeitamente integrada, com uma atenção para com aspectos económicos, contratuais, sociais e culturais, na qual a Heavy Metal, não tanto “se destaca”, mas ganha um papel preponderante. Como o autor explica, “A história das origens da revista permitem salientar o vaivém durante várias décadas, as alianças pessoais, as mudanças de formatos ou de géneros, que explicam sem sombra de dúvida porque é que a Métal Hurlant, mais do que qualquer outra banda desenhada francófona, teve sucesso nesta passagem para os Estados Unidos, quando tantos outros editores haviam tentado antes e haveriam de tentar depois” (53-54).


Aliás, pensamos mesmo que o grande contributo de Labarre com este volume se refere à história, ainda largamente por fazer, do “trânsito” cultural, seja por influências, traduções, circulação, etc., entre os vários pólos de produção de banda desenhada mundial. A verdade é que a banda desenhada, como um todo, ainda sofre de algumas deficiências discursivas, em parte devido ao facto inegável de que em comparação com outras produções culturais, da música ao cinema, passando pela literatura, dança e as artes visuais, cada qual com os seus jogos de cintura, ela tem-se desenvolvido maioritariamente de forma isolada nas suas tradições nacionais. Do ponto de vista português, sabemos que isso não é bem assim, já que todas as gerações de leitores e criadores do nosso país sempre estiveram expostas à banda desenhada de outros países (veja-se a influência francesa e alemã sobre Bordalo, a espanhola e inglesa na geração de 1940 e 1950, e a global nas novas gerações), e é precisamente essa rede que se debuxa neste livro, em relação ao trânsito Estados Unidos-França, ou o seu contrário, já que a própria Métal Hurlant, afinal, recebeu “um feixe de influências”, marcando “uma convergência histórica entre a banda desenhada francófona e a banda desenhada americana dos meados dos anos 1970” (49).

Organizado o volume de uma forma cronológica, cada capítulo é porém concentrado num número de questões que são muito bem apresentadas, e suportadas igualmente por um conjunto de instrumentos esclarecedores, sejam exemplos directos da arte, gráficos, ou outros complementos. A leitura do correio dos leitores e entrevistas com as pessoas envolvidas nos projectos (a tradução, a compra dos direitos, a direcção editorial, etc.) reforça essa dimensionalidade.

Se a Heavy Metal começou com efeito como uma revista que traduzia material francês (primeiro da MH, e com alguma diversidade surpreendente, depois da Pilote, etc.), contribuindo para essa “entrada” (que poderá não ter sido tão feliz como o seria mais tarde, já pelo serviço do movimento das “graphic novels”), a verdade é que também abriria as portas para um bom número de autores norte-americanos, alguns dos quais com experiência, mas outros novos e que conquistariam maior fama mais tarde, como é o caso de Bem Katchor, Howard Cruse, Matt Howarth, Peter Kuper, Seth Tobocman e até Chris Ware. Afinal, não era apenas de mulheres com protuberâncias mamilares hiperbólicas e espadas flamejantes que as suas páginas eram ocupadas... E há mesmo alguns trabalhos mais experimentais, como a série The Bus, de Paul Kirchner, recentemente recompilada e republicada (veremos agora se a tão badalada nova direcção editorial de Grant Morrison significa alguma inflexão, se bem que até ao momento em que escrevemos estas linhas, não nos pareça). Por outro lado, as comparações com outros projectos tais como a subsidiária Epic, associada à Marvel, a Raw, de Spiegelman e Mouly, ou até as publicações francesas Ere CompriméeFantastik1984 e a versão holandesa desta última, mesmo compreendendo que todas tinham “alvos diferentes”, demonstrará que a Heavy Metal não apenas não estava sozinha como contribuía sobremaneira para uma tendência de transformações internas do mercado e da oferta nos Estados Unidos, numa “lógica de reforço mútuo mais do que de concorrência” (192). Com efeito, a originalidade da revista estaria não em apresentar o material francófono traduzido “como importações, como elementos estrangeiros”, “destinados a serem absorvidos na cultura dominante”, do que “oferecer uma alternativa a esta mesma dominante” (94). A compreensão de que Charles Burns, por exemplo, estava a criar trabalhos distintos para a HM e a Raw cria dificuldades e querer ver territórios estanques e separados, e a compreender estes trânsitos. Mais, menções às “traduções” da MH alemãs, a influência que teria na fundação da britânica 2000AD, o filme de 1981, a emergência do direct market, etc., estende o campo de discussão a partir da revista de forma sustentada e muitas vezes brilhante.

O autor enfrenta todos os problemas da revista de modo bem directo – o sexismo das representações, o desequilíbrio da qualidade gráfica e narrativa das peças, o declínio das vendas face a determinados momentos, a incapacidade de manter o rumo editorial, etc. - mas apresenta essas mesmas facetas de uma maneira estruturada na história. Não é portanto uma desculpa, uma justificação, mas apenas um convite a ultrapassar uma espécie de barreira à aproximação e redescobrir os aspectos positivos. Enfim, o típico ditado de não deitar fora o bebé com a água do banho... Antes uma forma de compreender a “bricolage estética” (86) da revista.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro, assim como ao autor, pelo apoio na comunicação e a entrevista. 

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