24 de junho de 2017

Aventuras na Ilha do Tesouro. Pedro Cobiaco (Kingpin)

Mais do que uma convergência, ou acumulação de referências, este livro maior de Pedro Cobiaco assinala uma possibilidade de cruzamentos frutíferos entre o que pareceria, até há uns anos, linhas de desenvolvimento temático, formas de pesquisa formal e conteúdos emotivos e conceptuais distintos, ou até mesmo incompatíveis. Mas uma das qualidades da contemporaneidade tem precisamente a ver com uma ultrapassagem de fronteiras que, até esse momento, pareciam seguras, sólidas e bem delineadas. Após a sua travessia, notam-se como sendo tão naturais, tão necessárias na obra, que o seu questionamento se dissipa de imediato na sua leitura. (Mais)

Aventuras da Ilha do Tesouro parecerá, na sua superfície, algo de leve, disseminado, inócuo. Como uma delicada película de gasolina boiando sobre água, deixando apenas uns efeitos de arco-íris, mas deslizando de tal forma que possui uma velocidade diferente da corrente. Todavia, a toxicidade está ali e o mergulho que se faz esconde os perigos, desvendados sempre tarde demais.

Em termos de imaginário, Aventuras associa-se a cruzamentos entre uma cultura urbana, jovem, com sinais externos de sub-culturas específicas e vários tipos de fantasia, recordando algumas das séries-bandeira da Cartoon Network, por exemplo. Os (personagens que parecem ser os) protagonistas encontram-se numa floresta/praia encantada em busca de uma abelha e a cada novo passo embrenham-se em paisagens mais mágicas que a anterior. A pequena “comunidade de jovens marginais” que estrutura a cultura dos protagonistas poderia recordar alguns contornos da dos Meninos Perdidos de Peter Pan, e com essa obra da literatura infanto-juvenil também partilha bastos elementos. Naturalmente que há uma maior maturidade tópica e de representação do trabalho de Cobiaco, incluindo questões sobre a sexualidade e os papéis identitários (já presentes na obra de Barrie, naturalmente, mas tornados mais explícitos na pós-modernidade), lançando as personagens numa maior ambivalência e problematização de papéis expectáveis em relação à distribuição mais clássica entre sexo e funções actanciais.

A “história” ou “intriga” total não é linear nem clara. Cada capítulo funciona quase como uma unidade de acções episódicas que se compreendem somente na sua movimentação, mas não na sua coordenação. De certa forma, podiam ler-se os capítulos como relatos distintos, até de géneros diferentes, desde o conto tradicional e mágico ao autobiográfico metafórico, do observacional realista ao fantasioso. Em parte, isso espelha a sua produção original, publicando-se por partes online. Porém, não se trata essa “descoordenação” de uma “falha” estrutural, ou outro juízo similar. Há partes mesmo que parecem remeter a possibilidades meta-textuais, em que uma das personagens assume um papel que poderia ser chamado de “pai”, “autor”, “demiurgo”, “criador” e que não apenas cria páginas de banda desenhada como abre espaço à invasão de referências, a saber, às figuras de Corto Maltese e Rasputin e os instrumentos expressivos da tinta-da-China de Pratt. Essa brecha servirá, portanto, ou talvez, a uma possibilidade de ler a própria narrativa como fruto de um desdobramento interno do próprio acto de criação da banda desenhada, reforçando o classicismo da ideia de “aventura” e traduzindo metaforicamente a “Ilha do Tesouro” (que, de certa forma, também se poderia ler como eco intertextual de Stevenson) na própria textualidade da banda desenhada. Mas à medida que atravessamos cada um desses capítulos, novas dimensões ou camadas são reveladas que complicam o lugar dos capítulos anteriores: serão algumas partes histórias contadas por personagens das outras? Serão apenas momentos distintos de uma cronologia desarrumada? Alguns deles terão contornos oníricos, e paralelos, mostrando alternativas de desenvolvimento que depois não se verificam como reais? Qual a relação entre a faixa do que parece ser o avatar do narrador externo e aquela da história do Capitão? Uma ficção dentro de uma “realidade”? Duas ficções? Uma metaforização ou poetização da vida de uma das personagens?

Na verdade, acreditamos que as relações entre todas estas linhas narrativas, cuja própria consubstanciação se misturará com a sua interpretação – isto é, o próprio facto de as identificarmos, nomearmos e diferenciarmos ou coordenarmos entre si é fruto não somente de uma leitura “passiva” (nunca o sendo) mas de escolhas específicas –, é da ordem do compossível. Quer dizer, o Capitão tanto se sacrificou na “Revolução dos Cabeças-de-Abóbora” como passou para um mundo irreal, ou tanto envelheceu e manteve uma vida banal, como tudo não passa de uma projecção fantasista de um filho saudoso.

E se podemos escolher este tal filho saudoso como o grande nexo de toda a estrutura – o narrador externo?, o demiurgo destes universos? “mero” avatar do autor? – ele afinal está sempre coberto de uma máscara que tanto tem de suave (uma superfície aparentemente lisa, de ecrã) como de mutável (as paisagens que vai mostrando, como se espelhasse estados de alma). Mais uma vez, a questão da identidade vem à tona, tal qual se expressa nas transformações sucessivas do corpo do Capitão.

Cobiaco é um destes autores cuja assinatura gráfica se pauta por uma fluidez e descontração da figuração que marca tantos nomes contemporâneos, sem os subsumir a um estilo comum ou epigonismos. Tem isto a ver, de certa forma, com aquilo a que chamámos várias vezes de “desenho caligráfico”, a propósito de Joann Sfar e outros autores, mesmo que haja aqui pequenas diferenciações. A questão está no equilíbrio entre o sólido desenho, as estratégias de representação que estão em potência nas linhas de Cobiaco, mas a escolha de um lançamento muito próximo do esboço. Com um trabalho de composição sóbrio e legível e, acima de tudo, uma paleta de cores soberba, múltipla, veraneante e contagiante invadindo todo o projecto (repare-se na transformação do logo da editora portuguesa), Aventuras torna-se um clássico instantâneo.

Graças à presença do autor, e suas publicações, no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, tivemos acesso a uma outra publicação sua, Cais, com Janaína de Luna, com a qual Aventuras partilha uma certa qualidade musical-textual. Não é apenas a divisão dos capítulos se chamarem “canções”, mas outras pequenas estruturações e estratégias internas a eles. E até o uso da própria linguagem. Apesar de existirem muitos diálogos, consequentes e activados nas acções visíveis, neste novo livro, se bem que também mais páginas “silenciosas” (de resto, estamos a falar de um livro dez vezes maior), há ainda assim um enquadramento feito por uma voz narradora externa e elevada da acção principal. Poderemos considerá-la como partindo do jovem da máscara? Projecto semi-autobiográfico do autor?


Se o título parece apontar para uma composição explicada logo à partida, na verdade o grau de experimentação e ambivalência revelar-se-á bem complexo e que obrigará o leitor a fazer uma leitura pausada, cuidada e possivelmente obrigada a repetir-se. Não para descobrir a solução ao enigma, tornando tudo unilateral e solucionado, mas para reintensificar as passagens várias que se operam nestas páginas.  
Nota final: imagens misturadas entre fotografadas e da internet. 

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