Este livro segue uma estrutura clássica
de hipodiegese, isto é, de existirem histórias dentro de uma outra
história, de maneira que tanto poderíamos encarar Coisas de
adornar paredes como a colecção dos oito breves contos que
ocupam a parte de leão do volume, e procuremos entender como é que
se coordenam tematicamente entre si, como antes compreender o esforço
de Chico, protagonista na narrativa enquadradora, em os construir, e
ver cada um deles como expressão e peça do pretende reflectir sobre
ele mesmo. Uma vez que surge a oportunidade de ver uma discussão
metatextual sobre os “contos” pelas personagens, o seu autor,
Chico, e seus interlocutores, Ana e Caio, os sentidos previstos ou
potenciais dos primeiros acabam por ser tornar tão explícitos como
ambíguos no nível superior. (Mais)
Os contos em si centram-se sempre em
histórias cujo eixo se encontra num ou vários objectos que “adornam
paredes”: uma estatueta da Virgem Maria, uma colecção de retratos
fotográficos emoldurados antigos, um calendário de pin-up com
algumas décadas, uma cópia barata em revelo da Última ceia
de Leonardo, azulejos industriais. Estes objectos consubstanciam-se
enquanto obsessão de desejo, pistas de identidade e memória,
interlocutores quase-fantásticos, ou até nexos de passagem a uma
outra realidade, quer do ponto de vista existencial quer
literalmente. Numa outra ocasião, havíamos citado o conceito de
Sherry Turkle dos “objectos evocativos”, os quais como que
providenciam um espaço mental ou ponto de encontro entre a emoção
e o intelecto, e com efeito poderíamos ler os efeitos destes
objectos nas personagens respectivas como envolvendo-os de uma forma
holística.
Para mais, tendo em conta que Chico e
os colegas trabalham num “cemitério de azulejos” - uma empresa
que recupera azulejos ornamentais, industriais ou artesanais, e os
revende - , não será de estranhar que estes mesmos objectos se
tornem o supra-símbolo de toda a empreitada. Não apenas enquanto
objectos passíveis de individualidade e singularidade, como de
coordenação e encaixe com outros em padrões maiores, um certo grau
de manipulação, e espelhamento das funções dos personagens.
A esmagadora maioria destes contos
partilha outras características, algumas das quais discutidas mesmo
pelo seu autor, Chico, e os amigos a quem os mostra: um permanente
sentimento de culpa e transcendência do pecado, herança da matriz
Católica, uma certa negatividade ou incompreensão nas relações
amorosas, um isolamento e alienação progressivos, e até, na
maioria dos casos, uma associação ao género do crime, assinalando
dimensões trágicas. Mas esta matéria é depois contrastada de
forma quase radical com a narrativa enquadradora (que, na verdade,
apenas começa “depois” do primeiro conto, criando uma ilusão e
uma navegação da leitura curiosa), que é feita quase tão-somente
de cenas de diálogos, sem acção, de um quotidiano o mais trivial
possível. Mesmo que haja uma progressiva introdução de uma pequena
“crise” - não apenas o próprio processo da escrita, das
dificuldades editoriais, etc., mas uma parte amorosa -, ela nunca
atinge os mesmos paroxismos que os contos internos.
Se existe uma manutenção e coerência
estilística da assinatura de José Aguiar, com as suas figuras
minimais e um uso de aguadas de grande competência, existem
igualmente alguns contrastes entre os “contos” e o “quadro”,
nomeadamente a nível da pormenorização e das estratégias
compositivas, bem mais variadas e livres nas histórias de Chico.
Tendo em conta que tudo nos leva a crer que Chico é um autor
literário, a “tradução visual” a que temos acesso não é
diegética, pertencendo antes a um nível ainda superior à própria
narrativa de Chico, associando-a a um plano hipotético, externo à
narrativa, e que pertence ao mega-narrador da banda desenhada.
Livro escorreito e simples, então, é
nessas negociações de níveis que se torna uma leitura menos comum.
Nota final: agradecimentos à editora,
pela oferta do livro.
Inusitadamente, no meu caso, já que são conhecidos os meus gostos normalmente bem mais "comerciais", achei um dos melhores lançamentos do ano passado.
ResponderEliminarPena só duas coisas: 1) nota-se uma total falta de trabalho editorial, no sentido de que a editora poderia ter feito pequenas adaptações do texto, trocando p.ex. um termo brasileiro pouco conhecido, por outro que os portugueses estejam habituados a ouvir, ou colocando aqui ou ali uma nota explicativa; ou neste caso específico, de uma história que no fundo se poderia passar em muitos outros lugares que não o Brasil, adaptando o texto pura e simplesmente para português de Portugal. E 2) o formato, talvez um pouco pequeno demais (embora aqui a opção seja mais compreensível, dada a pequena tiragem e os custos que isso acarreta).
Olá, sou autor brasileiro e gostaria de lhe enviar minha última publicação.
ResponderEliminarCaso queira ver um preview http://fabioq.com/home/?p=330
Se for de teu interesse favor me escrever em fabioquill@gmail.com
Com os melhores comprimentos