A ideia de
que toda uma sociedade sacrifique parte da sua felicidade momentânea
e sempre imperfeita em nome de uma fortuna consequente, e por isso
sempre “melhor”, não é de todo nova. Ainda que o famoso conto
de Shirley Jackson, “The Lottery”, de 1946, se centre mais na
ideia do bode expiatório, conta-se aí igualmente na ideia do preço,
que se encontra no coração deste livro. Mas o bode expiatório
convidaria à ideia de um pecado original e de uma forma de o expiar.
Em Bruxas, explora-se antes a entrega total a um crime em nome
de um ganho egoísta.
Como todo
e qualquer bom projecto, e que permita com efeito leituras
múltiplas a partir dos seus elementos (não basta dizer, contra a
ideia popular, que qualquer obra de arte tem sentidos múltiplos, é
preciso identificá-los e explicá-los), Bruxas pode ser lido,
em vez de uma simples e empolgante novela em torno de uma família e
o seu confronto com criaturas primais, como um livro sobre desejos,
promessas e a capacidade dos seres humanos viverem com as suas
fantasias mais negras. Mas também coloca o amor filial, a
paternidade, a superação de obstáculos pessoais, na linha da
frente. (Mais)
A banda
desenhada norte-americana parece ter estado a revitalizar o género
do horror nos últimos anos, como já havíamos discutido, fazendo-o
afastar-se de muitas das estratégias formulaicas que haviam sido
herdadas desde a década de 1950. Colocando de lado as narrativas que
envolvem “monstros” de uma estirpe ou outra (de Hellboy a
Walking Dead, as quais as mais das vezes são antes sobre o
desenvolvimento emocional dos seus protagonistas do que sobre os
“mistérios” retratados), estamos a pensar em títulos tanto
alternativos, de Black Hole de Charles Burns à obra de Josh
Simmons, como em séries do mainstream tais como Outcast
(também publicado em português
há recente pela G. Floy), Harrow County (idem),
Black Magick, Locke & Key, The Clean Room,
The Beauty, Survivor's Club, Winnebago Graveyard,
The Black Monday Murders, House of Penance, Providence,
e American
Vampire,
do próprio Snyder, que recolocam os elementos do género do
horror em contextos completamente distintos (The Black Monday
Murders é uma análise do capitalismo selvagem por via de
rituais satânicos, Black Magick é uma série de investigação
policial com traços de Wicca) para atingir nova consequências e
alcances.
Bruxas
mistura ao horror um outro tipo de enquadramento genérico: o da
familiar história da adolescente que muda de cidade para facilitar
um novo começo na sua vida, e tudo o que isso implica em termos de
dinâmicas sociais, a herança do passado, a nova maneira de
distribuir os hobbies. Sailor Rooks vem de uma outra cidade onde algo
sucedeu de terrível: vítima de bullying,
a pessoa que a atormentava acaba por ser consumida por forças
misteriosas na floresta. Isto traz a Sailor uma patina de rapariga
perigosa e misteriosa, que tanto lhe traz elementos de atracção
como de repulsa juntos aos demais colegas na escola nova. Mas mesmo
fazendo esta descrição, é preciso notar como isso não é assim
tão explorado pelos autores, fora breves cenas. O foco, no fundo, é
mais conduzido pelo pai de Sailor, Charles Rooks, autor de uma série
de livros de banda desenhada para leitores mais jovens. Na verdade,
alguns dos momentos de maior cumplicidade entre pai e filha, e as
considerações do pai sobre o que isso significa são os mais fortes
na escrita de Snyder, que incute nos seus diálogos sempre uma patina
de impressões mais profundas sobre as percepções do mundo pela
parte das suas personagens, mesmo nos seus trabalhos mais mainstream
(Batman, acima de
tudo).
Muitas
das personagens não são particularmente desenvolvidas, ou apenas
cumprem o estritamente necessário para cumprir a função que lhes
foi indicada. As personagens sacrificadas, por exemplo, nunca ganham
um peso mais articulado no grande planos dos acontecimentos, e talvez
a morte mais gratuita e emocionalmente menos resolvida seja a de
Regie, o amigo de Charles. Os autores tentam jogar com uma
estrutura temporal não-linear para desembrulhar uma trama maior,
mais complexa e que se imaginaria com maior sentido, mas nem sempre
isso funciona a favor da fortuna diegética do livro. Depois de um
breve prólogo num passado remoto que apenas o desfecho explicará e
integrará, começamos num momento “presente” e depois temos
acesso a episódios pretéritos da perspectiva de Sailor (que não é
tida como certa por outras personagens), e depois do pai dela, e a
partir daí temos uma estrutura que cria menos elos cronológicos e
explicativos entre as cenas distintas do que pontes conceptuais e
emocionais entre cada uma dessas partes (como o discurso do pai
quando do lançamento do livro e que ilumina a relação com a
filha). Há mesmo uma espécie de “episódio extra” que parece
escapar das malhas daquela unidade familiar dos Rooks, mas serve
somente para dar uma ideia de um universo que poderia continuar a
estender-se indefinidamente. Apesar da história ser auto-conclusiva,
recuperar a cena do início e explicar o tal “preço” e
“sacrifício”, acaba por não ser muito eficiente no seu choque
emocional e não resolver todas as linhas (deixadas) abertas.
Comparações
com o filme de Robert Eggers, The VVitch, serão quase
inevitáveis, não apenas pela proximidade do seu lançamento
(começando a circular comercialmente no início de 2016, pouco
depois de ter sido lançado o trade paperback desta série nos
Estados Unidos), e do tema, mas pelo desejo de querer focar-se menos
em aspectos psicológicos das figuras principais – as “bruxas”,
o que lhes daria um tratamento passível da proximidade humana – e
mais na bruta e indomável natureza primal das forças que as animam,
mas igualmente por algumas das facetas que exploram a dimensão
feminina, também ela reduzida aqui a uma temível força telúrica e
negra. Não será por acaso que o título utiliza um “y”, de
certa forma aparentado com formas alternativas, quer afectas ao
feminismo de segunda geração quer ao recrudescimento/renascimento
Wicca. Todavia, suspendamos as interpretações feministas de
Wytches/Bruxas, que nos convidaria a desdobramentos mais
problemáticos, que não têm aqui e agora lugar.
Quando
falámos de Superman: American Alien (num momento em que
tínhamos lido os dois ou três primeiros capítulos desta série),
referimo-nos ao trabalho de Jock como constituído de “linhas
nervosas e excedentárias”, o que se mantém ou também verifica em
Bruxas, se bem que maior grau de paroxismo. O trabalho de cor
de Matt Hollingsworth, como e pode verificar nas páginas finais do
volume, utiliza uma técnica de entrosamento por transparências a
arte da linha a preto original com interferências de cores em
aguarela (manchas, gotas, padrões irregulares, etc.). Se existem
momentos em que essa abordagem intensifica as imagens (como o spread
que mostramos em que Sailor acende um fósforo nas trevas
assustadoras do covil), na esmagadora maioria dos casos essas
intervenções são apenas excesso e distração, bem diferente do
trabalho equilibrado e competentíssimo do colorista. Recorda um
pouco um realizador de cinema ou um produtor de música que fica tão
empolgado com o uso de uma determinada técnica de movimento de
câmara (Michael Bay e a câmara que roda), efeito de iluminação
(J.J. Abrams e os flares) ou
efeito/som dramático, que o usa ao desbarato, de forma totalmente
independente do que a cena em questão pede ou até do seu papel na
economia geral da narrativa e do significado. Aliado ao desenho de
Jock, o qual, sendo errático, expressivo e angular, prefere
abandonar-se aqui em composições e figurações dramáticas mas nem
sempre consistentes, estamos perante um livro algo “flamejante”....
Os
editores optaram por um formato ligeiramente maior do que o usual
para séries de comic books, permitindo que a arte se estenda
um pouco mais em área, o que parece porém realçar esse excesso.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.
Gosto muito do Blog obrigado por partilhar o amor que tem pelos comic e deve ser como o meu :)
ResponderEliminarQuando tiver tempo por dar uma vista de olhos neste projecto?
https://spark.adobe.com/page/OgqNUkJ3J49kP/
Muito obrigado