30 de outubro de 2017

Berlim. Cidade sem sombras. Tiago Baptista (Chili Com Carne)

Fruto da estada de Tiago Baptista na cidade de Berlim durante três meses de Inverno, numa residência artística, este livro reúne toda uma série de pequenas histórias que mais devem ser entendidas como impressões do que propriamente como narrativas. Não se pode dizer que haja aqui uma assunção de uma estrutura coerente ou subsumida à explicitação, como ocorre em travelogues à la Guy Deslile ou outros, por exemplo. Tampouco se poderá ler Berlim como se se tratasse de um registo diarístico, já que a maioria das peças dão a ideia de uma certa distância temporal, après le fait, sobre essa estada. Aliás, há muitos momentos em que a voz do autor torna patente a dúvida, o esquecimento, a falta de certeza. Isso não fragiliza o acto de memória do livro, bem pelo contrário torna-o um acto mais humano. (Mais) 

O título é, naturalmente, um recurso estilístico que pretende instalar uma ideia complexa de antítese, metáforas e paradoxos. Estabelecer qualquer relação directa com o projecto de ficção historiográfica de Jason Lutes, Berlin, não se revelaria particularmente profícuo, uma vez que as afinidades estilísticas entre esse autor e Tiago Baptista não são significativas; todavia, recordemos que, até à data, os sub-títulos de cada um dos volumes de Lutes descrevem como que a matéria de que aquela cidade (ao tempo de Weimar) era constituída: “cidade de pedras”, “cidade do fumo” e “cidade da luz”. Essas matérias eram depois topicalizadas e empregues durante a narrativa, e que se tematizavam conforme os “estádios” que o autor explora nas transformações política-sociais no início da década de 1930. Poder-se-ia, então, aproveitar o balanço desse outro acto criativo para interrogar em que medida as “sombras” surgem tratadas de formas similares no projecto de Baptista.

Em vários momentos, o autor arregimenta o tema da luz para estruturar os pequenos nódulos narrativos que apresenta. Poderá falar do poderoso reflexo da luz lunar sobre o manto de neve, a cor do lago congelado em pleno inverno e a associação que faz ao cimento, tecendo depois ligações aos vários edifícios que vai mencionando e compõem a sua própria cartografia da cidade (e a que o Muro, que não precisa de mais qualificativos, não é alheio), e, na peça “Sem sombras”, a própria ausência de luz que provocaria o nítido contorno dos objectos projectados. Sem sombras significa também sem luz, ou então aponta à existência de uma contínua, ininterrupta, pesada, inexorável sombra.

Essa sombra também se pode revestir com os papéis da História e do Poder Político. É inevitável, ainda, pensar-se e caminhar-se na capital alemã sem se experienciar a grande ferida da Europa no século XX, e percebemos os pequenos bailes que o autor faz em torno desse imenso episódio. Por outro lado, contemporaneamente, seja essa imagem forçada, exagerada ou pouco matizada, a percepção da Alemanha como o coração de um projecto de uma Europa federal centralizada não é fácil de evitar. Tiago Baptista nunca cria discursos directamente sobre esses temas, e depois procurando uma posição hipotética numa economia de posições. Constata os factos da sua experiência, seja ela atravessar uma paisagem coberta de neve e não saber ler as pegadas de coelhos, seja a escolha de um local para comer, ou seja mesmo uma espécie de desaparição no ponto de fuga de um caminho infinito ao longo do Muro de Berlim...

Conforme os projectos anteriores do autor, desde os seus primeiros fanzines, há aqui alguma flutuação estilística. Se se pensaria, com projectos tais como Imagem Viagem, a procura por uma certa homogeneidade, expectável numa certa domesticação propiciada pela produção de um objecto “livro”, Tiago Baptista recusa essa pensamento, deixando ainda em aberto as possibilidades de flutuações, contaminações e pesquisas diversas na prestação gráfica conforme as necessidades. A primeira parte, “Culturia”, que funciona como uma espécie de establishing shot das condições da permanência de Baptista na sua residência artística em Berlim, surge como uma espécie de câmara parada sobre um mesmo espaço, quase à la Here, de Richard McGuire, mas tão-somente apresentando os vários intervenientes daquele local, e com uma assinatura mais desprendida na figuração. Uma peça quase final, “Der Berliner Traum”, traduz um sonho com uma abordagem estilizada ao extremo, sem grandes preocupações de naturalismo, e que faz tanto recordar Amanda Baeza como aquela página de banda desenhada que Freud publicou em A interpretação dos sonhos(o que nos parece perfeitamente adequado). E “Herr Sellery”, se em todos os aspectos se apresenta como uma história realista, monta um episódio cómico-absurdo que acaba por ser uma espécie de programa do próprio acto criativo de Tiago Baptista, ou pelo menos do magma de dúvidas que o consomem.

A esmagadora maioria do livro, porém, apresenta aquela figuração realista, composta, com contornos grossos a negro e um interior mais diáfano, que dão às figuras, por vezes, o ar de vitral, e por vezes próxima da produção de pintura de Baptista, que se instalará numa certa recuperação do monumental, do histórico, do dramático e do simbólico próximo a outros autores (como Gonçalo Pena). No entanto, o autor lança-as numa grande variedade de estratégias de expressão e de composição. As intervenções de tinta salpicada, aguadas expressivas, aproveitamentos de decalques, o uso de tramas mecânicas, a irónica sobreposição de “postais” de um passado organizado e a desolação presente, possíveis raspagens, o emprego de colagens, o surgimento súbito de um desenho “cristalizado” de Catarina Domingues, a mistura entre desenhos a um grafite mais diáfano e tinta sólida, sublinham essa variedade, assim como a completa precisão com que experimenta vários modos de estruturar páginas, desde as sequências de spreads a grelhas inexoráveis, quer de vinhetas quadrangulares quer de cantos arredondados, ou prevendo várias formas de explorar a retórica das vinhetas. A escrita, à mão, talvez com caneta, dá uma certa ideia de caligrafia e correspondência pessoal a todo o tom narrativo, de missiva directa ao leitor.

Algumas das peças já haviam sido publicadas anteriormente, uma delas em Zona de Desconforto, fazendo parte precisamente da colecção em que este título agora se encontra, e regressando à ideia desta mesma série de livros de dar a ver uma certa ideia de trânsito mas desprendida totalmente das mais usuais linhas da “literatura de viagens” e muito menos associada ao “encómio do turismo”. O objectivo deste livro, afinal, não é conhecer a cidade de Berlim, nem tampouco compreender “as experiência de Tiago Baptista em Berlim”, mas antes compreender como é que essa experiência se abre a toda uma série de interrogações de identidade própria, alheia, global, cultural e política. Baptista não envereda jamais num discurso directamente panfletário, como dissemos, preferindo ou um certo grau de ambiguidade ou deixar que os não-ditos se instalem de modo suficiente a obrigar o leitor a instalar-se nos interstícios do que se assinala como silêncio, esquecimento, precariedade, miséria, e também consciência. São marcantes sobretudo os relatos de “Jenin” e “Maranda”, ambos mostrando locais em que o autor-protagonista come e vai ao encontro não somente da pessoa que ali trabalha (respectivamente, um palestiniano da Cisjordânia e um português de Tondela) como nesse diálogo compreende a distância da sua experiência com a dessas outras pessoas, assinalando não somente mecanismos de empatia como de auto-compreensão de um certo privilégio.


Ao contrário de livros que pretendem fechar um sentido e dar ao leitor uma sensação de equilíbrio humanista, em que uma suposta utopia de grande família seria possível, Baptista quer mostrar a aguda distância que separa cada ser humano, nos seus mundos específicos, assim como a rugosa textura do próprio mundo, ou do pouco mundo, que se consegue estabelecer como comum. Nesse sentido, quase se poderia depreender que a visão de Baptista se poderia estender de uma mesma forma sobre outra cidade, quem sabe sobre as próprias cidades portuguesas em que viveu ou vive. Mais uma vez se regressando à ideia de ser um livro capaz de demonstrar, com todos os seus defeitos, os defeitos da própria condição humana.  

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