Não
vivemos num país em que pululem em quantidade as tiras diárias de
banda desenhada de comentário social a reflectir, em tempo real,
essa mesma realidade social (nem tampouco temos em quantidade tiras
de banda desenhada, diárias ou outras, jornais suficientes, e outros
problemas, mas enfim). Por isso, o papel de Bartoon acaba por
ganhar um peso particularmente distintivo nessa paisagem, e até
mesmo uma certa responsabilidade. Luís Afonso, porém, tem vários
elementos que comanda, com aparente facilidade (aparente, pois o que
lhe subjaz é uma ética de atenção, inteligência e trabalho,
disfarçadas pela fortuna dos resultados), destacando-se as suas
armas gráficas e o “ouvido” para o diálogo, numa capacidade de
síntese e eficácia.
Aquilo que
nos surpreende, talvez, neste gesto de balanço, e que as guardas do
livro ajudam a explicitar, é a autêntica galeria imensa de
personagens, clientes, que passaram e ainda passam pelo Bartoon.
Algumas surgem tão-somente por uma razão mecânica provocada pelos
acontecimentos, sustentados ou breves (um Sim e um Não, um homem
pré-histórico gravador em Foz Côa, um empregado do FMI), ao passo
que outros são verdadeiros clientes habituais, e que servem de papel
generalizado do cidadão português, interessado em trocar uma ou
duas palavrinhas sobre o assunto, seja esse assunto as eleições em
curso, a decisão judicial, o cíclico “aperto ao cinto”, o novo
desastre ecológico, os acordos internacionais, os conflitos étnicos,
o calendário das festas, a controvérsia de ocasião, e até
questões de fé.
Esta não
é uma tira de continuidade, de um storyworld narrativo, de um
posicionamento empedernido para sempre. O próprio barman, tal como
muitas das outras personagens com papéis mais difusos, são menos
personagens propriamente ditas, do que cifras para ocupar o lugar do
assunto do momento.
Comparações
possíveis seriam aquelas com outras tiras de banda desenhada
regulares que criam uma tessitura narrativa um pouco mais apertada e,
a partir dela, criam efeitos de reflexão, mimese e crítica da
realidade correspondente, mormente na dimensão política.
Encontraremos sobretudo nos Estados Unidos as tradições mais
elaboradas e musculadas, que podem, todavia, tomar formas muito
díspares entre si. Em termos históricos, teríamos de recuar ao
século XIX e o dealbar do século seguinte, encontrando na obra de
Thomas Nast o seu expoente máximo, sobretudo no combate que ele fez
contra a corrupção de Tammany Hall, ou o Partido Democrático, na
governação de Nova Iorque (parte do pano de fundo de Gangues de
Nova Iorque). Mas mais próximos desta forma seriam Pogo,
de Walt Kelly, e Doonesbury, de Garry Trudeau, a primeira
através de uma ménagerie animal a formar metáforas claras,
a segunda criando comentários mais mordazes e directos em relação
à classe política contemporânea. E ambas criando uma complexa
novela das suas próprias personagens.
Em
Portugal temos uma história distinta, por razões óbvias. Por um
lado, pela dimensão da nossa mediasfera, a qual sempre foi sofrendo
vicissitudes de sobrevivência económica, apatia geral e iliteracia
do grande público, e uma certa desconsideração generalizada pelas
artes do cartoon (com raras mas inteligentíssimas excepções,
mesmo no circuito dos políticos, como foram os casos consabidos e
públicos de Mário Soares, Jorge Sampaio, Paulo Portas e Guilherme
de Oliveira Martins, um dos participantes nesta antologia,
apreciadores deste tipo de humor, mesmo quando visados). Por
outro, pelas pressões políticas das várias censuras (régias,
republicadas, do Estado Novo e, hodiernamente, do mais difuso “poder
decisório”). Nos pós-25 de Abril, multiplicaram-se as vozes mas
algumas delas já se vinham expressando de antes, não se podendo
falar propriamente de uma alteração total. Das circunstâncias e da
paisagem política, sim, mas da emergência de novas vozes, talvez
menos. Por isso encontraremos talvez em Augusto Cid (Cão Traste)
e Sam (Guarda Ricardo) os maiores cultores do território a que Luís
Afonso daria continuidade. Também se poderia falar d'O Abutre,
de Pedro Massano, mas a circulação desta última obra terá sido, a
nosso ver, bem mais limitada e não se ancoraria no imaginário
popular da mesma maneira que aqueles outros ícones.
Bartoon
ocuparia o espaço deixado pelo Guarda Ricardo no diário
Público, e outra afinidade possível com essa tira é a
abordagem minimalista do desenho, instrumento necessário se se
deseja este ritmo implacável e imperdoável. Todavia, a assinatura
gráfica de Afonso é diferente da de Sam, este último lançando
tão-somente uma fina linha comprida, como se se tratasse de linhas
diáfanas de pesca, Afonso criando uma mais sólida linha, quase
escultórica, tanto devedora de uma linha clara como de um design
altamente estilizado e iconografia. Existem muitos outros autores do
humor constrito e de uma fechada galeria de personagem que se
aproximariam, de Max Cannon a Álvaro (Santos), mas o trabalho de
Luís Afonso entrosa-se com o tal tecido de todos os dias, tornando-o
um corpo mais flexível e preparado para receber dimensões
não-planeadas de início. Há algo de zen no seu trabalho, sobretudo
se nos recordarmos daquela máxima sobre o bambu, que é forte o
suficiente para de vergar antes de quebrar.
Luís
Afonso é um criador de situações que apelam menos ao confronto do
que ao encontro com as fragilidades e contradições de todos os
sentimentos associados ao tecido político hodierno: seja os da
vitória e da derrota, a desconfiança ou a esperança, a soberba ou
a humildade, a petulância ou a vitimização, não há um sector em
relação ao qual o barman não descubra a falha estrutural, a
pequena fenda que promete abrir-se e expandir se não for detectada e
enfrentada. O seu objectivo não é propriamente tomar um
posicionamento claro, nem exibir uma moralidade superior, sequer
invectivar e muito menos denegrir. É apenas apontar com uma pergunta
e esperar que o leitor pense sobre o assunto. Tomemos um exemplo,
quiçá demasiado contrastivo, radical e mal colocado. Vejam-se esta
tira sobre as touradas, ainda tristemente continuadas em Portugal, e
o cartoon de Charb. Sim, sabemos que o papel e espaço do
Público na esfera pública portuguesa (não é de propósito)
não é o mesmo que os do Charlie Hedbo, e que toda a tradição
da caricatura e cartoon político francês é bem distinta da
portuguesa. Não esperamos que Afonso seja tão virulento quanto
Charb (nem tampouco quanto Cid ou António Jorge Gonçalves). Não é
esse o seu fito. É colocar a pergunta sob a forma de uma tira.
De certa
forma, podemos dizer que o barman é, para além de um claríssimo
autoretrato do próprio autor, a um só tempo físico e moral, um
herdeiro directo da figura-mor do imaginário português, o Zé
Povinho. Não no seu fenótipo, talvez, ainda que também nessa
dimensão possa ser visto como representante “mediano”, mas na
forma como na esmagadora maioria das suas intervenções é menos
participante directo ou agente das acções do que seu comentador
lateral. Talvez não seja tão “engajado” como se costuma dizer,
do que outros possíveis exemplos, mas também não é a posta de
pescada atirada pelo taxista a ver se morde. É uma espécie de
constatação de um facto, uma estalada zen, para acordar.
Esta é
uma colectânea talvez mais eficaz do que uma tentativa de “obras
completas”, e sem dúvida mais acerta no que diz respeito ao
comércio e circulação. Uma decisão acertada para preservar e
celebrar a glória da tira. E ainda conta com uma tira inédita e
“secreta”, que foi presente de aniversário ao cantor Sérgio
Godinho... Fica apenas a infelicidade de que as tiras do corpo
principal não sejam datadas, o que ajudaria à sua navegação e
compreensão se se contextualizasse precisamente (ainda que haja comentários, sobretudo de quem trabalhou com responsabilidade sobre a tira no jornal, como Jorge Silva e Henrique Cayatte, que construam parte dessa história), e que a qualidade
da reprodução não seja homogénea, se bem que acreditamos que isso
se deva à variedade da preservação dos originais e até mesmo a
sua factura, tendo havido mudanças profundas nas últimas dias
décadas e meia na forma de criar, armazenar, enviar, reproduzir e
publicar imagens. Mas sendo este, sem dúvida, apenas o primeiro
gesto de muitos outros que se seguirão associadas a esta obra, é de
levantar o copo.
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