18 de julho de 2018

Lá fora com os fofinhos. Mariana Pita (Chili Com Carne/O Panda Gordo)


Na lógica da colecção da Mercantologia (aqui com apoio d'O Panda Gordo), como havíamos aventado a propósito de Bruma, este volume reúne toda uma série de materiais que a autora havia publicado em formatos variados, de fanzines individuais a publicações antológicas e outros objectos, transformando essa oferta num conjunto coerente e coeso que poderá iluminar a assinatura de Mariana Pita, não apenas no que diz respeito à sua abordagem gráfica mas às suas preocupações de representação e temáticas. (Mais) 
Num primeiro plano, e até devida à própria estratégia do título, parecerá estarmos perante um universo de variadas criaturas “fofinhas”, queridas, inócuas, que nos seduzirão de imediato pela sua natureza delicodoce e linda e infantil. Mas rapidamente nos aperceberemos estar mais próximos de usos tão distintos quanto aqueles de Jolies Ténèbres ou Madoka Machina, isto é, em que uma superfície cute e estilizada serve antes para explorar territórios mais incómodos, angustiantes ou mesmo tenebrosos. No caso do livro francófono, tínhamos um lado negro da fantasia; no do autor português André Pereira, uma plataforma de análise das ansiedades do labor pós-proletário. Mariana Pita agrega trechos que poderão ser devedores, possivelmente, da autobiografia, dos apontamentos diários de trabalhos e funções sociais, das relações humanas (casais, familiares, de amizade, etc.) para criar estes pequenos mundos distintos.

Parece-nos que a força visual da autora reside da sua capacidade de criar personagens, como se pode ver de algum do seu merchandising, que costuma vender em feiras, certames ou em conjunto com a música e animação que produz (como “Moxila”, apresentando temas de “low-folk” [sou informado, assinalando-se a distância da idade e da capacidade de seguir estas tendências, que se trata de "twee pop"], os quais se compreendem como se associam às bandas desenhadas; ver aqui e aqui). Mas se essas criaturas nos parecem queridas, “fofinhas”, afinal de contas, a autora não parece ter qualquer interesse em nos ofertar universos narrativos seguros e inócuos, e antes a revelar as fragilidades dessas mesmas fantasias, ou até a sua incapacidade em responder ao desconsolo da vida mortal.

A primeira história, sem palavras, mostra uma menina no recreio de uma escola (primária, jardim de infância?), que se lança numa fuga com a avó para um dia de vários prazeres, quase todos sensoriais – comer um gelado, um bolo com creme, ir à praia, andar à chuva e, sem qualquer contradição, ser baptizada na igreja – para finalmente ser devolvida à autoridade maternal. Poderíamos ver aí uma espécie de signo metafórico a comandar toda esta produção? A de pequenas fantasias infantis que servem de distância de responsabilidades adultas, informadas por recordações, por sua vez, provindas de uma qualquer figura familiar protectora? Quase todas as histórias envolvem uma relação de amor entre os protagonistas e os seus coadjuvantes, mesmo que sejam amores passageiros ou rápidos, com outros serem humanos, cãezinhos ou entre criaturas fantásticas.

Os diálogos, em geral, parecem ser apontamentos escutados de conversas reais, triviais, sem grande densidade cultural aparente, mas que encerram toda uma série de tensões, que poderiam sem grande esforço ser interpretadas de um ponto de vista de poderes sociais. O desemprego ou o trabalho “aborrecido” e sem sentido é um tema, as empatias e rivalidades outro, a solidão sem dúvida que é um baixo contínuo destas peças. Nesse aspecto, há alguma finidade com a obra de Simon Hanselmann, em que o aspecto visual de fantasia é apenas uma forma de nos distanciar e amparar os temas mais pesados, se bem que Pita não mergulhe de cabeça na anarquia emocional e auto-destrutiva desse autor... Mas se lermos algumas das histórias com atenção, flutua lá perto...


Lá fora com os fofinhos tem um total de 12 histórias, tudo ultrapassando as 100 páginas, num volume a capa dura. Algumas das histórias são inéditas. Algumas em português, outras em inglês, mas sempre com a tradução respectiva. Uma vez que alguns dos trabalhos foram publicados em formatos distintos, ou com esquemas cromáticos diferentes (a autora varia os materiais riscadores, de lápis de cor a grafite e marcadores, pintura digital e linha a preto, fotografia de objectos em papel, etc.), este objecto respeita essa variabilidade, pelo que o folheamento do livro revelará sempre flutuações materiais que, em vez de lançarem a confusão, são pelo contrário iluminadoras das características comuns da tal coerência do corpo do trabalho.

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