O projecto
de maior fôlego, até à data, de André Pereira, chega ao fim. A
sua leitura
não foi
propriamente suave, uma vez que o autor apresentou uma narrativa não
apenas densa na sua tessitura diegética como estruturalmente
complexa, com laivos de experimentalismo na composição de páginas
que obrigava a mudar de regime visual e e leitura a cada capítulo.
Estamos em crer que a sua leitura de uma assentada, num putativo
“livro” de quase 100 pranchas, revelará ser talvez mais
compensador e a sua eficácia mais coesa. Todavia, essa coesão pela
completude será ao mesmo tempo um convite a reler cada um dos
números, e compreender quais as estratégias certeiras que levaram a
essa opção, inclusive aquelas que têm a ver com a materialidade do
projecto (isto é, não somente o que tem a ver com um ritmo de
trabalho e exposição, recompensa financeira e de circulação,
etc.). (Mais)
Madoka
Machina, como havíamos dito
a propósito da publicação do seu primeiro número, é uma amálgama
de territórios criativos e de géneros, sendo tão devedor da banda
desenhada independente advinda dos anos 1990, com a sua atenção às
culturas urbanas, jovens e semi-deprimidas, como de géneros mais
claros, da high fantasy
à mangá de ficção científica. Mas há uma fortíssima relação
igualmente com muitas das tendências contemporâneas da banda
desenhada global, em que esses embates de territórios aparentemente
separados são apenas um pasto aberto para ensaiar e pensar em
temáticas mais profundas. Perguntamo-nos se não será uma espécie
de ode ao desespero. Ou um espelho da precariedade. Ou um apontamento
de quão difícil é o combate pela realização pessoal.
No fundo,
esta história ou triângulo entre os amigos Leandro, Leonor e
Orlando, em torno dos seus empregos precários numa espécie de
interface tecno-mágico, é apenas um espelho da nossa própria
sociedade, até portuguesa, com especificidade, no momento em que a
noção de “labor” se começa a liquefazer, como bem apontara
Marshall Berman na sua apropriação da famosa frase de Marx. Madoka
Machina, dessa forma, pode ser lido como um livro sobre a passagem da
adolescência tardia ou a primeira idade adulta aos desencantos das
responsabilidades profissionais e de vida (Leonor está à beira dos
30 anos, hoje não sendo garante de estabilidade, burguesa,
admitamos, a qualquer nível), à impossibilidade de garantir uma
solidez profissional independentemente da dedicação aos estudos e
trabalho, à precariedade planeada das novas empresas, à dissolução
das relações nas grandes sociedades, à alienação prevista por
certos usos tecnológicos, e à capacidade incrível que o
capitalismo tem de “comodificar” tudo, inclusive os produtos da
imaginação e da expressão livres.
Esse
“mergulho” é tornado literal neste último capítulo, já que a
parte de leão é ocupada pela descida de Leonor, no tal mundo
liquefeito do Aether. Mas igualmente no seu desespero de empregada
por conta de outrem, ou de “asset” ou “activo” dispensável
conforme as flutuações de mercado e necessidades de flexibilidade
empresarial. Mas também na sua memória de infância e formação.
Mas também, e talvez de forma mais importante, na sua própria
psique, talvez ferida para sempre. André Pereira apresenta uma
panóplia de estratégias de composição de página para assinalar
esse mergulho, tirando partido de combinações muito produtivas
entre grelhas ortogonais e linhas oblíquas, rectas e formas líquidas
e de derretimento para traduzir essa queda. Há também um judicioso
uso de tipologias e “linhas de evolução” [como nesta prancha],
que desdobra uma linha temporal da própria personagem como espelho
desta outra, nova, viagem. Há algo de Lynch nessa gestão do lado
negro da psique e uma quase total banalidade dos eventos no mundo
exterior.
Há também
algo que faz recordar, em termos muito gerais, a saga do Incal,
de Jodorowsky e Moebius, pelo facto de que no fim, Leonor “desiste”
e prepara-se para reenviar a sua tipificada mensagem de candidatura a
um emprego. Tal como havia começado a saga. Funcionará? Ou terá
ela batido no proverbial fundo? O livro recusa-se a providenciar uma
reposta cabal, ou pior, falsamente esperançosa. O problema, e a
força de Madoka Machina,
é que, acima de tudo, pouco importa.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.
De maior fôlego a solo, porque na verdade o André Pereira já havia feito um álbum.
ResponderEliminarPara mim o André Pereira é a maior esperança da sua geração na bd nacional. Cá estaremos para ler as suas obras futuras.
ResponderEliminar