13 de agosto de 2018

Comer/Beber. Filipe Melo e Juan Cavia (Tinta da China)


As origens deste pequeno livro são explicadas no seu prefácio, pelas palavras de Carlos Vaz Marques, na sua qualidade de editor da revista literária, também ela publicada pela Tinta da China, a Granta. Até certo ponto decalcada do seu modelo inglês, a Granta portuguesa acaba por ser um pouco mais confinada à “coisa” literária, ainda que inclua imagens por alguns dos mais conceituados ilustradores portugueses. Dito isto, porém, e apesar do prémio atribuído a João Fazenda, mesmo uma rápida consulta demonstrará que as mais das vezes essas mesmas imagens acabam por estar subsumidas aos princípios temáticos da publicação, e menos propensas a ganhar uma dimensão autónoma e conceptual como poderiam ter. Daí que o “direito à cidadania” da banda desenhada seja algo limitada e se tenha pautado pela força de circunstâncias e proximidade editorial dos autores, e não propriamente por uma abertura genuína e procura editorial por um diálogo, por exemplo, entre as pesquisas da literatura e da banda desenhada pelos temas propostos a cada número. (Mais)

Não podemos aqui dar início à problemática recepção das revistas, jornais e suplementos literários à banda desenhada, quase sempre atreitos aos objectos de maior circulação comercial ou exposição mediática, ao ponto de confundir esses textos populares com todo o modo, nem novamente a uma dessas diatribes superficiais de que essa situação apenas ocorreria nos meios de comunicação nacionais. No entanto, não há dúvida de que em mercados mais musculados e sofisticados, a discussão da banda desenhada se faz entre textos e não propriamente entre “meios”. Isto é, se o interesse de um determinado órgão se atreita a determinados temas, a pesquisas formais, a explorações estéticas, a capacidade de observação do espírito humano, etc., então haverá uma sensibilidade aliada à informação que seja capaz de procurar, na banda desenhada, os objectos mais adequados a esse mesmo diálogo. Mas num círculo onde as coisas acabam por ser algo mais confinadas, a falta de diversidade é sublinhada.

A dupla criativa entre Filipe Melo e Juan Cavia tentaram responder ao tema unificado do número 9 da Granta, que era o de “Comer/Beber”, mas por força das circunstâncias apenas conseguiram submeter a história em torno do primeiro termo, com 24 páginas, “Sleepwalk”. Este livro junta as duas peças, porém, sendo a história “Majowski”, de 28 páginas, focada no acto de beber. A forma como cada uma se alia ao tema é relativamente simples, aquela em torno de uma tarte de maçã, esta numa garrafa de champagne. Uma das regras que usualmente se podem cumprir com segurança na criação de uma narrativa é que mais vale partir de uma ideia convencional para depois explodi-la do que começar com algo absolutamente fantástico e acabar por acabar por encaixar numa categoria expectável. Ora, o interesse destas histórias estará menos concentrado nos objectos em si – a tarte a a garrafa – do que em todos os valores humanos que são tecidos em torno deles, valores que implicam memórias, laços de família, momentos de segurança e felicidade, a possibilidade de lançar alguma esperança mesmo nos piores momentos, ou sentir alguma força face à adversidade menos conquistável.

“Majowski”, baseado numa memória familiar de Beatrice Schilling (Nádia Schilling co-assina o argumento com Melo), roda em torno de um polaco que é dono de um restaurante/cabaret em Berlim durante os anos da 2º Guerra, obrigado a servir aos esbirros nazis que o desprezavam a ele e aos seus. Pequeno relato dos modos como se consegue sobreviver mesmo sob a bota do inimigo, o objecto afectivo em causa, a garrafa de champanhe, acaba por ganhar uma espécie de papel de consubstanciação dos valores da resistência, hombridade, orgulho e dignidade humanas, sobretudo quando face a quem a descarta em nome de um poder advindo da força dos números. “Sleepwalk” é uma concentrada narrativa, e sensível, também em torno da dignidade e empatia humanas, mesmo onde julgávamos que evaporasse por completo. Se a primeira história (que não se pode defender com a ideia de ser “baseada em factos reais”) acaba por explorar simpatias baseadas em clichés (o pobre judeu polaco face aos nazis facínoras), já a segunda é mais feliz na construção de personagens mais redondas, sobretudo pelas suas acções, reacções e emoções – com muito menos diálogos, exploram-se esses outros instrumentos de construção.

Sendo a revista de um formato reduzido, e que neste livrinho, de capa dura, ainda mais pequeno, não será surpreendente que a escolha da composição das páginas seja feita com muito simplicidade, oscilando entre as 4 e as 5 vinhetas (tornando as histórias de mais rápida leitura do que poderia parecer em termos de contagem de pranchas). A primeira história tira mais partido de divisões horizontais, ao passo que a segunda parece seguir uma grelha regular de 2 x 3 para depois explorar as suas variações possíveis. O desenho de Cavia mantém-se no seu registo estilizado, muito próximo a uma assinatura de animação contida, e onde as suas limitações de expressibilidade funcionam melhor em “Sleepwalk” precisamente pelo tratamento narrativo e emocional, do que na primeira história, a que necessitaria de maior variação emocional. Apesar das diferenças de cor, em que a segunda contém mais azuis baços e cores mais atmosféricas, toda a matéria parece estar oprimida sob uma camada de ocres, glaucos, e sombras que tornam a legibilidade das imagens menos imediatas do que seriam a preto-e-branco, por exemplo.

Ainda que estejamos longe de narrativas que se concentrem propriamente nos pratos ou bebidas servidas, ou em momentos de comensalidade para nutrir as complexas relações humanas (como nos festins de Natal de um Fanny e Alexandre, as refeições de um Comer Beber Homem Mulher, de Ang Lee, apenas a título de exemplo), “Majowski” e “Sleepwalk” usam os seus móbiles como objectos evocativos para despertar as figuras humanas, e quão humanas, das suas narrativas.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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