28 de abril de 2019

O cão que guarda as estrelas. Takashi Murakami (JBC)


A estreia da luso-brasileira JBC no nosso mercado foi estrondosa, tendo começado com dois clássicos de peso – Akira e Ghost in the Shell –, e obrigatórios em qualquer biblioteca de banda desenhada que se preze, ciente da sua história contemporânea, já para não falar das suas repercussões cruciais no mundo do cinema de animação, dos jogos, na recepção e/ou diálogo entre a cultura japonesa e o resto do mundo, na cultura popular em geral, e muitas outras dimensões. Apenas questões internas ao Lerbd nos têm impedido de escrever com a mesma regularidade habitual, e é possível que ainda revisitemos esses títulos. Seguiram-se apostas numa série mais comercial de grande sucesso, Ataque dos Titãs, e neste pequeno volume, de um registo bem distinto dos demais. (Mais) 

Todavia, a dimensão comercial não pode ser descurada, já que esta série de curtos episódios foi igualmente um caso de grande sucesso comercial no próprio Japão e noutros locais onde foi traduzido. A sua adaptação ao cinema, mesclando as duas histórias presentes neste livro, não é, forçosamente, uma “prova” da sua fortuna crítica e/ou estética, mas ajuda à circulação do seu texto. Há indicação de que o autor terá criado mais histórias com a mesma personagem do cão, Happy, mas apesar da distância temporal entre o seu lançamento primeiro (2008) e esta edição, a JBC apenas se ateve ao projecto original (presumimos que se adivinhará igualmente o lançamento de O outro cão que guarda as estrelas).

Apesar da coincidência do nome, este Takashi Murakami não apenas não é o mesmo artista visual de renome internacional, como a sua assinatura gráfica nada tem a ver com esse outro estilo “superflat”, de cores vivas e planas, e linhas sólidas e plásticas. Aqui, o desenho é composto por linhas simples e suficientes, uma figuração quase basilar e quase sempre atarracada ou de atalhos visuais, e empregando toda aquela flutuação costumeira de registos para dar conta de momentos de maior tensão emocional. O uso de cinzentos ou aplicações de tramas ajuda nalguma densidade, mas estamos perante um daqueles casos de uma espécie de minimalismo, não do desenho, mas da estratégia expressiva.

Dito isto, o forte da obrinha está na forma como o autor conduz a focalização da história. Se a trama principal da história curta – 3 episódios compondo a história principal, que dá nome ao livro, e depois outra extra e tangencial à primeira, mas que, ao mesmo tempo, a envolve e devolve (a relação diegética entre as duas histórias é um óptimo caso de estudo na introdução aos estudos narratológicos) – se prende à lenta mas imparável descida social de um tradicional “pai de família” japonês, pois é ele quem comanda o ritmo e a direcção das acções, toda a atenção e enquadramento narrativo é feito pelo pequeno cão, Happy. Temos acesso, desde o início (após um prólogo “desligado” da ordem cronológica), aos pensamentos do cão, sob a forma de legendas supra-narrativas, em que ele nos fala na primeira pessoa e vai descrevendo o que compreende do mundo. Enquanto seres humanos, haverá sempre momentos em que “sabemos” mais que o cão, uma vez que existirão aspectos societais ou comportamentais que nos parecerão limitados, e faremos inferências para perceber melhor o que está a acontecer. Mas essa é parte da estratégia eficaz de Murakami.


Apesar desse acesso ao pensamento, sob a forma verbal (que, de acordo com Aristóteles, seria aquilo que nos distanciava dos demais animais), Murakami não tenta, parece-nos, antropomorfizar o cão. As suas expressões, comportamentos e instintos, reacções, posições físicas, mantêm-se sempre no interior da representação realista, e se existem estratégias de acrescento de significado típicas da banda desenhada – linhas de movimento, gotas de pânico, onomatopeias, etc. - em nada destoam do que é empregue junto aos humanos. Mesmo os olhos mantêm sempre a qualidade canina, apesar do brilho presente e, de vez em quando, gerido para despertar junto aos leitores (humanos, necessariamente) uma qualquer reacção interpretativa, reforçada pelas escolhas de enquadramento ou ângulo.

Estamos bem longe de todas aquelas histórias lamechas em que a vontade e vivência do cão, ou outro animal, se subsume à felicidade do ser humano com quem cria a sua relação social. Ainda assim, mantém-se uma certa dependência, material, familiar e, acima de tudo, emocional da parte do cão, que não ganharia a mesma independência que um ser humano em relação a um “seu” animal. Aquela matéria verbal/mental cria então uma personalidade algo ingénua, mas que, em vez de minar, reforça a qualidade e até o grau dos valores que transmite. O que interessa é que o cão mantém-se sempre “cão”, mas por isso mesmo a sua “genuinidade”, e os sentimentos de amizade, fidelidade, companheirismo, confiança, são protegidos, mesmo que todos saibamos que esses traços não são mais que projecções dos próprios leitores. E esta personalidade, digamos assim, é reforçada pela segunda história curta (não estamos sequer perante “novelas”), que coloca em cena outra relação homem-cão que espelha a primeira e tematiza a disponibilidade e felicidade canina.

Uma obra que se encontra tanto na tradição “humanista” de Tsuge e Tatsumi como naquelas linhas da observação do quotidiano de Taniguchi, ou aquelas espécies de “diários de observação” que envolveriam Makoto Kobayashi, Junji Ito e Jeffrey Brown (sempre gatos, na verdade), O cão que guarda as estrelas é um gesto simples e bonito (é a palavra certa), sem grandes desculpas.
Nota final: agradecimentos a Beatriz D., pelo empréstimo da sua cópia.

5 comentários:

  1. "obrigatórios em qualquer biblioteca de banda desenhada que se preze"
    ??
    qual o problema agora, pedro pan?
    zeus!

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  2. Deve ser na biblioteca de bd ideal!!

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  3. concordo com o mmmmmmnnnnnnrrrrg, akira e ghost é BD para crianças! o dr. moura esticou-se nesta resenha!

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  4. obrigado anónimo mas é MMMNNNRRRG!
    quanto ao resto: "Crianças a bordo!"
    abraços

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  5. Desde quando que Akira é para crianças? E se o ghost in the shell fôr metade da adaptação em Anime já vale bem a pena...

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