9 de outubro de 2019

Cortázar. Marc Torices e Jesús Marchamalo (Presque Lune/Nórdica)



É naturalmente discutível quando se utilizam hipérboles a declarar este ou aquele escritor, esta ou aquela obra, como “uma das maiores de sempre”, quando não existem qualificativos, contextos ou pelo menos uma qualquer inflexão que explicite a emergência dessa hierarquização imediata. Se se utiliza esse termo comparativo, quais os outros termos contra os quais ele mesmo se estabelece? As mais das vezes, e é esse um movimento perigoso, a ideia está em que essas declarações, desprovidas desse mesmo contexto, apontam a uma espécie de consenso cultural, em relação aos quais aqueles que não o partilham são vistos como desmerecedores sequer de consideração. (Mais) 

Dizer que Julio Cortázar é um dos maiores escritores do século XX poderá funcionar muito bem num determinado espaço, em que outros nomes se esgrimiriam num palco de referencialidade quase puramente literária. Kafka, Borges, Michaux, Lispector, Schwob, Kharms, Mrozek, Calvino, são alguns dos escritores que se agregariam nesse grupúsculo, autores que transformaram a coisa literária numa matéria friável, passível de recombinação, em que cada parte poderá reflectir em si mesma elementos cuja quantidade é paradoxalmente maior do que o seu resultado. Uma literatura estimulante a um nível intelectual e cultural elevado, mas que poderá colocar de lado muitos outros factores usualmente mais procurados por um público alargado: intrigas, emoções, posicionamentos políticos, comentários do hodierno, filosofias prêt-a-porter, “lições” resumíveis numa frase motivacional. Não quer dizer que não seja possível analisar esses autores em busca dessas partes, mas não serão elas as principais nem a recompensa mais profunda.

É na Poética de Artistóteles que encontramos uma máxima fundamental: “numa só pessoa concentra-se uma infinidade de acontecimentos, alguns dos quais não se podem reduzir a uma unidade”. Ora, essa máxima torna-se ainda mais premente quando falamos de um autor que, tal como aqueles outros escritores indicados, possuía uma mestria absoluta sobre o conto, na sua acepção mais técnica. A brevidade, que o próprio Calvino defendeu no seu supremo ensaio Seis Propostas para o Próximo Milénio. É, então, um exercício curioso encontrarmos uma tentativa de criar uma narrativa longa – uma narrativa de uma vida: biografia! - a partir dos fragmentos da vida do escritor argentino Julio Cortázar.

Todavia, os autores deste livro, o escritor Jesús Marchamalo, que já havia escrito Cortázar y los libros, uma das biografias do autor, e o artista Marc Torices, optam por uma abordagem precisamente fragmentária e poética. O livro é dividido por vários capítulos, cada qual com títulos aparentemente enigmáticos mas que se concentram numa faceta na formação de Cortázar enquanto homem, pessoa, escritor e figura pública-política - “Os argentinos declaram a guerra aos Estados Unidos”, “Ver Borges”, “As vantagens do comboio” (um título particularmente “cortazariano”). Além do mais, em vez do livro proceder com uma fluidez tipicamente narrativa, estrutura as suas partes, por vezes cada prancha, como um trecho auto-suficiente, em torno de um acontecimento, um gesto, um encontro. Mais, a abordagem visual, inclusive as opções cromáticas, figurativas e estruturais, do livro (quiçá fruto da colaboração) não procura jamais uma posição naturalista, de representação da “realidade histórica”. Há uma clara aceitação de construções ora simbólicas ora surrealistas, assim como a fabricação de efeitos de mais impressionismo do que de real. Nada disso se desvia da matéria literária do autor argentino, que sempre explorou os territórios em que essas supostas fronteiras se dissipavam.


O jovem Marc Torices é um autor que se inscreverá na escola de um Olivier Schrauwen ou Brecht Evens, em que a cor ganha uma presença de linha representativa e não é somente embelezamento do desenho prévio, e onde a composição de páginas navega pelas mais díspares opções de maneira a, a um só tempo, criar a estrutura necessária ao que se conta como também chama a atenção para a sua própria natureza.

Em suma, enquanto biografia de banda desenhada, não estamos perante um trabalho “didáctico”, que permita uma consulta distraída, rápida, para nos providenciar com um conhecimento enciclopédico e reduzido sobre a vida do escritor. Mas uma espécie de possível experiência da vida de Cortázar, sob o signo da sua própria escrita.


Uma nota pessoal. Há ausências em relação à obra literária algo descoroçoante. Para o autor da “Ilha do meio dia” e “Todos os fogos o fogo” - dois dos nossos contos favoritos, de tal forma que integraram enquanto mise en abîme na nossa escrita, com Marta Teives, de Os Regressos - , uma maior exploração dos níveis hipodiegéticos, o cruzamento ou contaminação fértil de “temas” aparentemente díspares no texto literário, está algo ausente. Não é apenas não haver uma referência a Prosa do Observatório, mas tampouco seria desejar que houvesse uma combinatória mimando O Jogo da Macaca (por melhores que sejam as traduções recentes da Cavalo de Ferro, que têm permitido redescobrir este autor e dar a conhecer escritos até agora ausentes nas prateleiras dos portugueses, recuso-me a pensar na Rayuela com o gongórico e pedante título O jogo do mundo), mas é uma certa pressa, digamos assim, em apresentar uma narrativa que começa no seu nascimento e termina na sua morte. Há uma espécie de prólogo, que apresenta uma narrativa absurda e surpreendente, de coincidências mágicas, mas esse tom não regressa mais, arrancando a vida literária de Cortázar da vida circunstancial do seu corpo. Assim, por mais cronópio que se teça, há sempre um peso de fama a não permitir que o livro desabroche nessa direcção.
Nota: cópia lida da Tinta nos Nervos

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