Num momento em que a os editores, livrarias e todos os agentes associados à dita “indústria” do livro já lançam mãos de quaisquer bóias de salvamento das contínuas crises – económicas, de consumo, de confiança, educação, das plataformas digitais, alterações sociais e culturais, de sector, legislação e, mais recentemente, de saúde pública – é difícil encontrar uma solução que funcione como panaceia universal. Podemos estar no mesmo oceano de papel, mas as embarcações são bem distintas entre si, e as ondas levantam-se de maneira diferente, o marulhar afecta em variação. Uma opção, porém, se avizinha àqueles que ainda crêem no poderoso objecto que o livro é: fazê-los bem, fazê-los belos, fazê-los inteligentes. Entra a Bestiário. (Mais)
A cada geração, ou a cada momento, caber-lhe-á as “revistas” que merece. Podíamos pensar desde o século XIX, com a imprensa ilustrada, em que Bordallo também foi o “pai-de-todos”. Depois a combatividade de todas as revistas literárias do primeiro quartel do século XX, e mais além. A democratização da democracia com a Seara Nova. O Tempo e o Modo, de mãos dadas. A &tc., mas também a Gaiola Aberta, combativas sem quartel. A “pós-moderna” K. O guia mutante flirt, na qual tive a honra de participar. Os gestos sérios da literatura, como As Escadas não têm Degraus ou a Telhados de Vidro. As agregações de pensamento estético, com a fulgurante Pangloss. E os bichos jogando literatura e ilustração, da V-Ludo à Cão Celeste. O imbriamento da imagem e do texto, e destes com a política, da Buraco. E,
naturalmente, a empreitada monstra da Bíblia,
“mais famosa que a outra”, sempre de cara lavada e suja a cada
número, tem-te-não-caias e onde há lugar para tudo, desde que caia
no goto de Tiago Gomes, noctívago, omnívoro, incansável. A Bestiário agrega muitas das dimensões destas heranças, e mesmo que abandonando o mero fito mercantil, apresenta-se como objecto singular, esmerado, e informado igualmente por tradições diversas das revistas de arte, quem sabe se mesmo com citações directas a algumas das quais já debatidas neste espaço: The Ganzfeld, Kramer's Ergot, outras. Uma “aliança intrínseca”, como quer Herberto Helder entre duas partes do corpo humano, entre o conhecimento e a mestria.
Uma “revista” aponta sempre à ideia da diversidade de assuntos e de tratamento das matérias. Este é um projecto pensante, e que não se fecha somente a uma experiência de um género de escrita, mas bem pelo contrário coloca em prática muitas das estratégias previstas numa simbiose livre de preocupações diversas, mas todas elas informadas pelo rigor dos seus instrumentos específicos. É um rizoma nas suas partes, mas cada uma dessas partes é um órgão. Não será, julgo, um desserviço e ofensa aproveitá-los isoladamente, mas o seu cômputo colectivo poderá colocar o leitor em vertigens produtivas.
A Bestiário propõe-se seguir temas condutores, sob o pavilhão de palavras-chave, conceitos palpáveis e conhecidos. O primeiro número é o do “nojo” - nos seus sentidos líquidos e plásticos de “repúdia”, “abjecto”, “luto” - o segundo o de “monstro” - criatura compósita, advertência e obsceno. É possível que haja uma articulação interna, talvez mesmo de forma explícita: uma citação de Llansol no final da Bestiário 1 fala de “monstros” e a sua contra-capa é a ilustração, de Hetamoé, que orna a capa do segundo número. O abjecto, o informe, o monstro, a própria vontade enciclopédica de construir um outro entendimento do mundo, faz-nos imaginar que a égide de Bataille estende as suas asas sobre os dois números (e assim surge mais uma referência, na Documents). Pela pequena monumentalidade destes tomos (o segundo substancialmente mais monstruoso que o primeiro), há uma clara fuga do efémero, do hodierno, para uma preocupação mais cabal com o consentâneo e o consequente. Com o dossier. Um “bestiário”, afinal de contas, apresenta-se como um repositório de formas vivas, havendo espaço para a mais banal das criaturas domésticas e a quimera ainda insuspeitada. Alguns dos textos, como os de Ana Matilde Sousa, revelam esse convívio, nada contraditório no fundo, mas é sobretudo o colectivo que reúne essa força.
Há uma exigência para a leitura desta publicação, já que muitos dos textos são longos, densos, requerem uma atenção particular, e interrogações permanentes. Não são somente para ser “consumidos”, mas debatidos. Mesmos os literários, muitos dos quais roçando territórios “não-identificados”, abrem caminhos de pesquisa (que, em si mesmos, também possibilitam a criação de toda uma outra constelação de associações).
Pois há literatura, sob os modos da poesia, do teatro, da prosa. Há ensaios, estes mais presididos por uma interpretação de política, aqueles mais conduzidos pela filosofia das artes, aquele outro uma historiografia da securatização urbanística, uma ponderação sobre o moldar ideológico do sexo, e havendo espaço para o burilar crítico da literatura e do cinema. Há banda desenhada (de André Coelho), e imagens, não fossem estes objectos explorações eles mesmos do design de comunicação e publicação, do livro enquanto arte material própria (em que os arranjos de Pedro Serpa e Joana Pires abrem espaços a diálogos menos comuns). Há ilustração, mas ela não ilustra nada, no seu sentido de serviço a um texto, de lhe aclarar as ideias. Ora em prestações isoladas, ora em ciclos ora em corpos, vive aqui num direito próprio, em que a sua presença, por acumulação, a faz ganhar um peso que, mesmo que não idêntico ao da matéria verbal, a mantém de pé. Existe também aquilo que penso leva o nome de “ensaio fotográfico” - Lais Pereira, Momo Okabe, Emi Anrakuji, Paulo Catrica – cujas organizações internas exploram temas concentrados, e das quais emergem ideias próprias.
Apesar dos temas, nada lhe está subsumido. O que ocorre são formas distintas de responder ou dialogar com esse tema, expandindo-o por dentro. Jamais se procura uma cabimentação explicativa ou, pior, domesticação desses mesmos temas, mas uma sua multiplicação, revelando os veios que unem todas estas esferas da criação e do pensamento.
A Bestiário apresenta-se como uma “não-revista”, marginal no sentido de não se preocupar com a validade imediata da sua circulação hodierna. Certo, não quererá ombrear a imprensa periódica que pulula nos quiosques, e que, proverbial espuma dos dias, no momento em que se materializa já se dissipa. “Revista” vem de revider, latim para “ver outra vez”. A Bestiário servirá sempre para se reler.
Portugal são ladrões que, ao longo da nossa história, roubam Africanos, Asiáticos e Brasileiros. Agora que não podem mais fazer isso, roubaram essas ilhas, que foi a última do que podiam roubar da Espanha na década de 1930. Patético!
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