8 de julho de 2020

A Assembleia das Mulheres. Aristófanes e Zé Nuno Fraga (A Seita)

O parágrafo que utilizámos para falar de O Penteador, de Paulo J. Mendes, poderia ser empregue com toda a precisão em relação a esta adaptação da comédia de Aristófanes. O artista em questão parece ter tido já experiências anteriores no campo da banda desenhada, mas surge, tal qual como Palas Atena, totalmente formada e armada da cabeça de Zeus. Isto é, com um livro totalmente criado por si, se exceptuarmos, claro está, a estrutura dramática, didascálias e falas do comediógrafo do século V. a.E.C. Além disso, a surpresa de ser uma adaptação de uma obra que não está propriamente nos programas escolares faz adivinhar uma escolha pessoal, genuína, pouco programática em relação a estratégias “escolarizantes”. (Mais) 


Aparentemente, Fraga apresenta-nos uma adaptação directa (ainda que não esteja indicada de quem é a tradução/edição empregue). Não existem propriamente introduções ou contextualizações desta peça, quer diegéticas quer textuais. Pelas primeiras, entenderíamos a hipótese de criar um episódio adicional que explicaria a razão pela qual as mulheres de Atenas sentiriam a necessidade de tomar o poder político (que não tinham), e maneira a tentar resolver as crises económicas, militares e sociais do seu tempo. Pelas segundas, imaginaríamos uma contextualização da própria peça no seu tempo, isto é, uma representação dos concursos de teatro e esta peça sendo levada à cena nas condições históricas, começando pelo facto de que não haveria uma única mulher na trupe de actores nem na assistência. No seu tempo, teríamos actores homens a passar-se por mulheres que se passavam por homens... O autor pura e simplesmente apresenta-nos as cenas propostas peça peça, directamente como a história, ganhando ela uma pátina de “verdade histórica”.

Um dos aspectos mais curiosos estaria na possibilidade de ler este texto hoje, à luz dos direitos entretanto conquistados pelas mulheres, como um discurso positivo e cada vez mais qualitativo e equalitário desses mesmos direitos e condições. Mas é preciso ter e conta, da forma mais contextualizada possível, que grande parte do humor está precisamente no absurdo social proposto pela peça: mulheres a imiscuirem-se no funcionamento governamental de Atenas! Inconcebível! Esta peça, tal qual os casos de Lisístrata e As Mulheres que celebram as Tesmofórias, são comédias em que Aristófanes coloca as mulheres como protagonistas para pôr sob o olhar público as fragilidades políticas da sua sociedade e grande parte do humor está, logo à partida, serem mulheres a tomar tais decisões. E o resultado é uma inversão carnavalesca, que tem repercussões na organização do trabalho público e doméstico, nos modos económicos da cidade (uma espécie de comunismo proposto), e até uma redistribuição da sexualidade (todos têm direito à sua quota-parte, até os feios, velhos e desfigurados). A patina de “teatro grego da Antiguidade” poderá dar uma ideia de elevadíssima cultura intelectual, mas não se enganem, estamos perante uma patusca comédia na linha do “Carry On”.

Não há dúvida de que o “pai da comédia” criou muito dos mecanismos mais elevados do teatro de humor, como a sátira política, o demolir das figuras públicas no poder, mas não dispensava piadas obscenas, escatológicas e até trocadilhos jocosos. Isto para não falar da parte do “espectáculo” das peças, que envolveriam danças, canções, e até adivinhas que envolveriam o público de uma forma particularmente interactiva. Esta dimensão mais popular é trazida para a linha da frente pelo autor da adaptação, até mesmo pela sua figuração se estender num registo caricatural, exagerado e que procura efeitos dramáticos e ridículos nos rosto das personagens, por vezes mesmo em “transformações mágicas” (rosto alterados para apenas uma cena, simbólica), nas suas posições impossíveis, gestos e enquadramentos. Isto não é uma encenação da Cornucópia, mas dos Malucos do Riso.

Um dos grandes problemas em adaptar textos dramáticos tem a ver com o facto de que a dinâmica teatral – texto dito por actores/corpos num palco – não se presta às mais fortes valências de meios visuais ou também visuais como a banda desenhada. Se não se optarem por escolhas de cenografia, gestão de espaços, planos, “desvios”, o resultado está numa cadência regular e repetente de “talking heads”. Infelizmente, é o que sucede neste texto de Nuno Fraga. Com a excepção de meia-dúzia de vinhetas que mostram os espaços em que a acção tem lugar, a esmagadora maioria das cenas concentra-se tão-somente nas cabeças ou mesmo rostos das personagens, e bastas vezes sem qualquer objecto contextualizador, mas somente aguadas coloridas para manter alguma coerência lumínica. Porém, as opções cromáticas, com tons pesados, escuros, mesmo nas cenas diurnas, não ajudam à legibilidade elegante das páginas.

O que Zé Nuno Fraga consegue fazer é devolver-nos a possibilidade de ler Aristófanes outra vez pela primeira vez, e sublinhar a sua contínua importância, impacto e até capacidade de diversão. A “devolução” do texto de Aristófanes neste registo poderá dar a redescobrir o valor satírico e quase bufo destas peças, tirando-lhe todo o “pó” suposto (mas errado) da Antiguidade, afastado das nossas preocupações contemporâneas. Em muitos sentidos, haveria – com as devidas distâncias – que compreender qual o problema dos consensos moles da política dos nossos dias que fazem resvalar os valores da democracia e até a democratização da democracia. E o que A Assembleia das Mulheres, apesar do seu regimento de valores não ser compatível com os nossos, ainda nos tem a ensinar.

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