O Penteador é um livro com um sabor antigo, não procurando seguir tendências de géneros ou estilos hodiernos, e parecer querer trilhar um caminho só seu, o que tem tanto de vantajoso como de frágil.
Com uma formação nas artes visuais e uma carreira profissional que o colocou enquanto desenhista publicitário e noutras áreas que mesclam a arte a indústria, jamais abandonou a disciplina do desenho, e ele próprio explica como a prática do “urban sketching” o re-aproximou de um outro tipo de assinatura gráfica e, através dela, finalmente da banda desenhada. Com efeito, e sobretudo a nível dos cenários e de vinhetas que criam establishing shots, Mendes parece tirar partido da forma mais completa possível de todas essa experiência. Os seus grandes planos revelam uma atenção ao pormenor, à estratificação de planos, a formas de construir perspectivas dinâmicas, e o treino pela aguarela faz com que crie cenas em que a iluminação, sobretudo da luz diurna por entre a folhagem banhando os espaços e personagens, é francamente um domínio feliz. A sua figuração, descomplicada e nem sempre coerente, é todavia legível, clássica e fluida, recordando toda uma tradição de cultores de uma linha simples associada ao humor do dia-a-dia, entre os desenhos “nervosos” de um Cabu ou Brétécher e uma certa linha de ilustração para a infância. Recorda, nalguns momentos das expressões, o autor espanhol Kim (colaborador de Altarriba), mas sem o burilado detalhado das linhas.
O livro cria uma rede de personagens, um contexto espacial e temporal, mas na verdade é uma novela plotless, sem intriga, nem propriamente “curvas” e “arcos” de narrativas ou desenvolvimento de personagens. Temos um protagonista, Mafaldo Limparrim, que graças a um novo emprego numa pequena cidade, acaba por entrar em contacto com todo um novo mundo social e pequenas aventuras rurais/de vilarejo, onde descobre os prazeres etílicos, da observação e integração na natureza, da apreciação de tradições simples e do amor. Algures o autor descreve o livro como sendo uma “desnovela gráfica” e não é um termo mal-achado, dado que é muito menos importante a trama que poderia ser criada – não é – do que o passeio por estas paisagens e os encontros com estas personagens.
O livro está carregado por uma série de “ideias” soltas, que o próprio autor confessa nos vários paratextos do volume, e com efeito existem muitas situações e trocadilhos que se vão ligando uns aos outros mais por fiada do que por cadeia – isto é, não procuram uma coordenação episódica que crie causa-consequência, mas tão-somente uma embalada sequência “e depois”, “ e depois”... Por isso, se o emprego de Mafaldo, “penteador de manequins” poderia recordar o humor de um José Carlos Fernandes, e haver acesso a sonhos e situações algo estrambólicas, o território de Mendes não é o do absurdo literário, onde haveria espaço para o sarcasmo. Isto não quer dizer que não exista uma possibilidade de ver em O Penteador um retrato, ligeiramente distorcido, da realidade portuguesa, mas havendo-o, será algo mais próximo de um “português suave”.
Na verdade, esta é a parte mais imaginativa e com impacto do livro. Mafaldo diz vir de uma “ilha” para a “cidade” onde trabalhará, visitando a “aldeia” do seu patrão, mas nenhum destes espaços, apesar dos nomes - “Poço Redondo”, “Montefofo” - , é no Portugal que habitamos. O Portugal de O Penteador é uma espécie de fantasia tranquila em que Ludovice e seus discípulos tomariam conta da construção do país e o modernismo, pelo menos em termos de estilo, jamais chegaria. Todos os espaços são uma espécie de Bom Jesus do Monte espraiados em centros urbanos. O barroco e rococó de Braga, Guimarães, Porto e Queluz transformam os centros das cidades, as portas e rotundas, os miradouros e paragens de eléctrico (os poucos automóveis ou motorizadas que aparecem são modelos dos anos 1950 e 60, mas muito secundarizados), e até mesmo a cidade papal – esta é uma sociedade que tem um rei mundano, um papa boncheirão, e um presidente da Câmara enfastiado. Tal como Schuiten-Peeters, na série As Cidades Obscuras, relançam as fantasias de Verne e Robida num modernismo desviado na sua Contra-Terra, também as paragens desta história parecem ser informadas por uma tarde de Domingo de Verão numa visita à terra lá nos nortes, bem regada a vinho e comidas caseiras.
Apesar de existir uma espécie de McGuffin no livro – o mistério de uma pequena capela perdida na encosta a caminho de Poço Redondo -, ele não serve para articular o ponto principal destas páginas: os repetidos encontros entre uma mão-cheia de amigos para patuscadas opíparas, regadas profusamente por alcoóis e extravasamentos comportamentais que terminam com derrotas na retrete, sonhos conturbados, ressacas, e arrependimentos que não duram mais que uma hora, antes de regressar-se ao mesmo ritmo, com novos aliados (e que vão “subindo” por uma espécie de hierarquia social interna: o presidente da câmara, o rei, o papa). Tudo sem pautado por diálogos escritos num falso estilo grandíloquo e melífluo, por vezes para criar uma referencialidade literária “antiga”, por outras para fazer pouco de certas tipologias de discursos e salamaleques oficiais.
Muito do humor vive dos diálogos, por vezes requintados, outras um pouco mais rebuscados, mas pela sua constante presença poderá tornar-se algo excessivo. Ainda assim, vão contendo jogos de referencialidade interessantes. Leitores atentos descobrirão uma técnica interessante surrupiada a Goscinny.
Fantasia escapista, sem qualquer dúvida, O Penteador não reinventa a banda desenhada, e parece querer alhear-se de quaisquer dimensões temáticas que estejam na “ordem do dia”. Isso, em si mesmo, é naturalmente uma escolha também significativa, e o seu mergulho numa certa natureza bonacheirona, da chalaça, do trocadilho, do nacional-porreirismo (o que parecem críticas aos poderes, no fundo, são apenas um compromisso), enfim, num Portugal “limpinho e bem-comportado”, não é de todo mau-vindo, mas a sua eficácia na contemporaneidade pode também ser limitada.
um verdadeira perda de tempo... a crítica é justa mas ter sido escrita para esta obra sem interesse também perda de tempo... mas estamos em covid days, há tempo para tudo!
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