5 de julho de 2020

O Penteador. Paulo J. Mendes (Escorpião Azul)

 Com a relativa multiplicação de editores disponíveis para publicarem banda desenhada contemporânea em Portugal, entre plataformas generalistas, especializadas ou dedicadas à imagem e com espaço para esta disciplina, é salutar ver como se abre espaço igualmente a que surjam novos autores portugueses. E mesmo havendo ainda, ou até de forma estimulada nos últimos anos, fanzines, antologias, publicações colectivas e projectos de pequenos grupos mais ou menos informais, quando aparece um novo autor através de um “livro inteiro”, isso é ainda mais assinalável. Paulo J. Mendes tem um percurso que já teve na banda desenhada passos, um pouco como Penim Loureiro, que “regressam” aos amores da adolescência ou primeira idade adulta, conquistando o gesto de uma obra coesa e grande. (Mais)
 O Penteador é um livro com um sabor antigo, não procurando seguir tendências de géneros ou estilos hodiernos, e parecer querer trilhar um caminho só seu, o que tem tanto de vantajoso como de frágil. 

Com uma formação nas artes visuais e uma carreira profissional que o colocou enquanto desenhista publicitário e noutras áreas que mesclam a arte a indústria, jamais abandonou a disciplina do desenho, e ele próprio explica como a prática do “urban sketching” o re-aproximou de um outro tipo de assinatura gráfica e, através dela, finalmente da banda desenhada. Com efeito, e sobretudo a nível dos cenários e de vinhetas que criam establishing shots, Mendes parece tirar partido da forma mais completa possível de todas essa experiência. Os seus grandes planos revelam uma atenção ao pormenor, à estratificação de planos, a formas de construir perspectivas dinâmicas, e o treino pela aguarela faz com que crie cenas em que a iluminação, sobretudo da luz diurna por entre a folhagem banhando os espaços e personagens, é francamente um domínio feliz. A sua figuração, descomplicada e nem sempre coerente, é todavia legível, clássica e fluida, recordando toda uma tradição de cultores de uma linha simples associada ao humor do dia-a-dia, entre os desenhos “nervosos” de um Cabu ou Brétécher e uma certa linha de ilustração para a infância. Recorda, nalguns momentos das expressões, o autor espanhol Kim (colaborador de Altarriba), mas sem o burilado detalhado das linhas. 




O livro cria uma rede de personagens, um contexto espacial e temporal, mas na verdade é uma novela plotless, sem intriga, nem propriamente “curvas” e “arcos” de narrativas ou desenvolvimento de personagens. Temos um protagonista, Mafaldo Limparrim, que graças a um novo emprego numa pequena cidade, acaba por entrar em contacto com todo um novo mundo social e pequenas aventuras rurais/de vilarejo, onde descobre os prazeres etílicos, da observação e integração na natureza, da apreciação de tradições simples e do amor. Algures o autor descreve o livro como sendo uma “desnovela gráfica” e não é um termo mal-achado, dado que é muito menos importante a trama que poderia ser criada – não é – do que o passeio por estas paisagens e os encontros com estas personagens.

O livro está carregado por uma série de “ideias” soltas, que o próprio autor confessa nos vários paratextos do volume, e com efeito existem muitas situações e trocadilhos que se vão ligando uns aos outros mais por fiada do que por cadeia – isto é, não procuram uma coordenação episódica que crie causa-consequência, mas tão-somente uma embalada sequência “e depois”, “ e depois”... Por isso, se o emprego de Mafaldo, “penteador de manequins” poderia recordar o humor de um José Carlos Fernandes, e haver acesso a sonhos e situações algo estrambólicas, o território de Mendes não é o do absurdo literário, onde haveria espaço para o sarcasmo. Isto não quer dizer que não exista uma possibilidade de ver em O Penteador um retrato, ligeiramente distorcido, da realidade portuguesa, mas havendo-o, será algo mais próximo de um “português suave”.


Na verdade, esta é a parte mais imaginativa e com impacto do livro. Mafaldo diz vir de uma “ilha” para a “cidade” onde trabalhará, visitando a “aldeia” do seu patrão, mas nenhum destes espaços, apesar dos nomes - “Poço Redondo”, “Montefofo” - , é no Portugal que habitamos. O Portugal de O Penteador é uma espécie de fantasia tranquila em que Ludovice e seus discípulos tomariam conta da construção do país e o modernismo, pelo menos em termos de estilo, jamais chegaria. Todos os espaços são uma espécie de Bom Jesus do Monte espraiados em centros urbanos. O barroco e rococó de Braga, Guimarães, Porto e Queluz transformam os centros das cidades, as portas e rotundas, os miradouros e paragens de eléctrico (os poucos automóveis ou motorizadas que aparecem são modelos dos anos 1950 e 60, mas muito secundarizados), e até mesmo a cidade papal – esta é uma sociedade que tem um rei mundano, um papa boncheirão, e um presidente da Câmara enfastiado. Tal como Schuiten-Peeters, na série As Cidades Obscuras, relançam as fantasias de Verne e Robida num modernismo desviado na sua Contra-Terra, também as paragens desta história parecem ser informadas por uma tarde de Domingo de Verão numa visita à terra lá nos nortes, bem regada a vinho e comidas caseiras.

Apesar de existir uma espécie de McGuffin no livro – o mistério de uma pequena capela perdida na encosta a caminho de Poço Redondo -, ele não serve para articular o ponto principal destas páginas: os repetidos encontros entre uma mão-cheia de amigos para patuscadas opíparas, regadas profusamente por alcoóis e extravasamentos comportamentais que terminam com derrotas na retrete, sonhos conturbados, ressacas, e arrependimentos que não duram mais que uma hora, antes de regressar-se ao mesmo ritmo, com novos aliados (e que vão “subindo” por uma espécie de hierarquia social interna: o presidente da câmara, o rei, o papa). Tudo sem pautado por diálogos escritos num falso estilo grandíloquo e melífluo, por vezes para criar uma referencialidade literária “antiga”, por outras para fazer pouco de certas tipologias de discursos e salamaleques oficiais. 

Muito do humor vive dos diálogos, por vezes requintados, outras um pouco mais rebuscados, mas pela sua constante presença poderá tornar-se algo excessivo. Ainda assim, vão contendo jogos de referencialidade interessantes. Leitores atentos descobrirão uma técnica interessante surrupiada a Goscinny. 

Fantasia escapista, sem qualquer dúvida, O Penteador não reinventa a banda desenhada, e parece querer alhear-se de quaisquer dimensões temáticas que estejam na “ordem do dia”. Isso, em si mesmo, é naturalmente uma escolha também significativa, e o seu mergulho numa certa natureza bonacheirona, da chalaça, do trocadilho, do nacional-porreirismo (o que parecem críticas aos poderes, no fundo, são apenas um compromisso), enfim, num Portugal “limpinho e bem-comportado”, não é de todo mau-vindo, mas a sua eficácia na contemporaneidade pode também ser limitada. 

1 comentário:

  1. um verdadeira perda de tempo... a crítica é justa mas ter sido escrita para esta obra sem interesse também perda de tempo... mas estamos em covid days, há tempo para tudo!

    ResponderEliminar