3 de outubro de 2020

A menina dos olhos ocupados. André Carrilho (Bertrand)

Será inevitável que todos os autores de banda desenhada, ilustração, literatura, música, teatro, ou empadas de galinha, no momento em que se tornam pais e começam a enfrentar a necessidade de participarem na educação de uma criança quer para a cidadania quer para a liberdade da imaginação, sentem a responsabilidade de criarem algo nesse sentido? Haveria muitos exemplos a apontar, uns movidos por uma certa capacidade em encontrarem caminhos comuns entre um território e as suas disciplinas de trabalho, outros talvez até por um certo egoísmo e egotismo, julgando-se capazes de fazer algo melhor do que aqueles que se dedicam a essa mesma tarefa. E haverá projectos que, nutridos por um movimento ou outro, trazem um contributo indelével a esse campo, mas muitos mais em que há um claríssimo falhanço, alimentado por uma pífia compreensão do que é preciso fazer, ou pior, empurrado pela tal arrogância cega aos demais exemplos. (Mais)

André Carrilho é um autor que, acima de tudo, tem angariado a atenção pela sua inteligência gráfica. Não é apenas uma questão de domínio técnico – algo provado nos seus “retratos” (bem mais que “caricaturas”) - ou de beleza a partir do entorno do mundo (veja-se o seu Inércia ou os desenhos que faz en plein air, seja de paisagens naturais ou urbanas) – mas pela capacidade de transmitir uma ideia através das suas composições e personagens, ideias muitas vezes iluminadoras, surpreendentes, sarcásticas, fortes, e, tantas vezes, politicamente necessárias. Através de metáforas visuais que depois se tornam óbvias (não o eram, é Carrilho que nos faz aprender que assim passam a ser) ou metonímias que tornam claríssima a questão, são os conceitos que se tornam a sua arma forte, colocando-o num mesmo patamar que outros ilustradores intelectuais, como Daumier, Steinberg, Topor e poucos outros. Como Saul Steinberg, um dos maiores “artista dos artistas”, Carrilho é também um autor que preenche aquilo que o crítico Harold Rosenberg havia chamado de “um desenhador de reflexões filosóficas”.

Não é surpreendente, portanto, que este livro ilustrado para a infância, ainda que tenha uma intriga central, uma protagonista com familiaridade suficiente para ser seguida como modelo, e a clareza e humor imperativos nestes projectos, o que fica é sobretudo a noção central que nos apresenta. A de uma ideia que se estende pela gestão que faz de cada episódio, ou parte, que toma o lugar dos spreads. Uma criança sem nome passa todo o tempo com o rosto enfiado no ecrã do telemóvel, mergulhada no incessante rio de apps e conteúdos que lhe são oferecidos, mas aos quais não temos acesso. Isto leva a que ela esteja distraída ao que se passa à sua volta que, se num primeiro momento parecem ilustrações de ideias espatafúrdias e de géneros clássicos de aventuras que mereceriam sub-títulos - “no mar”, “no circo”, “no espaço”, “com os piratas”, etc. - , descobrimos depois que são com efeito factos palpáveis e acessíveis, e que se tornam finalmente abertos à menina.

Não deixa de haver aqui um certo moralismo, expectável, que coloca a tecnologia de um lado, como algo que isola, aliena, e afasta de uma suposta “verdadeira” experiência e, por outro, essa interacção directa com os objectos do mundo. Essa forma maniqueísta é algo simplista, mas funcionará decerto com uma leitura pedagógica, senão didática, potencial, do livro. Uma alternativa atenta aos modos como somos seres sociais por seremos tecnológicos poderia ter levado a um caminho diferente, talvez. Mas entende-se a urgência nesta chamada de atenção. Os textos, apresentados em pequenas estrofes com esquemas de rimas diversos, tenta criar um ritmo contínuo por entre essas cenas, e consegue-o. Mas a grande força está, naturalmente, nas imagens.

Mais do que desenhado, o livro é pintado com aguarelas e outros instrumentos riscadores, e muito provavelmente montagens e edição digital, que tornam as personagens mais dinâmicas e apelativas, e, precisamente por essas matérias promissoramente friáveis, passíveis de se virem a misturar, fundir, encontrar-se de uma forma profunda e íntima, que é o que está prometido. Há momentos em que o autor sublinha os contrastes cromáticos para fazer efeitos espectaculares (como é o caso do episódio “espacial”), noutros procura uma verificação das continuidades/afinidades entre os elementos (no “circo”), e ainda outros onde as aguadas coloridas torna os animais (o urso, os golfinhos, o magnífico spread dos cães perseguindo a protagonista, deixando o branco da página agira como o espaço a ser ocupado, parte importante da narrativa) confundíveis ou parte do cenário do qual partem.

A composição de todo o livro é uma lição, corroborada por esta dança de cores que é de uma elegância magistral, quer nos momentos de maior contraste quer nas páginas de tons sobre tom. Nesse frenesim está a verdadeira aventura, afinal, que todos os pequenos e grandes leitores terão atravessado com este livro nas mãos.

Nota final: agradecimentos à editora, e ao autor, pela oferta do volume.

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