4 de janeiro de 2023

Espelho da água. João Sequeira (Polvo)

É apanágio do artista (escritor, pintor, cineasta) ter a capacidade de olhar o mundanal e destacar-lhe os elementos de tal modo, frente aos quais, ao nos serem devolvidos, remoldados que estarão pelos materiais de eleição do feitor, nos depararemos com o familiar e, ao mesmo tempo, com o que nele existe de extraordinário, obrigando-nos a ver de novo, pela primeira vez, esses mesmos objectos. Espelho da água, tratado fosse com mera sinopse, de elementos narrativos encadeados em descrição fria, surgiria como patética novela. Uma manhã, um corpo de mulher flutua e perde-se ao largo da travessia de um cacilheiro vindo da margem sul para Lisboa, e testemunhamos os gestos da tripulação, a tribulação do capitão, os apoucamentos dos muitos passageiros, as lamentações das gaivotas e o fado dos bivalves. Todavia, é a agulha argêntea do escritor, e depois o fluido e negro esparzir do artista, que torna essa travessia numa pequena jóia. Verdadeiro e duplamente literal stream of consciouness partilhado, Espelho da água é ele mesmo um caudal que serpenteia de forma cristalina entre margens opostas e contrastantes. Não apenas a Margem Sul (perdoe-se a generalidade, mas a falta de nome próprio amalgama as cidades, ainda que o cacilheiro tenha sido baptizado por local exacto) e Lisboa, mas a madrugada e o dia de trabalho, o céu e o fundo do rio, certezas do narrador em início de aventura e incertezas instaladas pelas mortes, acontecidas e adivinhadas. O conto original foi publicado no primeiro número da Granta portuguesa (Tinta da China, 2013) e ocupava quase duas dezenas de páginas. O livro de banda desenhada umas quarenta e poucas páginas. Confirma-se aqui que não há qualquer relação estreita entre o número de páginas e a densidade literária ou artística. Ambos, na sua concentração e estrutura concêntrica, são densos, vivos e populados.

Opto acima por indicar apenas o nome de Sequeira, no título, uma vez que a adaptação foi totalmente da responsabilidade do artista, e feita de forma “livre”, isto é, sem pressões do autor original do conto, salvo o contacto inicial, e sem as exigências “escolares”, digamos assim, que muitas vezes pautam estes projectos. Com efeito, estamos longe de estar aqui no domínio da adaptação pedagógica, no sentido em procurar na banda desenhada um instrumento facilitador de acesso à obra literária, muitas vezes lesiva para ambos os textos: a montante, reduzindo um texto literário tão-somente à sua epidérmica estrutura de “intriga”, a jusante, reduzindo a banda desenhada a um veículo utilitário. Infelizmente, este tipo de adaptações são mato, e mais vale votá-las ao silêncio crítico.

Ainda que o emprego dos termos “adaptação”, “tradução”, “remediação” ou outros estejam pejados, cada qual, de problemas, escolhos, falhas teóricas, porém também capacidades expressivas, quando se considere um destes trânsitos há que atentar sobretudo ao enquadramento, no seu sentido comunicativo, isto é, que englobe não apenas os elementos linguísticos (no caso, letras, palavras, primeiro e, depois, imagens organizadas de dado modo) mas igualmente paralinguísticos (toda a estrutura, recursos estilísticos, modos de circulação quer de um quer de outro texto). O conto de Cardoso Martins emprega uma série de recursos estilísticos do modernismo, como a flutuação entre as vozes, as transições entre registos, súbitas, a travessia sem anúncio de níveis de narração e pessoas, já para não falar de alguns elementos da literatura impressa – jogos tipográficos, marcas de destaque textual na mancha, a pontuação lúdica, uma distribuição precisa dos parágrafos, etc. - que a desliga da herança oral. E é observando essas especificidades que entendemos a “tradução” que Sequeira opera para resultar num texto de banda desenhada. Algumas vezes, a visualidade acaba por garantir alguma clareza ou obviedade no que na literatura era mais ambivalente. Verificando as páginas do livro, porém, notar-se-ão flutuações outras que talvez possam ser ecos ou resquícios das respostas à literatura, provocando similares ambuiguidades, recuos e distâncias produtivas.

Vejamos um exemplo. Martins cria uma frase escrita – unidade de escrita deliberada entre um ponto final e o seguinte – em que se poderão encaixar várias orações, subordinadas ou coordenadas, mas em que o peso da poeticidade vem do inconsútil mas sentido movimento de, por exemplo, um discurso directo para um monólogo, como no caso das frases que o capitão do cacilheiro endereça ao senhor engenheiro. Sequeira opera as “traduções” ao empregar tipicidades formais da banda desenhada, e na página 11, aquela frase de Martins derrete-se imparável de um balão de fala para o outro, dadas as exigências espaciais, mas logo desagua num balão de pensamento, tornando mais clara a passagem de nível. A vivência da “fala” e “pensamento” existe num contínuo nível acima do das vinhetas, que mostram o mundo diegético, e criam uma linha de contorno fechada, que enclausura a visão global na perspectiva pessoal da personagem. Este mecanismo repetir-se-á, ainda que através de várias personagens focalizadoras.

Falámos de stream of consciouness antes, e não é fortuito. A intriga implica a travessia do Tejo por um corpo abandonado. O testemunho desse corpo é percebido por várias personagens, no cacilheiro, e o voo rasante e cortante da narrativa vai-nos permitindo entrar nas mentes e palavras de cada um, não necessariamente apenas envolvidos na própria percepção delas da morta, mas das outras preocupações que as moldam. Vogar pelas consciências de personagens distintas não é inédito (Beckett), é mesmo sinal do modernismo, neste(s) texto(s) algo marcados por um cansaço e melancolia cheios de urbanidade.

O ritmo do conto de Cardoso Martins convida a uma leitura rápida, sincopada, que tem de ter em conta os obstáculos (falsos na tinta impressa, apenas emergindo na leitura em voz alta) das mudanças de perspectiva, de momento da acção. Sequeira opta por um arranjo mais contido. Não apenas por as vinhetas obrigarem a criar claros e distintos momentos, mas por colocar muitas das transições entre personagens a cada spread. É o que ocorre entre Kantilal e Maria Rosa, Maria Rosa e Dona Filomena, Dona Filomena e Adelaide, e Adelaide e Fonseca, em que quando folheamos, passamos à nova personagem. Outros episódios, essa navegação de voz em voz é diferente... Sequeira interrompe o fluxo, colocando uma cena “no presente”, com personagens declarando em voz alta uma frase, para logo retornar ao fluxo. Fluxo constante não apenas do rio, que leva o cadáver boiador que une todo o olhar da história, como da voz de narrador, enclausurada em legendas, que permite quer os olhares de pássaro, bem acima da cidade e do Tejo, como aqueles que mergulham até aos lodos do fundo do rio, como ainda os que vogam entre os passados e o presente, e as vidas internas de cada passageiro.

A beleza dos desenhos de Sequeira não estará em princípios ou fórmulas clássicas. A expressividade e o nervosismo das suas linhas, manchas e ocupação do espaço, sobretudo as que mostram a segurança do pulso riscando o papel a pincel, está mais próxima de um mestre do preto-e-branco pincelado como se adenssasse sombras, à la Alex Varenne, ou que é devedora a uma escola de estilização que virá de Beardsley e Clarke, mas no qual a voluptuosidade do primeiro se estilhaçasse em fragmentos de vidro, e a natureza hierática dos segundos respondesse antes a uma urgência do orgânico. Daí que o artista insista nos bandos irrequietos das gaivotas, o tumultuoso trânsito dos peixes sob as águas, e o lodaçal habitado do Tejo, assim como as frémitas águas em todas as cenas que embatem no cacilheiro, e depois toda e qualquer oportunidade que encontre em transmitir a azáfama da vida e o peso da cidade: as carnes ofertadas no talho, uma escadaria que retorce as costas de modo impossível, a estranha e suada fúria do engenheiro. Mas outros momentos há em que se fundam calmias, tão estranhas no frenesim das mentes chocalhando da narrativa: Lisboa emergindo do nada arbóreo (pg. 19), e o isolamento do cacilheiro no rio, ora contra uma noite impossível e que definha (pg. 42) ou na luz gritante da madrugada (pg. 43).

A grande oposição, as duas margens, é aquela entre a vida e a morte. O conto é, afinal, a travessia da sombra da morte sobre todas as personagens, humanas e outras. A morte parecerá mais forte, personificada na mulher sem nome, desconhecida, que flutua nas águas. Toda a galeria de personagens previstas do conto surge, uma por uma, como obstáculo, mas a insistência da morte parece infectar-lhes as memórias e vivências, de modos tão distintos. A história de Kantilal é aquela que mais afasta a experiência de Lisboa, visitando o rio sagrado do Ganges, que se torna aqui – estranho ou comum?, perguntamos – irmão do Tejo, pela partilha de cadáveres flutuando nas águas. E mais ainda: o tempo da publicação do conto era afastado, mas a do livro de banda desenhada mais próximo de uma outra morte, já há muito anunciada: a dos próprios cacilheiros. Despedida desses barcos, ainda que não da travessia? Aquela que se executa todos os dias, sobre as águas, entre as cidades? Ou aquela outra que se executa todos os dias, mas apenas nos cabendo a cada um de nós uma só vez fazê-la? Resta-nos a ideia, esperemos correcta, que a possibilidade de a leitura (ou das leituras), essa, ser sempre salvífica.

Nota final: como saberão, tenho uma relação privilegiada com o autor, tendo colaborado com João Sequeira num número de projectos curtos, e num outro bem maior, já terminado, mas que busca poiso e lume, e que terá, ou assim espero, como verificarão os futuros leitores, profundas afinidades temáticas com Espelho da água. Tive, portanto, grandes vantagens privadas em acompanhar a feitura deste livro. Ainda assim, todas as informações partilhadas nesta resenha são públicas ou detectáveis na leitura.

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